sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Aldous Huxley, As Portas da Percepção

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscedência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
Muitos desses universos são suficientemente semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreensão por dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. Assim, recordando nossos próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer de outras pessoas em circunstâncias análogas; somos até capazes de nos pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu campo, porém os lugares ocupados pelo insano e pelo gênio são tão diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato na memória de cada um para servir de base à compreensão ou a ligação entre eles. Falam, mas não se entendem. As coisas e fatos que símbolos se referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente.
(...)
Sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios. As palavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, não conseguem produzir imagens em minha mente. Não vêm ao meu encontro visões hipnagógicas no limiar do sono. Quando me lembro de algo, a memória não se me apresenta como um fato ou objeto vivido. Por um esforço da vontade, consigo evocar uma imagem não muito vivida do que aconteceu na tarde da véspera, de como era o Lungarno antes de as pontes terem sido destruídas ou da estrada de Bayswater quando os poucos ônibus eram verdes e pequeninos, puxados por velhos cavalos a uns seis quilômetros por hora. Mas essas imagens terão pouca substância, e de forma alguma poderão ter vida própria. Guardam, para os objetos reais, a mesma proporção que os fantasmas homéricos apresentam com relação aos homens de carne e osso que vão visitá-los nas sombras. Só quando tenho febre alta é que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cuja imaginação é fértil, meu mundo interior terá de parecer curiosamente monótono, limitado e desinteressante. Este era o mundo — um pobre mundo, porém meu — que eu esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo.


Aldous Huxley, As Portas da Percepção