quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Mel & girassóis - 4

4

Conversaram, no oitavo ou nono dia. Nadaram juntos na praia, primeiro. Depois ela sentiu sede, ele pagou outro suco de limão, tomou outra cerveja. Deitados na areia, lado a lado, falaram. Se você quer que eu conte, repito, mas não é nada original, garanto. Ela era qualquer coisa como uma Psicóloga Que Sonhava Escrever Um Livro; ele, qualquer coisa como um Alto Executivo Bancário A Fim De Largar Tudo Para Morar Num Barco Como O Amir Klink. Ela, que quase não fumava, aceitou um cigarro. E disse que gostava de Fellini. Ele concordou: demais. Para a surpresa dela, ele falou em Fasbinder. Ela foi mais além, rebateu com Wim Wenders. Ele então teve um pouco de medo, recuou e contemporaneizou em Bergman. Ela disse ah, mas avançou ainda mais e radicalizou em Philip Glass. Ele disse não vi o show, e a começou a discorrer sobre minimalismo: um a zero para ele. Ela aproveitou para fazer uma extensa, um tanto tensa, digressão sobre qualquer coisa como Identidades Da Estética Minimalista Com O Feeling Da Bossa-Nova. Ele ouviu, espantado: um a zero para ela.

Empatados, encontraram-se em João Gilberto, que ouviam sozinhos em seus pequenos mas bem decorados apartamentos urbanos, quando queriam abrir o gás, jogar-se pela janela ou cortar os pulsos, e não tinham ninguém na madrugada. Encontraram-se tanto que, mais de meio-dia, ela aceitou também uma cerveja. Meio idiotas, mas tão felizes, ficaram cantando O Pato, enquanto todos aqueles Atletas Dispostos A Tudo Por Um Corpo Mais Perfeito, Gays Fugindo Da Paranóia Urbana Da Aids, Senhoras Idosas Porém Com Tudo Em Cima, e por aí vai, retiravam-se em busca do almoço. O sol queimava queimava. Então ele viu um barquinho a deslizar, no macio azul do mar, mostrou para ela, que viu também, e apontaram, e riram, e o sol não parecia tão ardente ― era o oitavo ou nono dia de bronzeado. Aquele, quando o moreno já dominou a pele você pode, sem susto, tirar os raibans, como ela tirou, para encarar a ele ou a qualquer um outro, direto nos olhos. Que sorriam. Tudo era tão tropical, estavam de férias, morreram de rir, falaram a gente se vê, sem pressa, ao se despedirem na porta dos bangalôs, o dela era o número 19, ele marcou na cabeça. E foram cada um tomar seu banho de água doce.
Descobriram à noite, dançando Love is a Many Splendored Thing. No começo, afastados, depois cada vez mais próximos, à medida em que o maestro do conjuntinho enveredava por ciladas como Beatles, Caetano ou Roberto Carlos. Cantaram juntos Eleanor Rigby, tinham os dois mais de trinta, e ela de repente ficou toda arrepiada com vou-cavalgar-toda-a-noite, encostou a cabeça no ombro dele. Ele apertou mais forte na cintura dela. E foram assim, rodando meio tontos, às vezes sentando para falar de Pessoa, Maísa ou Clarice. Aos poucos descobrindo, localizando, sitiando.

Ele tentava esquecer uma mulher chamada Rita. Conforme o uísque diminuía na garrafa, Rita misturava-se aos poucos com outra chamada Helena, ele repetia como-amei-aquela-mulher-nunca-mais-nunca-mais, enquanto ela sentia algum ódio, mas não dizia nada, toda madura repetindo isso-passa-questão-de-tempo-tudo-bem. Para espanto dele, ela falou o nome daquele homem de antes, de outros também, Alexandre, Lauro, Marcos Ricardo ― ah, os Ricardos: nenhum presta ― e ele também sentiu certo ódio, nada de grave, normal, tempos modernos, mero confronto de descornos. Falaram então sobre as paixões, os enganos, as carências e todas essas coisas que acontecem no coração da gente e tudo, e nada. Dançaram de novo. Ele achava tão bom debruçar o rosto naquela curva do pescoço dela. Ela achava um pouco forte estar-se exibindo assim com um homem afinal desconhecido debruçado desse jeito no pescoço dela, mas encostava mais e mais a bacia na bacia dele ― a pelve, a pelve, repetia, mentalmente ensaiando passos de dança e-um-e-dois-e-três ―, um homem tão abandonado e limpinho cheirando não sabia ainda se a Paco Rabanne ou Eau Sauvage, seria Phebo? Cheiro de homem direito decente e porra caralho: afinal, estavam de férias. E livres, mas esse maldito vírus impõe prudência. Ela deixou que a mão dele descesse até abaixo da cintura dela. E numa batida mais forte da percussão, num rodopio, girando juntos, ela pediu:
Deixa eu cuidar de você.
Ele disse:
Deixo.


Caio Fernando Abreu