quarta-feira, 23 de março de 2011
Noir
No escuro as palavras não existem não têm porque existir as palavras não precisam. Sendo nem sim nem não nem certos nem sabedoria apenas abandono irreflexão um inominável mesmo o divertimento numa fuga a mímica do coração que escondido agora o que se abre feito enfim ser sem. Que nunca seja tarde a isto ao que se dá a quem que nunca seja tarde assim mesmo a cada vez aquele íntimo olhar olhos fechados este sem rumo uma vagueza boa este sem jeito este ser sem ter mesmo que ser. A cada vez esta primeira vez. Que nunca seja nada nem seja apenas si de tanto a mais. A minha consciência nua absurda crua primitiva inventa sorrisos únicos inventa melodias inventa exaustões e estrelas e a noite acorda a noite faz-se ver. As luzes morrem mesmo aquelas que se contam em bilhões de anos em bilhões de anos luz que mentem que falsificam versões luzem eternamente tremeluzem enfraquecem-se fingem existir e nós elaborando as existências nossas delas fingimos igualmente acreditar que nunca morrem os azuis que são como se fossem nossas sensações desimpedidas quando se abre aquela caixa quando se abre aquela porta quando se deixa escorrer entrar. Se a noite acaba a noite não acaba nunca se você está aqui se estamos se não está onde está. Onde está? É só uma pergunta ingênua inapelável tosca inconcebível mesmo. Na escuridão as palavras movem-se sem olhos tateiam superfícies e desprezam a necessidade do acerto. Pudesse vir soubesse concedesse desse e eu soubesse adivinhasse conseguisse cobrisse a cama o tapete os cantos as cortinas de flores recém molhadas de pétalas dizendo-se. Tarde mesmo a chuva foi embora as nuvens se conformaram há aqui. Há apenas aqui e se não for verdade é apenas uma pergunta é uma garganta de onde surgem desejos sofismas teorias incomunicáveis aquilo que jamais se pode mesmo dimensionar. Exerce-se a solidão das roupas num universo escuro recém criado as mãos são imensas os braços são gigantescos as mãos murmuram como uma essência faz-se. Nem nada more aqui nem nada mais acabe que tenha sido deixado nem nada diga-se. A si. A minha inconsciência um apelo um gato sob a aventura das vidas para sempre mudo um objeto largado num sótão uma sombra uma corrente de ouro dos tolos imagens com que batizo os meus olhos são camaleões são aqueles mesmos poentes iguais que nunca se repetem. Eu via cair as tábuas da casa eu vi as folhas caindo eu vi a escada ser recolhida a chave girar eu escuto eu vejo a cartola sendo mostrada sem nada dentro e então existe tudo o que se pode ver e o que não se quer e que se finge de escuro e escapa do imediato — no meio da noite de nada se sabe não se sabe de nada que não sejam o corpo único e o corpo dividido entre um outro as pernas entre outras pernas os braços sozinhos quando não se tem abraços são obscuros solitárias intenções são tristes. Se eu tocasse até até onde se então pudesse colher. É uma certeza de noite é uma certeza de múltiplos é uma certeza de insanidade infinita e cálculos que recuperam o princípio do círculo das perdas das paixões das frases que se reconsideram. As matas queimam e de nada adiantam esforços cumpre apenas olhar aquela música das chamas de nada adiantam bússolas neste quarto as matemáticas só podem diminuir portanto espanto tamanho e deixa-se estar. É só uma pergunta que isenta-se de fins e meios. É só uma garatuja uma imaginada sentença o máximo que se consegue ver na parede no muro nas catacumbas nos subterrâneos nos perdidos tempos longes porque sabem de tudo o que é noite de tudo o que é escasso de tudo que redondo pulsa de tudo que é imediato de tudo que é imensamente confesso. Deixa estar. Deixa estar.
Deixas.
Basta esta luz esta luz que foi apagada basta esta escuridão.
II.
Um interminável. Fiz. Tudo o que eu disser será usado contra mim num tribunal. Podia ser dito com flores. Mas as flores não existem. Preciso agora acreditar que não existem flores para que eu possa sobreviver. Quero sobreviver e preciso agora acreditar que as flores não existem não existem flores quero sobreviver. Das minhas mãos nascem desenhos eu perpetuo o tangível então faço uma eternidade dos traços e então sobrevivo e no escuro eu desenho pétalas elas formam uma beleza inconcebível e depois passo tinta por sobre eu que quero sobreviver. Das minhas mãos nascem sentidos melodias traços eu eternizo compassos e então sobrevivo. Pentimento. Não existem flores como não existem noites inteiras de amor como não existem verdes absolutos como não existem azuis definitivos no céu como não existem discursos que não envelheçam leis que não prescrevam como não existem traços que não envelhecem nos rostos.
Nada do que eu disser será usado. Nada do que eu disser será usado a meu favor. Nada do que eu construir inventar esconder disfarçar com um lindo papel de presente onde transbordam dourados e votos amabilíssimos com um laço em cima com uma fita caríssima nada do que eu disser terá a eficiência do brilho daquele papel de presente porque por dentro o que eu disse. Só isto. E depois de aberto, ora, depois de aberto o presente, depois que se sabe o que há dentro, depois que não se pode tomar nas mãos algo que não existe então nada do que eu disser será usável segurável proveitoso. E o coro dirá que isto um crime. O que eu calo para sempre. Publique-se.
Você vai me render flores e rimas. E depois vai converter em vaias. É como receber um buquê com o cartão errado. O moço da entrega se enganou apenas.
Embora não se perceba dada a conformação mimética dos discursos máscara sorrindo eu morrerei coberto de feridas sangrando por dentro e por fora um grito nenhum na garganta. Lá fora freios rangendo. Lá fora as hastes humílimas destituídas das antigas flores. E as pedras sendo amontoadas. E os freios rangendo. Em infinito silêncio, num trabalho secretíssimo e absoluto, as chagas se multiplicam. Embora não se possa perceber. Embora quase imperceptível a respiração é ainda o limite. Desfaça-se a luz.
A escuridão existe para proteger o invisível.
Os cachorros sonham em preto e branco.
Inveja do cão.
Luci Collin