quarta-feira, 13 de julho de 2011



A noite não é simplesmente um negrume sem margens nem direções.
Ela tem sua claridade, seus caminhos, suas escadas, seus andaimes.
A grande construção da noite sobe das submarinas planícies
aos longos céus estrelados
em trapézios, pontes, vertiginosos parapeitos,
para obscuras contemplações e expectativas.

Então, a noite levava-me... – por altas casas, por súbitas ruas,
e sob cortinas fechadas estavam cabeças adormecidas,
e sob luzes pálidas havia mãos em morte,
e havia corpos abraçados, e imensos desejos diversos,
duvidas, paixões, despedidas
- mas tudo desprendido e fluido,
suspenso entre objetos e circunstancias,
com destrezas de arco-íris e aço.

E os jogadores de xadrez avançavam cavalos e torres,
na extremidade da noite, entre cemitérios e campos...
- mas tudo involuntário e tênue –
enquanto as flores se modelavam e, na mesma obediência,
os rebanhos formavam leite, lã,
eternamente leite, lã, mugido imenso...
Enquanto os caramujos rodavam no torno vagaroso das ondas
e a folha amarela se desprendia, terminada: ar, suspiro, solidão.

A noite levava-me, às vezes, voando pelos muros do nevoeiro,
outras vezes, boiando pelos frios canais, com seus calados barcos
ou pisando a frágil turfa ou o lodo amargo.

E belas vozes ainda acordadas iam cantando casualmente.
E jovens lábios arriscavam perguntas sobre dolorosos assuntos.
Também os cães passavam com sua sombra, lúcidos e pensativos.
E figuras sem realidade extraviadas de domicílios,
atravessadas pela noite, pela hora, pela sorte,
flutuavam com saudade, esperando impossíveis encontros,
em que países, meu Deus, em que paises além da terra,
ou da imaginação?


Cecília Meireles