quarta-feira, 30 de março de 2011

Fiódor Dostoiévski - Os Irmãos Karamazov

Sabes, meu caro, que havia um velho pecador no século XVIII que disse: "Si Dieu n'existait pas, il foudrait 1'inventer"? (*)  E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso não é que Deus exista realmente, mas que essa idéia da necessidade de Deus tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mal como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz ao homem. Quanto a mim, renunciei desde muito tempo a perguntar a mim mesmo se foi  Deus quem criou o homem ou o homem quem criou Deus. Bem entendido, não passarei em vista todos os axiomas que os adolescentes russos deduziram das hipóteses européias, porque o que na Europa é uma hipótese, torna-se logo um axioma para os ditos adolescentes, e não somente para eles, mas para seus professores, que muitas vezes se lhes assemelham. De modo que afasto todas as hipóteses: qual é, com efeito, nosso desígnio? Meu desígnio é explicar-te  o mais rapidamente possível a essência do meu ser, minha fé e minhas esperanças. Assim declaro admitir Deus, pura e simplesmente. É preciso notar, no entanto, que, se Deus existe,  se criou verdadeiramente a Terra, fê-la, como se sabe, segundo a geometria de Euclides,  e não deu  ao espírito humano senão a noção das  três dimensões do espaço. Entretanto, encontram-se ainda geômetras e filósofos, mesmo eminentes, para duvidar de que todo o universo e até mesmo todos os mundos tenham sido criados somente de acordo com os princípios de Euclides. Ousam mesmo supor que duas paralelas que, de acordo com as leis de Euclides, jamais se poderão encontrar na Terra, possam encontrar-se em alguma parte, no infinito. Decidi, sendo incapaz de compreender mesmo isto, não procurar compreender Deus. Confesso humildemente minha incapacidade em  resolver tais questões; tenho essencialmente o espírito de Euclides: terrestre. De que serve querer resolver o que não é deste mundo? E aconselho-te a jamais quebrar a cabeça a respeito, meu amigo Aliócha, sobretudo a respeito de Deus:  existe ele ou não? Essas questões estão fora do alcance de um espírito que só tem a noção das três dimensões. Assim, admito Deus, não só voluntariamente, mas ainda sua sabedoria, seu fim que nos escapa; creio na ordem, no sentido da vida, na harmonia eterna, na qual se pretende que nos fundiremos um dia: creio no Verbo para o qual propende o Universo que está em Deus e que é ele próprio Deus, até o infinito. Estou no bom caminho? Imagina que, em definitivo, esse mundo de Deus, eu não o aceito, e embora saiba que ele existe,  não o admito. Não é Deus que repilo, nota bem, mas a criação; eis o que me recuso admitir. Explico-me:  estou convencido, como uma criança, de que o sofrimento desaparecerá, que a comédia revoltante das contradições humanas se esvanecerá como uma lamentável miragem, como a manifestação vil da impotência mesquinha, como um átomo do espírito de Euclides; que no fim do drama, quando aparecer a harmonia eterna, uma revelação se produzirá, preciosa a ponto de enternecer todos os corações, de acalmar todas as indignações, de resgatar todos os crimes e o sangue vertido; de sorte que se poderá não só perdoar, mas justificar tudo quanto se passou sobre a Terra. Que tudo isso se realize, seja, mas não o admito e não quero admiti-lo. Que as paralelas se encontrem sob meus olhos, verei e direi que se encontraram; e no entanto não o admitirei. Eis o essencial, Aliócha, eis minha tese. Comecei expressamente nossa conversa duma maneira que não podia ser mais idiota, mas levei-a até minha confissão, porque é o que esperas. Não era a questão de Deus que te interessava, mas a vida espiritual do teu irmão querido. Tenho dito.

Fiódor Dostoiévski - Os Irmãos Karamazov

* "Se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo."
Citação da Epístola -  "Três Impostores", de Voltaire.