sábado, 2 de outubro de 2010


O que foi que aconteceu comigo? Como foi que me salvei do asco? O que foi que rejuvenesceu meu olho? Como foi que alcancei as alturas nas quais não há mais gentalha sentada junto à fonte?

Foi o próprio asco que me deu asas e forças capazes de pressentir as fontes? De verdade, eu tive de voar ao lugar mais alto para poder reencontrar a nascente do prazer!...

Ah, e eu a encontrei, meus irmãos! Aqui, no lugar mais alto, a nascente do prazer jorra sobre mim! E há uma vida na qual não há gentalha nenhuma bebendo junto!

Quase jorras demasiado violenta sobre mim, oh, fonte do prazer! E muitas vezes esvazias a caneca ao quereres enchê-la.

E mesmo assim tenho de aprender a me aproximar de ti de um modo mais humilde: meu coração ainda corre ao seu encontro com demasiada violência:

- Meu coração, sobre o qual meu verão queima, esse verão curto, quente, taciturno e supra-aventurado: como o meu coração canicular clama por teu frescor!

Passada é a tristeza vacilante da minha primavera! Foram-se os flocos de neve da minha maldade em junho! Verão eu me tornei, verão à tarde...

- Um verão no alto com fontes frescas e sossego venturoso: oh, vinde, meus amigos, a fim de que o sossego se torne ainda mais venturoso!

Pois essa é a nossa altura e a nossa pátria: nós moramos num lugar alto e escarpado por demais para as pessoas impuras e sua sede.

Lançai apenas vossos olhos puros à nascente do meu prazer, amigos! Por que ela haveria de se turvar? Rir ao vosso encontro com sua pureza, é o que ela há de fazer.

Sobre a árvore Futuro nós faremos nosso ninho; águias haverão de trazer alimento para nós, solitários, em seus bicos!

De verdade, nenhum alimento do qual poderão comer os impuros! Eles pensariam estar devorando fogo e queimariam suas bocas.

De verdade, não mantemos aqui nenhuma morada disponível a impuros! Seus corpos e seus espíritos chamariam nossa ventura de cavernas de gelo!

E que ventos fortes nós queremos vivenciar sobre eles; vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do sol: vivam, portanto, os ventos fortes.

E como um vento quero, ainda uma vez, soprar entre eles, e com o meu espírito, roubar o fôlego ao espírito deles: é assim que o quer meu futuro.

De verdade, Zaratustra é um vento forte para todas as planícies; e um conselho desses ele dá a seus inimigos e a tudo que cospe e escarra: guardai-vos de escarrar contra o vento!...

Friedrich Nietzche, Ecce homo 
(citação do Zaratustra, Parte II, "Da gentalha")