quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Pintura de © Montserrat Gudiol

Fala-me agora, que estou cansado,
agora, que já voltaste, e conheces o mundo,
de cada lado.

Fala-me como alguém que já sabe da vida
e da sua seiva mais tenebrosa
e que transporta sua alma partida.

Fala-me como se a morte amanhã chegasse
e pusesse a fria coroa da lua
sobre a tua face.

Fala-me e dize que me ouviste um dia,
e que estavas só, perdido, acabado,
e tiveste alegria.

Fala-me, enfim, como nunca no mundo
ninguém já falou a um irmão, a um amigo
- abre o teu coração até o fundo.

Para que eu morra com o contentamento
de que o meu amor não foi um dom perdido,
lágrima no mar, suspiro no vento.

Que se pode ainda amar como em sonhos antigos,
sem mãos e sem voz, sem olhos, sem passos,
além de glórias e perigos.

Fala-me como alguém que me viu tão de frente
que eu não posso saber se é o meu próprio retrato
num espelho clarividente.


Cecília Meireles