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Lafcadio, erguendo-se um pouco, olhou-a. Os cabelos soltos caíam em torno dela; todo o seu rosto estava na sombra, de sorte que ele não distinguia os olhos, mas sentia-se envolvido pelo olhar. Como se não pudesse suportar-lhe a doçura, escondeu o rosto nas mãos:
- Ah! Por que a encontrei tão tarde? – gemeu.
- O que é que eu fiz para que você me ame? Por que me fala assim, quando já não sou livre nem digno de a amar?
Ela protestou tristemente:
- É você que eu procuro, Lafcadio, você e não outro. É você criminoso, Lafcadio! Quantas vezes suspirei pelo seu nome, desde aquele dia em que você apareceu como herói e até um pouco temerário demais... Você precisa saber agora: em segredo, prometi a mim mesma que seria sua, desde o instante em que o vi ter aquela abnegação tão magnânima. O que se passou depois disso? Será possível que você tenha assassinado alguém? Por que deixou que lhe acontecesse isso?
E, como Lafcadio, sem responder, abanasse a cabeça:
- Não ouviu meu pai dizer que outro foi preso? – continuou – um bandido que acaba de matar... Lafcadio! Enquanto ainda é tempo, fuja; vá embora hoje mesmo, de noite! Fuja!
Lafcadio murmurou:
- Não posso mais.
E, como os cabelos soltos de Geneviève estivessem tocando suas mãos, pegou-os, apertou-os apaixonadamente de encontro aos olhos, aos lábios:
- Fugir! É isso o que você me aconselha? Mas para onde quer que eu fuja agora? Mesmo que escapasse à polícia, não escaparia a mim mesmo... E, depois, você me desprezaria, se eu fugisse.
- Eu! Desprezá-lo, meu amigo...
- Eu vivia inconscientemente; matei como dentro dum sonho; um pesadelo em que me debato, desde então...
- Quero arrancá-lo a esse pesadelo! – gritou ela.
- Para que me despertar, se despertarei criminoso? Segurou-a pelo braço:
- Não compreende que tenho horror à impunidade? Que me resta fazer agora senão entregar-me, quando amanhecer?
- É a Deus que você deve entregar-se e não aos homens. Se meu pai não o tivesse dito, eu lhe diria agora: Lafcadio, a Igreja aí está para lhe designar o castigo e para o ajudar a recuperar a paz, depois do arrependimento.
Geneviève tinha razão; certamente, Lafcadio nada achará de melhor que uma cômoda submissão; ele perceberá isso, mais cedo ou mais tarde, e perceberá também que as outras saídas estão fechadas... Pena que o primeiro a aconselhá-lo tenha sido o cacete do Julius!
- Que lição está repetindo aí? – disse, hostilmente. – É você que me fala assim?
Soltou o braço que estava segurando, repeliu-o; e, enquanto Geneviève se afastava, sentiu crescer dentro dele, junto a um vago rancor contra Julius, o desejo de afastar Geneviève de seu pai, de a levar para mais baixo, para mais perto de si; abaixando os olhos, ele viu, calçados em chinelinhos de seda, os seus pés nus.
- Não compreende que não é do remorso que tenho medo, mas...
Saiu da cama; afastou-se dela; foi até a janela aberta, sentindo-se sem ar; encostou o rosto na vidraça e as palmas das mãos, escaldantes, no ferro gelado do balcão; queria esquecer que ela esta ali, que ele estava junto dela...
- Srta. de Baraglioul, já fez por um criminoso tudo quanto uma moça de boa família pode tentar; até quase um pouco demais; agradeço-lhe de todo o coração. É melhor que me deixe agora. Volte para o seu pai, para os seus hábitos, para os seus deveres... Adeus. Quem sabe se a verei outra vez? Pense que é para ser um pouco menos indigno da afeição que me está provando que vou entregar-me amanhã. Pense que... Não! Não chegue perto de mim... Pensa que um aperto de mão me bastaria?
Geneviève afrontaria a cólera do pai, a opinião da sociedade e seu desprezo, mas, ante o tom gelado de Lafcadio, faltou-lhe a coragem. Então ele não compreendera que, para vir assim, de noite, falar-lhe, fazer-lhe a confissão do seu amor, é porque ela também já não sabia ter resolução nem coragem, e que o seu amor valia mais do que sua piedade?... E como lhe contaria que ela também, até agora, se tinha agitado como num sonho – sonho do qual só escapava, por instantes, quando estava no hospital, entre crianças pobres, tratando de suas dores reais -, sonho medíocre, no qual se agitavam, a seu lado, seus pais, e onde apareciam todas as convenções absurdas da sociedade? E que ela também não conseguia levar a sério os gestos, as opiniões, as ambições e os princípios dessa sociedade, e sequer as próprias pessoas de que era composta... O que podia haver de espantoso no fato de Lafcadio não ter levado a sério Fleurissoire!... Seria possível que se separassem assim?
O amor a empurrou para ele. Lafcadio tomou-a nos braços, estreitou-a, cobriu-lhe de beijos a fronte pálida...
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Começa aqui um novo livro.
Ó verdade palpável do desejo! Empurras para a penumbra os fantasmas do meu espírito.Vamos deixar os dois amantes nessa hora do canto do galo, em que a cor, o calor e a vida triunfam afinal sobre a noite. Lafcadio se levanta, separando-se de Geneviève, adormecida. No entanto, o que ele contempla não é o belo rosto da amante, a fronte úmida, as pálpebras nacaradas, os quentes lábios entreabertos, os seios perfeitos, os membros cansados; não, não é nada disso; mas sim, através da janela totalmente aberta, a aurora, dentro da qual estremece uma árvore do jardim.
Daqui a pouco chegará a hora em que Geneviève deverá deixá-lo; mas ele ainda espera; escuta, inclinado sobe ela, através de sua leve respiração, o vago rumor da cidade, que já começa a sacudir-se do torpor. Ao longe, nas casernas, o clarim canta. Como? Irá ele renunciar a viver? E pela afeição a Geneviève, que ele estima um pouco menos desde que ela o ama um pouco mais, pensará ainda em entregar-se?
André Gide, Os subterrâneos do Vaticano