Trago dentro do meu coração, como num cofre que se não pode fechar de cheio, todos os lugares onde estive, todos os portos a que cheguei, todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, ou de tombadilhos, sonhando, e tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei… Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir e a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz. A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me, penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, desta turbulência tranquila de sensações desencontradas, desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, deste desassossego no fundo de todos os cálices, desta angústia no fundo de todos os prazeres, desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas... Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei se me falta escrúpulo espiritual, ponto de apoio na inteligência, consanguinidade com o mistério das coisas, choque aos contatos, sangue sob golpes, estremeço aos ruídos, ou se há outra significação para isto mais comoda e feliz. Seja o que for, era melhor não ter nascido, porque, de tão interessante que é a todos os momentos, a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, a dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, e tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida. Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, é preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas… Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca... Que há de ser de mim? Que há de ser de mim? Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo, a tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai. Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se. Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente. Estou no caminho de todos e esbarram comigo. Minha quinta na província, haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti. Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, e fica sempre, fica sempre, fica sempre, até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica... Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, e fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. Amei e odiei como toda gente, mas para toda a gente isso foi normal e instintivo, e para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo. Não sei sentir, não sei ser humano, conviver de dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra. Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido, ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta, uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair, uma coisa vinda diretamente da natureza para mim. Sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados, ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, realizar em si toda a humanidade de todos os momentos num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Fui para a cama com todos os sentimentos, fui souteneur de todas as emoções, pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações, troquei olhares com todos os motivos de agir, estive mão em mão com todos os impulsos para partir, febre imensa das horas! Angústia da forja das emoções! Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço, a cadela a uivar de noite, o tanque da quinta a passear à roda da minha insônia, o bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa, a madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros, toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo, ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos, orgia intelectual de sentir a vida! Obter tudo por suficiência divina — as vésperas, os consentimentos, os avisos, as coisas belas da vida — o talento, a virtude, a impunidade, a tendência para acompanhar os outros a casa, a situação de passageiro, a conveniência em embarcar já para ter lugar, e falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase, e a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa. Poder rir, rir, rir despejadamente, rir como um copo entornado, absolutamente doido só por sentir, absolutamente roto por me roçar contra as coisas, ferido na boca por morder coisas, com as unhas em sangue por me agarrar a coisas, e depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida. Sentir tudo de todas as maneiras, ter todas as opiniões, ser sincero contradizendo-se a cada minuto, desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito, e amar as coisas como Deus. Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói, declina dentro de mim o sol no alto do céu. Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos. Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar? Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata, queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo, eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés, calcar, calcar, calcar até não sentir. Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou… Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...
Álvaro de Campos
Passagem das horas