quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Af. 57 – Aos Realistas


Vós, homens sóbrios, que vos sentis tão protegidos contra a paixão e as quimeras e que tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um orgulho e um ornamento de seu vazio, dai-vos, a vós próprios, o nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal como vos aparece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade... Ó queridas imagens de Sais! Mas não sereis ainda vós próprios, mesmo o vosso estado sem véu, seres obscuros e altamente apaixonados se vos compararmos aos peixes, e ainda demasiado parecidos com artistas apaixonados?... E o que seria a “realidade” aos olhos de um artista apaixonado? Ainda não deixaste de julgar as coisas como fórmulas que têm a sua origem nas paixões e nos complexos amorosos dos séculos passados! A vossa frieza está ainda cheia de uma secreta e inextinguível embriaguez! O vosso amor pela “realidade”, se for necessário escolher-vos um exemplo, que coisa antiga! Antiquíssima! Não há sentimento, sensação, que não contenham uma certa dose desse velho amor, que não tenham sido também, trabalhados e alimentados por qualquer exagero da imaginação, por um preconceito, uma falta de razão, uma incerteza, um receio, e alguma coisa a mais que contribuiu para tecê-la! Vede esta montanha e aquela nuvem? O que é deveras “real” nelas? Tirai-vos os aspectos fantasmagóricos, homens sóbrios, e também todo o acréscimo humano! Sim, se puderdes fazê-lo! Caso pudésseis esquecer seu passado, sua procedência, sua pré-escola – toda sua animalidade e humanidade! Para nós, não existe “realidade” e muito menos para vós, homens sóbrios ! Não existem diferenças entre nós, como pensais. E, talvez, a vossa crença de que seríeis incapazes de embriaguez, seja tão respeitável quanto a nossa vontade honesta em ultrapassá-la.


Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência