quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Lya Luft, Mar de dentro
A casa onde eu nasci, embora já não seja minha, permanece intacta em mim como a escultura de uma caravela em uma garrafa: uma casa dentro da memória. Nunca mais foi como aquele o cheiro de lençóis limpos nem o aroma das comidas, a música das vozes amadas e o crepitar das lareiras, nunca mais a mesma sensação de acolhimento, nunca mais pertencer a nada com tamanha certeza.
Delícia de tatear os objetos conhecidos e os espaços entre eles com os lábios, olhos, dedos, com a alma; tudo entreaberto, quase meu, quase revelado em mim. O que faltava decifrar era meu par de asas, pois eu voava.
Adormecer ancorada na ordem da vida confirmada pelos cuidados da mãe, os passos do pai, os contornos do quarto onde o familiar apaziguava tudo. Mas às vezes o sono tardava e o tempo da insônia era como atravessar a precária ponte entre o vazio e as coisas reasseguradas, sem saber se aquele anjo da guarda de belos olhos no quadro sobre minha cama conseguiria me proteger.
Não tenho nostalgia dessa fase, pois ela faz parte de mim. Está aqui para ser lembrada, nítida ou fugidia, - sempre intensa. A vida era uma casa ordenada, a casa uma concha amorosa na calma cidade entre morros azuis, a vida era a família protetora com seu fluxo de laços reproduzindo um perfil, um gesto, a cor de uns olhos, rostos de tantas idades, - e eu pertencia àquilo tudo também.
Lya Luft, Mar de dentro