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| Leão Tolstói |
Já escurecera de todo. Ao sul, onde pousava os olhos, o céu estava claro, as nuvens acastelavam-se no lado oposto. Um relâmpago riscou a abóbada celeste e ao longe ouviu-se um trovão. Liêvin escutava atentamente as gotas que caíam rítmicas nas tílias do jardim, enquanto contemplava o triângulo de estrelas que lhe era familiar e a Via-Láctea que o atravessava pelo meio. De cada vez que cintilava um relâmpago, não só desaparecia a Via-Láctea, mas também as estrelas rutilantes. Porém, quando os relâmpagos se desvaneciam, as estrelas tornavam a aparecer no mesmo sítio, como que atiradas por mão certeira.
"Vejamos, que vem a ser isto que me perturba?", pergunta Liêvin a si próprio, sentindo, no fundo da sua alma, a solução para as suas dúvidas, embora ainda não soubesse qual fôsse.
"Sim, a única manifestação evidente e indiscutível da Divindade está nas leis do bem, expostas ao mundo pela revelação que sinto dentro de mim e me identifica, quer queira quer não, com todos aqueles que como eu as reconhecem. É esta congregação de criaturas humanas comungando na mesma crença que se chama Igreja. Mas os judeus, os muçulmanos, os budistas, os confucionistas?", disse para si mesmo, repisando o ponto delicado. "Estarão eles entre milhões de homens privados do maior de todos os benefícios, do único que dá sentido à vida?... Ora vejamos", continuou, após alguns instantes de reflexão, "qual é o problema que eu me estou pondo? O das relações das diversas crenças da humanidade com a Divindade? É a revelação de Deus no universo, com os seus astros e as suas nebulosas, que eu pretendo sondar. E é no momento em que me é revelado um saber certo inacessível à razão que eu me obstino em recorrer à lógica!
"Eu bem sei que as estrelas não caminham", prosseguiu notando a mudança que se operara na posição de um planeta que subia por detrás de uma bétula. "No entanto, incapaz de imaginar a rotação da Terra ao ver as estrelas mudarem de lugar, tenho razão quando digo que elas caminham. Teriam os astrônomos chegado a compreender tudo isso, teriam chegado a calcular alguma coisa, se porventura houvessem tomado em consideração movimentos da Terra, tão variados e complicados? As surpreendentes conclusões a que eles chegaram sobre distância, o peso, o movimento e as revoluções dos corpos celestes não terão por ponto de partida os movimentos aparentes dos astros em torno da Terra imóvel, estes mesmos movimentos de que eu sou testemunha, como milhões de homens o foram e o serão durante séculos e que sempre podem vir a ser verificados? Pela mesma razão que as conclusões dos astrônomos seriam vãs e inexatas se não fossem deduzidas das observações do céu aparente, em relação a um único meridiano e a um único horizonte, também as minhas deduções metafísicas se veriam privadas de sentido se eu as não fundamentasse neste conhecimento do bem inerente ao coração de todos os homens e de que eu tive, pessoalmente, a revelação, graças ao cristianismo, e que sempre me será dado verificar na minha alma. As relações das outras crenças com Deus continuarão para mim insondáveis, e eu não tenho o direito de as perscrutar."
- Que, pois tu ainda estás aí? - disse, de súbito, a voz de Kitty, que voltava para o salão. - Não tens nada que te preocupe? - insistiu ela, procurando ler no rosto do marido, à claridade das estrelas. Um relâmpago que atravessou o espaço entremostrou-lho sereno e feliz.
"Ela compreende-me", pensava Liêvin, vendo-a sorrir: "E bem sabe em que eu estou pensando. Devo dizer-lho? Sim."
No momento em que ia falar, Kitty interrompeu-o.
- Faze-me o favor, Kóstia - disse ela -, vai dar uma olhadela ao quarto do Sérgio Ivánovith. Estará tudo em ordem? Ter-lhe-iam posto um lavatório novo? A mim custa-me ir lá.
- Está bem, vou - respondeu Liêvin, beijando-a.
"Não, é melhor calar-me", decidiu ele, enquanto a mulher entrava no salão. "Este segredo só tem importância para mim, e palavra alguma o poderia explicar. Este novo sentimento não me modificou, não me deslumbrou, nem me tornou feliz, como eu supunha. Sucedeu a mesma coisa com o amor paternal, que não foi acompanhado de surpresa ou de deslumbramento. Devo chamar-lhe fé? Não sei. Sei apenas que me penetrou na alma através do sofrimento e nela se implantou com toda a firmeza.
"Continuarei, sem dúvida, a impacientar-me com o meu cocheiro Ivan, a discutir inutilmente, a exprimir mal as minhas próprias idéias. Sentirei sempre uma barreira entre o santuário da minha alma e a alma dos outros, mesmo a da minha própria mulher. Sempre tornarei Kitty responsável dos meus terrores, arrependendo-me logo em seguida. Continuarei a rezar sem saber por que rezo. Que importa? A minha vida não estará mais à mercê dos acontecimentos, cada minuto da minha existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir!"
Leão Tolstói*, Ana Karênina
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* Liev Tolstói, também conhecido como Léon Tolstói ou Leão Tolstói ou Leo Tolstoy (wikipédia)
