quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Stendhal (Marie-Henri Beyle), O Vermelho e o Negro



- Que idade tem, senhor? - perguntou ela a Julien.
- Quase dezenove anos.
- Meu filho mais velho tem onze - tornou a Sra. de Rênal, completamente tranquilizada -, vai ser quase um camarada para o senhor. O senhor saberá tratar com ele. Uma vez o pai quis bater-lhe. O menino ficou uma semana doente. Entretanto, foi apenas um tapinha.
"Que diferença entre ele e mim", pensou julien. "Ainda ontem meu pai me espancou. Como é feliz a gente rica!"
A Sra. de Rênal começava já a querer surpreender as mínimas nuanças do que se passava na alma do preceptor; tomou aquele movimento de tristeza por timidez e tentou encorajá-lo.
- Como é seu nome, senhor? - disse ela com um acento e uma graça de que Julien sentiu todo o encanto.
- Chamo-me Julien Sorel, minha senhora. Tremo ao entrar, pela primeira vez na minha vida, em uma casa estranha. Preciso da sua proteção e do seu perdão para muitas coisas nos primeiros dias. Nunca estive no colégio; era muito pobre. A não ser com o meu primo cirurgião-mor, membro da Legião de Honra, e com o Sr. Cura Chélan, nunca falei com outros homens. O senhor cura pode dar-lhe informações a meu respeito. Meus irmãos me espancavam sempre; não acredite se eles falarem mal de mim. Perdoe os meus erros, minha senhora, pois nunca serão intencionais.
Enquanto falava, Julien se ia tornando senhor de si; e examinava a Sra. de Rênal. Tal é o efeito da graça perfeita, sempre que é natural e sobretudo quando a pessoa que ela ornamenta nem sonha em possuí-la. Julien, que se sentia conhecedor da beleza feminina, era capaz de jurar naquele instante que ela não tinha mais de vinte anos. Teve, de súbito, a idéia atrevida de beijar-lhe a mão. A seguir teve medo da sua idéia. Pensava, um momento depois: "É uma covardia minha não realizar uma ação que me pode ser útil e diminuir o desprezo que essa linda senhora provavelmente tem por um pobre operário recém arrancado à serraria". Talvez Julien se sentisse encorajado pelas palavras "rapaz bonito" que, havia seis meses, ele ouvia repetir aos domingos por algumas moças. Durante esses debates interiores, a Sra. de Rênal lhe dirigia algumas palavras, instruindo-o sobre o modo de iniciar a sua tarefa com as crianças. A coação que Julien fazia a si mesmo tornou-o, novamente, muito pálido; disse, num ar constrangido:
- Nunca, minha senhora, eu baterei em seus filhos. Juro-o perante Deus.
E, ao dizer essas palavras, ousou tomar a mão da Sra. de Rênal e levá-la aos lábios. Ela espantou-se com esse gesto, e, pensando melhor, sentiu-se chocada. Como fizesse muito calor, seu braço estava completamente nu sob o xale; e o movimento de Julien, levando-lhe a mão aos lábios, deixara-o inteiramente a descoberto. Ao cabo de alguns instantes ela repreendeu a si mesma; pareceu-lhe que não se mostrara imediatamente indignada.
[...]
Mais de uma hora depois, quando o Sr. de Rênal voltou com o preceptor vestido de preto, tornou a encontrar a mulher no mesmo lugar. Sentiu-se tranquilizada com a presença de Julien; enquanto o examinava, esquecia-se de ter medo. Julien não pensava nela; apesar de toda a sua desconfiança do destino e dos homens, a sua alma, naquele momento, era a de uma criança; parecia-lhe ter vivido anos desde o momento em que, três horas antes, encontrava-se trêmulo, na igreja. Observou o ar glacial da Sra. de Rênal, compreendeu que ela estava zangada com o fato de ele haver ousado beijar-lhe a mão. Mas o sentimento de orgulho que lhe dava o contato com roupas tão diferentes das suas punha-o de tal forma fora de si, e era tão grande o seu anseio de esconder a alegria, que todos os seus movimentos tinham qualquer coisa de brusco e de louco. A Sra. de Rênal contemplava-o com olhos espantados.
[...]
A hora que Julien passou no quarto pareceu um instante à Sra. de Rênal. As crianças, avisadas da chegada do preceptor, atormentavam a mãe com perguntas. Finalmente apareceu Julien. Era outro homem. Dizer que estava grave seria dizer pouco: Era a própria gravidade encarnada. Foi apresentado aos meninos e falou-lhes com um tom que espantou até o Sr. de Rênal.
- Aqui estou, meus senhores - disse, concluindo a sua alocução -, para ensinar-lhes latim. Já sabem o que é dar uma lição. Aqui está uma santa Bíblia - disse, mostrando-lhes um pequeno volume in-32, de capa preta. - É especialmente a história de Nosso Senhor Jesus Cristo, é a parte que se chama o Novo Testamento. Seguidamente eu lhes tomarei a lição; tomem agora a minha.
Adolphe, o mais velho, apanhara o livro.
- Abra ao acaso - prosseguiu Julien - e leia a primeira palavra de um parágrafo. Eu direi de cor o livro sagrado, norma da conduta de todos nós, até me mandarem parar.
Adolphe abriu o livro, leu uma palavra e Julien disse toda a página com a mesma facilidade com que falaria o francês. O Sr. de Rênal olhava para a mulher com um ar de triunfo. As crianças, vendo o espanto dos pais, arregalavam os olhos. Um criado veio para a porta do salão; Julien continuou a falar latim. A princípio, o criado ficou imóvel e, a seguir, sumiu-se. Logo depois, a criada de quarto da senhora e a cozinheira chegaram perto da porta; já então Adolphe havia aberto o livro em oito lugares, e Julien continuava a recitar com a mesma facilidade.
- Ah! Santo Deus! Que lindo padrequinho! - disse, alto, a cozinheira, boa rapariga muito devota.
O amor próprio do Sr. de Rênal estava intranquilo; longe de pensar em examinar o preceptor, estava ele completamente ocupado em buscar na memória algumas palavras latinas; pôde, finalmente, dizer um verso de Horácio. De latim, Julien só conhecia a sua Bíblia. Respondeu, cerrando o cenho:
- O santo ministério a que me destino proibe-me a leitura de um poeta tão profano.
O Sr. de Rênal citou um número bastante elevado de pretensos versos de Horácio. Explicou aos filhos o que vinha a ser Horácio. Mas as crianças, tomadas de admiração, não prestavam a menor atenção ao que ele dizia. Olhavam para Julien.
Continuando os criados à porta, Julien entendeu que devia prolongar a prova:
- É preciso - disse ele ao menor dos meninos - que o Sr. Stanilas-Xavier também me indique uma passagem do livro santo.
O pequeno Stanisla, todo orgulhoso, leu como pôde a primeira palavra de um versículo e Julien disse toda a página. Para que nada faltasse ao triunfo do Sr. de Rênal, quando Julien estava recitando, entraram o Sr. Valenod, o possuidor dos belos cavalos normandos, e o Sr. Charcot de Maugiron, subprefeito do distrito. Essa cena valeu a Julien o título de "senhor", os próprios criados não se atreveram a recusar-lho.
De noite, Verrières inteira afluiu à casa do Sr. de Rênal para ver a maravilha. Julien, respondeu a todos com um ar sombrio, que os mantinha à distância. Sua glória propagou-se tão rapidamente pela cidade que poucos dias depois, o Sr. de Rênal, como medo de que lho arrebatassem, propôs a ele um contrato por dois anos.
- Não senhor - respondeu friamente Julien -, pois, se o senhor quiser despachar-me eu serei obrigado a sair. Um compromisso que me liga ao senhor sem o obrigar a nada não é justo; recuso-o.
Julien soube conduzir-se de tal forma que, menos de um mes, depois da sua chegada à casa, o próprio Sr. de Rênal o respeitava. Estando o cura de relações cortadas com o Sr. de Rênal e o Sr. Valenod, ninguém pôde denunciar a antiga paixão de Julien por Napoleão. E ele só se referia a este com verdadeiro horror.

Stendhal (Marie-Henri Beyle), O Vermelho e o Negro