Estava sentado ao lado do velho, um desconhecido que, de tão visto e acompanhado, me era quase um velho conhecido. Acabara de acordar no assento em que tinha passado a noite, vigiando, por assim dizer, o ser imóvel. Olhava a cama de ferro, alta e branca, coberta por panos que ontem haviam sido lençóis limpos, o pijama branco envolvendo-o por debaixo. Éramos três: eu, ele e a vara que sustentava a bolsa de soro, presença das maiores, de onde lhe pingava uma vazia esperança de vida. Dentro do pijama, o homem seco e branco era um carregador de farinha. Lá fora onze horas, sol alto e forte, nascido em manhã absurdamente azul. O quarto branco na penumbra.
Mal se ouvia o respirar. Por cima dos lençóis, as mãos nodosas, ossos recobertos por pele cor de cinza, e ainda assim mãos que foram bonitas. O rosto enrugado, a barba rala e grisalha que brotava por entre as rugas, fruta passa. A cabeça, do perfil que a via, um objeto anguloso, pedaço de madeira esculpido a facão, faraó embalsamado. Quis dizer múmia, achei ofensivo. Mas era assim.
A porta se abre lentamente, como se quem a estivesse abrindo cometesse estudada mas necessária imprudência. Nada se via além de finas pontas de dedos finos contornando a lombada da porta larga, mão de um pardal que se firma num galho. O rosto em seguida, depois a silhueta esbelta, um vestido que pareceu preto por ser igualmente silhueta: uma mulher. Trazia alguma coisa abraçada ao peito, à semelhança de cadernos de uma colegial, e quando os olhos de quem observava se acostumaram à luz vazada do corredor, vi que há muito ela não tinha mais idade para isso. Podiam até ser cadernos, mas estudante ela não era. O vestido era mesmo preto, nada mais havia sido ilusão provocada pelas luzes sombras.
Deu dois passos e enfrentou a cama. Abraçada às coisas, tesa, empertigada, uma quase insolência. Sequer olhou para mim, foi como se eu não existisse, o que era então verdade. A boca contraída disfarçava a iminência de um chorar, mas seus olhos brilhantes cantavam um hino de guerra, igualmente apertados. Era bonita ainda. Tinha sido muito mais, quem a tivesse acompanhado no correr da estrada não lhe veria a idade, só a beleza por trás do rosto bonito. O velho na cama era o mesmo, respirando imóvel, a boca entreaberta, uma ausência presente, um engano embrulhado em panos quase brancos. Ela o olhava e se lembrava.
Viu-o de frente, levantado em pé, e se lembrou primeiro do que pensaram ambos ser o último adeus — como se houvesse últimos adeuses, como se houvesse adeus sem morte —, adeus de há tempos, quando as mãos dele não eram cor de cinza. Ela viu novamente as mãos que nunca havia se esquecido delas, viu-as tamborilar sobre a mesa ao lado do copo vazio na hora do último adeus, displicência destoante da tensão triste da hora, lembrou-se da raiva que sentiu, e sentiu aquela mão direita que depois pousou na sua face esquerda, o olhar de desculpas sem sentido, lembrou daquelas mãos lhe correndo pelo corpo, a sensação das unhas lhe descendo pelas costas em queda livre, o arrepio, a aguardada chegada ao debaixo das suas roupas mais íntimas, aqueles dedos lhe vasculhando o interior e sentiu novamente, ali mesmo em frente àquela outra cama, como sempre sentira, o amolecer dos joelhos, a vontade de se cair de bruços, e conseguiu vê-lo novamente nu, forte e rosado, arrogante de tão menino, a expressão de pedra que tinha enquanto a possuía, o quanto ele detestava essa palavra possuir, o sem sentido da expressão dura e muda de seu rosto, em oposição aos primeiros murmúrios dela, aos primeiros gemidos, aos gritos de prazer, e depois os gritos da dor que vinha do tanto prazer jamais sentido por ela, e o silêncio suado, o silêncio depois do trovão, silêncio... hora da revisão, de repassar entorpecida o que lhe tinha acontecido, o que ele tinha feito, o que ela tinha permitido que lhe fizesse, que sempre acontecia diferente, hora de enrubescer, de não acreditar no que ele tinha conseguido que ela fizesse. E enrubescia porque estava certa de que tinha feito.
O velho na cama era o mesmo, respirando imóvel. Mas como se sentisse a presença, abriu os olhos e morreu. Ela o percebeu morto e chorou, desistindo.
Deixou cair os papéis lentamente, que foram lhe fazendo um último carinho pelos seios e pelo ventre enquanto desciam em sua queda livre, sem lhe vasculhar a carne pela última vez, simplesmente despencaram em direção ao chão e se espalharam, folhas caindo da árvore morta, seu ser vivo.
Não havia mais quem lesse o que estava escrito. Acabara, finalmente.
Abaixou a cabeça, não a olhar papéis, apenas livrando-se da ensaiada insolência da chegada, virou-se e saiu lentamente, deixando-me sozinho no quarto. O velho sou eu.
Albano Martins Ribeiro