domingo, 28 de novembro de 2010
Af. 79 - O Encanto da imperfeição
Vejo aqui um escritor que, como tantas pessoas, seduz mais pelas suas imperfeições do que por tudo que sai elaborado e perfeito de suas mãos; pode mesmo dizer-se que a sua glória e a sua superioridade derivam da sua impotência em finalizar, mais do que do seu abundante vigor. Sua obra nunca exprime a fundo aquilo que gostaria de dizer exatamente, aquilo que desejaria ter visto perfeitamente: parece ter havido nele o antegosto de uma visão e nunca essa própria visão... mas dela lhe ficou, no fundo da alma, prodigioso desejo, e é nela que vai mergulhar a sua tão prodigiosa eloquência: do desejo e da fome. É graças a ela que eleva aqueles que o ouvem acima da sua obra e de todas as "obras", e lhes dá asas para subir mais alto do que normalmente os ouvidos alcançariam. Desta forma, transformados assim eles próprios em poetas e em videntes, prestam ao artífice da sua felicidade a mesma homenagem de admiração que lhe prestariam se ele os tivesse levado à imediata contemplação do seu santuário mais íntimo e mais sagrado, a mesma homenagem se ele tivesse atingido o seu objetivo, se ele tivesse verdadeiramente visto e mostrado a sua visão. Sua glória beneficia-se pelo fato de não ter exatamente atingido o seu objetivo.
Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência