sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Tempo viajado


DOS MEUS RETRATOS rasgados
Me recomponho,
Com minhas espumas de acaso,
Meus solos vivos de fogo.
Muito se sofre.
As doces uvas sabem a enxofre.

Vulcões mordem as raízes
Das minhas plantas.
Em barcos postos a pique,
Naufragaram minhas lembranças.

Dizei-me por que lugares
Que pastores pastoreiam
Até sempre estas saudades
A mim mesmo tão alheias.

Muito se pena.
E vimos na areia morrer a sirena.

Procuro pelo meu rosto
O tempo que se desprende.
Que agulhas de desencontro
Separaram minha gente?

Dos meus retratos rasgados
Me levanto.
E acho-me toda em pedaços,
E assim mesmo vou cantando.

Muito se perde:
Pela terra negra ou pela água verde.

(Se Deus agora me visse,
abaixaria seus olhos
e ficaria mais triste.)


Cecília Meireles