O brilho nas pedras do passeio. Pontos de luz tremem sobre a água fina que a noite, a chuva, deixou sobre as pedras. Eu caminho sobre a organização das pedras do passeio. Diante de mim, um manto de pontos de luz que se acendem e que se apagam. A sua vida é breve. A minha vida é breve. São pontos de luz que abrem caminhos para que avance. As minhas botas pousam entre esses pontos de luz a nascerem, a viverem durante um instante e a morrerem para sempre. Mil pontos de luz a morrerem em instantes diferentes, em sítios diferentes, ignorando-se e fazendo parte da mesma ordem. Pelos muros do jardim, escorre uma camada fina de água, pele cristalina de cálice, água límpida como veneno. A repousar no topo do muro, a escorrer como uma avalanche suspensa, há plantas, folhas, ramos de árvores: braços verdes que pararam no momento em que se lançavam para agarrar alguém que, como eu, caminhava no passeio. Também na pele vertical do muro, também nas folhas, há pontos de luz que existem delicadamente. Como em olhos sinceros a brilhar. Mãos cheias de pó a brilhar lançadas sobre as pedras do passeio, sobre o muro do jardim e sobre os ramos que se atiram do seu topo.
Uma brisa ergue-se do interior da terra e chega a mim, à consciência de mim: o meu rosto, os meus lábios, o meu corpo tocado por essa brisa. Caminho por entre essa brisa a passar por mim, como se atravessasse uma multidão invisível. A brisa, ao tocar os meus olhos, transforma-se em lágrimas que descem frias pelo meu rosto. Os meus lábios. Sinto-as e sinto a memória das vezes que chorei o desespero parado, mais triste, de lágrimas que descem lentamente pelo rosto. O tempo passa por mim como qualquer coisa que passa por mim sem que a consiga imaginar e as lágrimas, que eram apenas a brisa a tocar os meus olhos, começam a ser lágrimas de desespero verdadeiro. Paro no passeio. O mundo pára. E lembro-me de ti como uma faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente em mim. Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam com a noite. Noutras noites, olhamos para a lua. Nesta noite, não olhamos para a lua. Noutras noites, olhamos para a lua e enchemo-nos de desejos. Nesta noite, não olhamos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhamos para a lua e não sabíamos o que era sofrer. Escuridão e esperança. Na lua,víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu rosto, sei que nos enganamos e sei a lâmina infinita de uma faca. Lá no sul, onde nasci: o meu corpo dentro do corpo da minha mãe, sob a sua pele, encostado aos seus ossos; lá no sul, existem casas caiadas, existem campos, existem planícies que estão agora tão longe de mim e que, ao mesmo tempo, estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro dessa memória, na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois de eu nascer, a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da casa adormeceram. Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal. Tinha os pés descalços sobre a terra. Eram os últimos dias do verão. No centro do céu da noite, a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada. Os dedos da minha mãe eram grossos no momento em que, com ambas as mãos me levantou no ar, sobre a sua cabeça, na direção da lua e disse: Ò lua, ò luar,/ eu fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. Eu era pequeno e branco. Nos olhos da minha mãe via-se os seus braços erguidos, via-se o meu corpo dentro do círculo branco da lua.
refletiam a escuridão do mundo. Os meus olhos derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim, olhava para o lugar onde sabia que estavas, a casa que te continha e, no entanto, aquela casa era um lugar escuro, um poço, era como se tivesses mergulhado dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós. Eu sabia que nunca mais te voltaria a ver. Eu desejava-te ainda. Agora, desejo-te ainda. Sei que existem cemitérios. Sei que a casa onde estás, o lugar onde te imagino a fazer tantas coisas, a não te lembrares de mim, é um lugar de destroços. Vivemos rodeados de cemitérios. Aquilo que fomos está enterrado à nossa volta e nunca poderemos saber onde deixamos tudo aquilo que não voltaremos a ver. No céu, a lua é a mesma que existia quando, deixando-te, caminhei pelas ruas desertas. Os meus passos na noite. Os meus passos e, lentamente, o dia a nascer sobre as coisas da noite. Lentamente, a noite fixa no seu lugar, nos objectos, nas casas, no céu, e o dia a envolvê-la como uma capa de luz cinzenta. Esta manhã lunar. Esta manhã que é uma manhã e que é ainda a noite. A lua neste céu branco. Pouso as pálpebras sobre os olhos. Vapor, nevoeiro. Os teus olhos eram um caminho. Os teus cabelos eram talvez um horizonte. Não sei como acreditámos que as palavras eram simples. Sonhávamos e enganamo-nos. Sorrindo, mergulhávamos os lábios no veneno quando pensamos que bebíamos o antídoto.
Abro os olhos e a manhã é igual. O nevoeiro fresco na minha pele. No céu, esta lua branca e gelada: padrões de gelo, formas moldadas de gelo. No céu, a imagem da eternidade. Desço o olhar e, à minha frente, as casas fechadas, as ruas desertas e reais. Existe qualquer coisa fria na realidade desta manhã. A cobrir as minhas pernas, o nevoeiro. A atravessar-me, uma voz. Distingo as palavras que diz através de mim: não podemos ser felizes. Sou atravessado por essas palavras como sou atravessado pelo nevoeiro. Recomeço a caminhar. Os meus passos são eu e eu sou esta manhã lunar. Caminho como se estivesse a ser, de novo, oferecido à lua pelos braços da minha mãe. Quando era criança, temia a morte. Agora, envelheço tanto.
Temo a morte mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei a correr na sua direção. Caminho sobre as pedras do passeio. Ouço os meus passos debaixo do nevoeiro. Fujo da morte porque quero correr na sua direção.
A memória como uma maldição. Caímos na eternidade e a memória é um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca poderemos voltar. Ó lua, ó luar,/ eu fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. A memória é como a esperança da minha mãe na noite em que me ergueu à lua e, sem saber, escolheu-me um destino. Lembro-me de quando nos conhecemos e esse dia está debaixo do teu olhar e desta noite. Lembro-me da minha mão pousada sobre a tua e esse instante está debaixo da palavra solidão. Lembro-me de tantas coisas impossíveis. Agora, caminho por esta manhã deserta. As pedras do passeio existem debaixo dos meus passos. Ninguém, nem sequer eu próprio, me pergunta para onde vou. Nas ruas desertas, sou uma multidão de gente mutilada a caminhar. Sou aquele que, esta noite, te viu partir, que olhou para ti quando os teus olhos se despediram e que não pôde fazer nada senão olhar para ti, o corpo que foi meu, e vê-lo afastar-se, cada vez mais longe dos meus braços. Sou aquele que nasceu lá no sul, longe de toda as desilusões, no lugar onde o passado pára, no último lugar do passado. Sou aquele que sonhou com tudo aquilo que é proibido sonhar.
Sou aquele que é todos estes e muito mais do que estes e que caminha por um passeio deserto, o nevoeiro, o brilho morrente da luz na água fina da chuva, sob um céu cinzento, sob a lua como um ponto para onde tudo se dirige. Caminho nesta manhã como se entrasse dentro de uma casa vazia, a casa que conheci, que foi minha e que abandonei, como se subisse as escadas dessa casa de salas mortas, cadeiras mortas, camas mortas, como se me aproximasse da janela e olhasse lá para fora, como se uma voz negra e terrível me atravessasse. A manhã é ainda lunar.
Nunca mais poderei deixar o meu corpo esquecido junto ao teu. O mundo que não existia longe da tua pele. Os meus dedos a deslizarem pela superfície da tua pele. E o desejo enganava-nos. Os meus dedos entre os teus cabelos e a inocência. A claridade dos dias que nasciam na tua pele branca, na forma suave da tua pele feita de silêncio. A inocência repetida em cada palavra da tua voz, como água de uma fonte, como a minha mão a atravessar o ar e a dirigir-se para o teu rosto. O teu olhar era a inocência. O meu olhar. E o silêncio de cada vez que queríamos falar de assuntos mais impossíveis do que a memória. Nunca mais poderei sonhar porque tu não estarás ao meu lado e, descobri hoje, só posso sonhar contigo ao meu lado. Espetada infinitamente em mim, uma faca infinita. Deixei de imaginar o futuro. Sobre esse tempo que não sei se chegará existe um manto muito mais negro do que aquele que cobre o passado. Não consigo olhar através desse tempo negro. O futuro estará depois de muitas noites, mas eu deixei de imaginar as noites. Sei que, da mesma maneira que esta noite se cobriu de manhã, esta manhã poderá anoitecer. Consigo imaginar cada tom das suas cores a tornarem-se negras. Não consigo imaginar este tempo a transformar-se noutro tempo. Contigo, perdi tudo o que fui para não ser mais nada. Deixei-me ficar nos sonhos que tivemos. Abandonei-me. Nunca mais entenderemos a lua como quando acreditávamos que aquela luz que atravessava a noite nos aquecia.
Nunca mais. Nunca mais poderemos sonhar. Nunca mais.
(continua na leitura do autor)
O brilho nas pedras do passeio. Dentro do nevoeiro, há pontos de luz mais grossos a brilharem. Moedas lançadas para um lago cheio de desejos. Caminho entre o brilho. Os meus passos afastam-me de nada. Existem veios de medo na brisa que atravesso. Linhas de medo que me tocam a pele. Atravesso a brisa e sou atravessado por uma voz que me diz: não podemos ser felizes. O medo. Sobre mim, o céu é o tempo do mundo. Todo o tempo de todas as pessoas do mundo. O céu é nunca mais. A lua somos nós, aquilo que
fomos. Como a memória, a lua existe nesta manhã para nos lembrar que existiram noites, que existiu esta noite em que nos separamos. Caminho sobre a organização das pedras do passeio, a organização do nevoeiro.
Rodeada pelo tempo do mundo, por nunca mais, a lua somos nós.
José Luís Peixoto