sábado, 27 de novembro de 2010

Relações de Fé

Ans Markus 

Um menino de oito anos observa uma janela e comenta: olha ali aquele vidro, mamãe, tem uma mancha esquisita, parece com uma santa, não parece? A mãe acha que parece o bico de uma mamadeira, mas o guri diz que a mãe não está vendo direito e chama o pai, que acha a figura igualzinha a Nossa Senhora, é esperto esse pirralho.
Aí a mãe chama o vizinho pra tirar a dúvida, e o vizinho cai de joelhos, e então a novidade ganha a rua, e o pessoal todo do bairro vem espiar, e alguém liga para uma estação de rádio que bota no ar a notícia, que se espalha e chega aos ouvidos dos repórteres do Jornal Nacional. Especialistas examinam e dizem que tudo não passa de um efeito gerado pelo aquecimento do vidro, mas ninguém quer saber de ter sua crença abalada. A peregrinação é espantosa, já tem até vendedor de cachorro-quente na porta da casa, e pipocam fonógrafos e pagadores de promessa. Saiam pra lá, seus céticos. É Nossa Senhora, sim, que veio nos mandar um aviso: “É na desesperança que o povo reencontra sua fé”. Ou qualquer coisa assim, ninguém ouviu direito.
Debocho sim. Não dá para levar a sério esse carnaval cada vez que alguém diz que viu uma estátua chorar ou Jesus piscar os olhos para alguém durante a missa do domingo. Sei que essas ilusões de ótica fazem parte da nossa cultura popular e pitoresca, mas então que se assuma a brincadeira, que se transforme isso em quermesse, e não em catolicismo cetgo.
Eu, pelo visto, levo a religião mais a sério do que essa gente que abandona o feijão queimando no fogo pra ficar plantada diante de uma janela com o terço na mão. Não acredito em milagre, mas acredito na fé, acho importante cultivar a esperança e valorizar o pensamento positivo, os valores fundamentados, a força de vontade, a paixão, a solidariedade. O que atrasa o mundo é gente transformando Fé em fanatismo. Fanáticos são os que doam seu suado dinheirinho para salvadores da pátria, são os que ficam inativos esperando soluções caídas do céu, são os que esfolam os joelhos subindo escadarias para agradecer uma graça alcançada. Graças são alcançadas pela medicina, pela sorte, pelo trabalho e pela inteligência: nunca pela ignorância.


Martha Medeiros