sábado, 31 de julho de 2010

Miguel de Cervantes Saavedra , Novelas exemplares

Em seis dias Tomás tornou-se conhecido de toda a corte e de todos os rapazes; na rua, ou em qualquer esquina, respondia a todas as perguntas que lhe faziam; um estudante perguntou-lhe se ele era poeta, pois parecia ter talento para tudo.
- Até agora não tive oportunidade de ser assim tão néscio nem tão venturoso - respondeu ele.
- Não entendo essa história de néscio e de venturoso - disse o estudante.
- Não fui néscio porque não quis ser um mau poeta, nem tão venturoso que tenha merecido ser um bom poeta.
Outro estudante perguntou-lhe o que  pensava dos poetas. Ele respondeu que admirava muito a ciência, mas  os poetas não. Perguntaram-lhe por que dizia aquilo e ele respondeu que da grande quantidade de poetas, raríssimos eram os bons e, portando, não havendo quase poetas, não poderia estimá-los; admirava, entretanto, a ciência da poesia, pois ela encerra em si todas as outras ciências, serve-se de todas as outras, enfeita-se com todas elas e dá à luz suas maravilhosas obras, oferecendo ao mundo grandes lições, prazer e encantamento. E acrescentou:
- Bem sei o quanto se deve estimar um bom poeta e lembro-me daqueles versos de Ovídio que dizem:

"cura ducum fuerunt olim regumque poetae,
Praemiaque antiqui magna tulere chori.
Sanctaque magistras et erat venerabile nomen
Vatibus et larguae saepe dabantur opes"*

Não posso também esquecer-me dos poetas de alta categoria, aqueles que Platão chama de intérpretes dos deuses e dos quais diz Ovídio:

" Est Deus in nobis, agitante calescimus illo"**

E ainda:

"At sacri vates, et Divum cura vocamur"***

Isto diz ele dos bons poetas, pois dos maus, dos charlatães, o que se pode dizer senão que são eles a idiotice e a arrogândia do mundo? Como é aborrecido ver-se quando um destes poetas pede licença aos que o rodeiam para dizer um soneto: "Escutem os senhores um sonetinho que fiz uma noite dessas, pois, embora me pareça não valer nada, tem um não-sei-quê de bonito." E,  assim dizendo, torce a boca, levanta as sobrancelhas, remexe o bolso e tira, do meio de mil papéis ensebados e rasgados que contêm uns mil sonetos, o soneto que quer recitar, e o recita de fato, com voz melíflua e afetada. E se por acaso os que o escutam não o elogiam, ou porque seja astutos, ou porque sejam ignorantes, diz: "Ou os senhores não entenderam o soneto ou eu não soube recitá-lo; é bom que eu o recite novamente e que os senhores prestem mais atenção, porque na verdade o soneto merece." e torna a recitar, com novos trejeitos e novas pautas. Como é aborrecido ver estes poetas censurarem-se mutuamente! Que posso eu dizer de cachorros e de alguns indivíduos chamados modernos que latem para os grandes mastins, antigos e graves? Que direi eu dos que criticam alguns ilustres e excelentes indivíduos, onde resplandece a verdadeira luz da poesia, que, considerando com alívio o entretenimento para suas inúmeras graves preocupações, mostram a divindade de seus talentos, a excelência de seus conceitos, pouco se importando com o ignorante que emite juízos a respeito do que não conhece, que menospreza o que não entende? Que direi eu daquele que se deseja ver estimado, apreciado em sua estupidez, venerando, enquanto a ignorância se aproxima dela cada vez mais?"
De outra feita perguntaram-lhe por que a maior parte dos poetas era pobre. Respondeu ele que os poetas eram pobres porque queriam, pois estava em suas mãos serem ricos; era só saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna se encontrava nas mãos de suas namoradas, pois eram todas riquíssimas: possuiam cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verde esmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente e suas lágrimas, pérolas líquidas; seus pés, ao pisarem a terra mais dura e estéril do mundo, faziam-na produzir jasmins e rosas; que seu hálito era de puro âmbar, almíscar e algália; e que tudo isso eram pequenas mostras de sua imensa riqueza. Esta era sua opinião sobre os maus e bons poetas; dos bons sempre falou bem, pondo-os nas alturas.


Miguel de Cervantes Saavedra , Novelas exemplares

* Os poetas foram outrora a preocupação dos generais e dos reis; os coros da antiguidade ofereceram-lhes grandes honrarias. Os poetas tinham, então, uma soberania sagrada, um nome venerado e inúmeras recompensas foram-lhes muitas vezes oferecidas.
** Há um deus em nós, e nós nos inspiramos nele quando ele se inflama.
*** Mas nós, os poetas, somos chamados sagrados e somos a preocupação dos deuses.