segunda-feira, 23 de maio de 2011


Delírios

II

A alquimia do verbo

A mim. A história de uma das minhas loucuras.

Desde há muito eu me vangloriava de possuir todas as paisagens possíveis, e me pareciam irrisórias as celebridades da pintura e da poesia moderna.

Gostava das pinturas idiotas, capitéis, cenários, telas de saltimbancos, tabuletas, iluminuras populares; a literatura fora de moda, latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossas avós, contos de fadas, livros infantis, óperas antigas, estribilhos idiotas, ritmos ingênuos.

Sonhava com cruzadas, viagens de descobertas da quais não existem notícias, republicas sem historia, guerras religiosas sufocadas, revoluções de costumes, deslocamentos de raças e continentes: eu acreditava em todos os encantamentos.

Inventei a cor das vogais! — A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde. — Ordenei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, pretendi inventar um verbo poético acessível, mais dias menos dias, a todos os sentidos. Eu me reservava sua tradução.

Antes, foi apenas um estudo. Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.

Que bebia eu de joelhos nesta charneca
Rodeada de tenros bosques de avelãs,
Numa verde e morna nevoa vespertina,
Longe dos pássaros, rebanhos e aldeãs?

Que podia beber neste jovem Cise, querida,
— Olmos sem voz, céu coberto, raiva sem flores! —
Longe da tenda, em cabaças amarelas?
Algum licor dourado que provoca suores.

Fiz equívocos sinais de boas vindas.
Tempestade no céu. Ao escurecer
A água dos bosques na areia morria,
O vendaval de Deus os mares gelava.

Chorando, via o ouro — e beber não podia. —

Quatro horas da manhã estival,
O sono de amor ainda persiste.
Nos arbustos já não mais existe
Noturnos odores de festival.

Lá ao longe, ao sol doas Hespérides,
Em seus imensos canteiros
Já se movem — em mangas de camisa —
Os Carpinteiros.

Em seus Desertos de espuma, tranqüilos
Preparam preciosas molduras
Onde a cidade
Pintará céus de impostura.

Ó, por estes Obreiros fascinantes
Quem um rei de Babilônia têm atados,
Vênus! Abandona teus amantes
cujos espíritos tens escravizados.

A todos eles, Rainha dos Pastores,
a aguardente tens de levar
Que estejam mansos os trabalhadores
Quando ao meio-dia se banhem no mar.

As velharias poéticas ocupavam boa parte de minha alquimia do verbo.

Habituei-me à alucinação simples: via, honestamente, uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de tambores feita por anjos, carruagens nos caminhos dos céus, um salão no fundo de um lago; os monstros, os mistérios; um título de comedia erigia terrores à minha frente.

Depois explicava meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras!

Acabei pr julgar sagrada a desordem de meu espírito. Era cioso, vitima de forte febre: invejava a felicidade dos animais, — as crisálidas, que representavam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono da virgindade!

Meu caráter se tornava acre. Eu me despedia do mundo, com uma espécie de romança:


Canção da torre mais alta

Que venha essa hora
Que nos enamora.

Minha paciência foi tanta
Que não mais a lembro.
Medos e prantos
Aos céus já foram.
E uma sede malsã que cresce
Minhas veias obscurece.

Que venha essa hora
Que nos enamora.

Tal campina esquecida
Imensa, florida,
De incenso e de joio,
Ao zumbido selvagem
De moscas imundas.

Que venha essa hora
Que nos enamora.


Eu amava o deserto, os pomares queimados, lojas decadentes, as bebidas mornas. Eu me arrastava pelas ruelas fedorentas e, com os olhos fechados, me oferecia ao sol, deus do fogo.

“General, se ainda resta um canhão velho em teus baluartes em ruínas, bombardeia-nos com montes de terra seca. Contra as vitrines da das lojas esplêndidas! dentro dos salões! Faz que a cidade coma sua própria poeira. Enferruja as gárgulas. Enche os toucadores de poeira ardente de rubis...

Ó! a mosca embriagada no mictório da taverna, apaixonada pela borragem, e dissolvida por um raio de sol!



Fome

Se tenho apego, não é mais
Que pelas pedras e chão.
Como sempre ar
Rocha, ferro, carvão.

Voltai minhas fomes. Pastai
No prado dos sons.
Atraí o alegre veneno
Das trepadeiras.

Comei os seixos que se quebram,
As velhas pedras de igrejas;
Calhaus de antigos dilúvios,
Pães semeados em vales grises.

Uiva o lobo nas folhagens
Cuspindo as belas plumas
Das aves de seu repasto:
Como ele eu me gasto.

As hortaliças e as frutas
Só esperam a mão que as tome;
Mas a aranha dos tapumes
Só violetas come.

Que eu durma! que ferva
Nos altares de Salomão.
Sobre a ferrugem corre a fervura
E se mistura o Cedrão.

Enfim, ó felicidade, ó razão, eu separava do céu o azul, que é negro, e vivi, centelha dourada da luz natureza. Em minha alegria, eu assumia uma expressão tão burlesca e alucinada quanto possível:

Ela foi reencontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar
Ao sol misturado.

Minha alma eterna,
Segue teu rogo
Contra a noite pura
E o dia em fogo.

Te libertas então
Dos votos humanos,
E ímpetos vãos!
E voas segundo...

Jamais a esperança,
Jamais orietur.
Ciência e paciência
O suplício é seguro.

Tampouco futuro,
Brasas de cetim,
Vossa paixão
É a obrigação.

Ela foi reencontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar
Ao sol misturado.

Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todos os seres têm um fatalismo da felicidade: a ação não é a vida, mas uma forma de dilapidar alguma força, um enfraquecimento. A moral é a debilidade do juízo.

Parecia-me que a cada ser devem ser dadas outras vidas. Este cavalheiro não sabe o que faz: é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Diante de vários homens, falei em voz alta com um momento de uma de suas outras vidas. — Assim, amei um porco.

Nenhum dos sofismas da loucura, — a loucura de atar, — foi esquecido por mim: eu poderia repeti-los todos, tenho o sistema.

Minha saúde esteve ameaçada. O terror me invadia. Caía em sonos de vários dias e, desperto, continuava os mais tristes sonhos. Estava maduro para a morte, por uma senda de perigos minha fraqueza me conduzia aos confins do mundo e da Ciméria, pátria da sombra e dos turbilhões.

Tive de viajar, dissipar os encantamentos reunidos em meu cérebro. No mar, que amava como se devesse purificar-me de uma mancha, eu via elevar-se a cruz consoladora. Eu fora amaldiçoado pelo arco-íris. A Felicidade era minha fatalidade, meu remorso, meu verme; minha vida seria sempre excessivamente imensa para ser dedicada à força e à beleza.

A Felicidade! Seu dente, doce até a morte, me advertia do canto do galo, —ad matutinum, no Christus venit, — nas mais sombrias cidades.

É estações, ó castelos!
Qual a alma sem defeitos?

Fiz o mágico estudo
Da ventura, que ninguém elude.

Saudemo-la, cada vez
Que cante o galo gaulês.
Ah! Não mais ambições:
Pus minha vida em suas mãos.

Este encanto prendeu-me alma e corpo
E dispersou os esforços.

Ó estações, ó castelos!

A hora de sua fuga, enfim!
Será a hora do meu fim.

Ó estações, ó castelos!

Isto passou. Hoje eu sei saudar a beleza


Arthur Rimbaud