Enquanto o cavaleiro tocava, o eremita assumia o ar de um crítico de prestígio de hoje assistindo a uma nova ópera. Inclinou-se para trás no banco e, de olhos semicerrados, ora fazia girar os polegares, com dedos entrelaçados, ora acompanhava o ritmo da canção com as mãos espalmadas, que se agitavam gentilmente no ar, como se estivesse inteiramente absorto na música. Quando a voz do cantor não podia elevar-se tão alto como exigia a melodia, o ermitão prestava-lhe um pequeno auxílio, cantando-a também de acordo com o seu gosto. Terminada a canção, o anacoreta declarou enfaticamente que era bonita e fôra muito bem cantada.
- Não obstante - acrescentou ele -, parece-me que o meu compatriota tem convivido muito com os normandos, para adotar o tom melancólico das suas canções. Que fôra o honesto cavaleiro fazer fora do país? E que poderia ele encontrar , na volta, senão a sua bela agradavelmente comprometida com um rival, e a sua serenata, como lhe chama, acolhida como o mio de um gato na sarjeta? Contudo, Sir Cavalheiro, bebo esta taça à vossa saúde e a de todos os verdadeiros amantes. Receio muito, porém, que não pertençais ao número deles - acrescentou o ermitão, vendo que o cavaleiro, cujo cérebro começava a anuviar-se com tão repetidas libações, misturava no vinho, por engano, a água que se achava na jarra.
- Ora essa! - exclamou o cavaleiro. - Acaso não me dissestes que esta água era da fonte do vosso abençoado padroeiro, São Dunstan?
- É verdade - disse o ermitão. - E centenas de pagãos foram nela batizados; mas nunca ouvi dizer que a bebessem. Neste mundo todas as coisas devem ser empregadas conforme o uso a que se destinam. São Dunstan conhecia, tão bem como qualquer pessoa, as prerrogativas de um frade jovial.
E, proferindo essas palavras, tomou da harpa, entretendo o seu hóspede com a seguinte canção característica acompanhada de uma espécie de estribilho, derry-down, que se encontra numa antiga canção inglesa:
O FRADE DESCALÇO
I
Dar-te-ei, bom camarada, doze meses, ou o dobro,
para procurares pela Europa, de Bizâncio à Espanha;
mas jamais encontrarás, por muito que te canses,
um homem tão feliz como o frade descalço.
II
Se um cavaleiro pela dama empreende uma jornada,
e às vésperas é trazido varado pela espada,
eu à pressa o confesso: para a sua dama
já não há conforto na terra, salvo o frade descalço
III
O vosso monarca? Psiu!... Muitos reis temos visto
pelo capuz e pelo hábito trocar as suas vestes...
mas qual de nós sente o menor desejo
de pela coroa trocar o capuz cinzento de um frade?
IV
O frade pôs-se a caminho, mas, onde quer que tenha ido,
a terra e os seus frutos a ele se destinam;
pode perambular por onde lhe aprouver, parar se está cansado
pois a casa de todos os homens é a casa do frade descalço.
V
Esperam-no ao meio-dia e ninguém, até que chegue,
pode profanar o lugar de honra e o caldo de ameixas;
porque as melhores iguarias e o lugar junto ao fogo
são direitos inegáveis do frade descalço.
VI
Aguardam-no à noite e a ceia está pronta;
abrem a boa e escura cerveja - enchem-se as jarras.
E a dona da casa sacrificaria o marido
para que um travesseiro macio não faltasse ao frade descalço
VII
Viva a sandália, a corda e o capuz,
o medo ao Diabo e a confiança no papa!
pois colher as rosas da vida, despidas de espinhos,
é permitido somente ao frade descalço.
- Por minha fé - exclamou o cavaleiro -, cantastes bem, com vigor e com honra para a vossa ordem! E, por falar no Diabo, santo padre, não tendes medo de que ele vos apareça por aí qualquer dia, durante algum dos vossos passatempos poucos canônicos?
Walter Scott, Ivanhoé