quarta-feira, 14 de julho de 2010

André Gide, Os subterrâneos do Vaticano

De minha parte, minha escolha está feita. Optei pelo ateísmo social, que venho exprimindo há quinze anos, numa série de obras...” George Palante. Crônica Filosófica do Mercure de France (Dezembro de 1912)
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Lafcadio, erguendo-se um pouco, olhou-a. Os cabelos soltos caíam em torno dela; todo o seu rosto estava na sombra, de sorte que ele não distinguia os olhos, mas sentia-se envolvido pelo olhar. Como se não pudesse suportar-lhe a doçura, escondeu o rosto nas mãos:
- Ah! Por que a encontrei tão tarde? – gemeu.
- O que é que eu fiz para que você me ame? Por que me fala assim, quando já não sou livre nem digno de a amar?
Ela protestou tristemente:
- É você que eu procuro, Lafcadio, você e não outro. É você criminoso, Lafcadio! Quantas vezes suspirei pelo seu nome, desde aquele dia em que você apareceu como herói e até um pouco temerário demais... Você precisa saber agora: em segredo, prometi a mim mesma que seria sua, desde o instante em que o vi ter aquela abnegação tão magnânima. O que se passou depois disso? Será possível que você tenha assassinado alguém? Por que deixou que lhe acontecesse isso?
E, como Lafcadio, sem responder, abanasse a cabeça:
- Não ouviu meu pai dizer que outro foi preso? – continuou – um bandido que acaba de matar... Lafcadio! Enquanto ainda é tempo, fuja; vá embora hoje mesmo, de noite! Fuja!
Lafcadio murmurou:
- Não posso mais.
E, como os cabelos soltos de Geneviève estivessem tocando suas mãos, pegou-os, apertou-os apaixonadamente de encontro aos olhos, aos lábios:
- Fugir! É isso o que você me aconselha? Mas para onde quer que eu fuja agora? Mesmo que escapasse à polícia, não escaparia a mim mesmo... E, depois, você me desprezaria, se eu fugisse.
- Eu! Desprezá-lo, meu amigo...
- Eu vivia inconscientemente; matei como dentro dum sonho; um pesadelo em que me debato, desde então...
- Quero arrancá-lo a esse pesadelo! – gritou ela.
- Para que me despertar, se despertarei criminoso? Segurou-a pelo braço:
- Não compreende que tenho horror à impunidade? Que me resta fazer agora senão entregar-me, quando amanhecer?
- É a Deus que você deve entregar-se e não aos homens. Se meu pai não o tivesse dito, eu lhe diria agora: Lafcadio, a Igreja aí está para lhe designar o castigo e para o ajudar a recuperar a paz, depois do arrependimento.
Geneviève tinha razão; certamente, Lafcadio nada achará de melhor que uma cômoda submissão; ele perceberá isso, mais cedo ou mais tarde, e perceberá também que as outras saídas estão fechadas... Pena que o primeiro a aconselhá-lo tenha sido o cacete do Julius!
- Que lição está repetindo aí? – disse, hostilmente. – É você que me fala assim?
Soltou o braço que estava segurando, repeliu-o; e, enquanto Geneviève se afastava, sentiu crescer dentro dele, junto a um vago rancor contra Julius, o desejo de afastar Geneviève de seu pai, de a levar para mais baixo, para mais perto de si; abaixando os olhos, ele viu, calçados em chinelinhos de seda, os seus pés nus.
- Não compreende que não é do remorso que tenho medo, mas...
Saiu da cama; afastou-se dela; foi até a janela aberta, sentindo-se sem ar; encostou o rosto na vidraça e as palmas das mãos, escaldantes, no ferro gelado do balcão; queria esquecer que ela esta ali, que ele estava junto dela...
- Srta. de Baraglioul, já fez por um criminoso tudo quanto uma moça de boa família pode tentar; até quase um pouco demais; agradeço-lhe de todo o coração. É melhor que me deixe agora. Volte para o seu pai, para os seus hábitos, para os seus deveres... Adeus. Quem sabe se a verei outra vez? Pense que é para ser um pouco menos indigno da afeição que me está provando que vou entregar-me amanhã. Pense que... Não! Não chegue perto de mim... Pensa que um aperto de mão me bastaria?
Geneviève afrontaria a cólera do pai, a opinião da sociedade e seu desprezo, mas, ante o tom gelado de Lafcadio, faltou-lhe a coragem. Então ele não compreendera que, para vir assim, de noite, falar-lhe, fazer-lhe a confissão do seu amor, é porque ela também já não sabia ter resolução nem coragem, e que o seu amor valia mais do que sua piedade?... E como lhe contaria que ela também, até agora, se tinha agitado como num sonho – sonho do qual só escapava, por instantes, quando estava no hospital, entre crianças pobres, tratando de suas dores reais -, sonho medíocre, no qual se agitavam, a seu lado, seus pais, e onde apareciam todas as convenções absurdas da sociedade? E que ela também não conseguia levar a sério os gestos, as opiniões, as ambições e os princípios dessa sociedade, e sequer as próprias pessoas de que era composta... O que podia haver de espantoso no fato de Lafcadio não ter levado a sério Fleurissoire!... Seria possível que se separassem assim?
O amor a empurrou para ele. Lafcadio tomou-a nos braços, estreitou-a, cobriu-lhe de beijos a fronte pálida...
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Começa aqui um novo livro.
Ó verdade palpável do desejo! Empurras para a penumbra os fantasmas do meu espírito.
Vamos deixar os dois amantes nessa hora do canto do galo, em que a cor, o calor e a vida triunfam afinal sobre a noite. Lafcadio se levanta, separando-se de Geneviève, adormecida. No entanto, o que ele contempla não é o belo rosto da amante, a fronte úmida, as pálpebras nacaradas, os quentes lábios entreabertos, os seios perfeitos, os membros cansados; não, não é nada disso; mas sim, através da janela totalmente aberta, a aurora, dentro da qual estremece uma árvore do jardim.
Daqui a pouco chegará a hora em que Geneviève deverá deixá-lo; mas ele ainda espera; escuta, inclinado sobe ela, através de sua leve respiração, o vago rumor da cidade, que já começa a sacudir-se do torpor. Ao longe, nas casernas, o clarim canta. Como? Irá ele renunciar a viver? E pela afeição a Geneviève, que ele estima um pouco menos desde que ela o ama um pouco mais, pensará ainda em entregar-se?

André Gide, Os subterrâneos do Vaticano