sexta-feira, 18 de junho de 2010

Virgínia Woolf, Orlando


Orlando puxou a cadeira para a mesa, abriu as obras de Sir Thomas Browne e empenhou-se em investigar a delicada articulação de um dos seus pensamentos mais longos e mais maravilhosamente intrincados.
Porque, embora isto não sejam assuntos que um biógrafo possa proveitosamente dilatar, o leitor que completa com vagas sugestões esparsas aqui e ali os limites e contornos da personagem viva; o leitor que através de um simples sussurro pode ouvir uma vívida voz, que pode ver claramente o rosto que não chegamos a descrever; e sem a ajuda de uma palavra alcança com precisão um pensamento - e é para tais leitores que escrevemos -, esse leitor já sabe que Orlando era uma estranha mistura de muitos humores - melancolia, indolência, paixão, amor à solidão, sem falar em todas aquelas contorções e sutilezas de temperamento que foram indicadas na primeira página, quando atacava a cabeça de um negro morto, deitava-a ao chão, tornava a pendurá-la cavalheirescamente fora do seu alcance, e depois se retirava para uma janela com um livro. Seu gosto pelos livros vinha de longe. Em criança, fôra encontrado muitas vezes à meia-noite, lendo ainda uma página. Tiravam-lhe a vela, e criava vaga-lumes que pudesse utilizar para o mesmo fim. Tiravam-lhe os vaga-lumes, e quase pega fogo à casa com um morrão. Em suma - deixando ao novelista a tarefa de alisar a enrugada seda e todas as suas complicações -, Orlando era um fidalgo afligido pelo amor à literatura. Muita gente do seu tempo, mais ainda, da sua hierarquia, se livrou desse mal, e tinha assim a liberdade de correr, cavalgar ou amar como bem lhe apetecesse. Mas alguns eram precocemente atacados por um germe que se dizia nutrido do pólen do asfódelo soprado da Grécia ou da Itália, e de natureza tão fatal que fazia tremer a mão pronta a ferir, nublava o olhar que procurava a presa e tolhia a língua que declarava amor. Era da fatal natureza dessa moléstia substituir a realidade por um fantasma, de modo que Orlando, a quem a fortuna concedera todos os dons - prataria, lençaria, casas, criados, tapetes, leitos em profusão -, com o  simples abrir de um livro, ficava com toda essa vasta acumulação reduzida a nevoeiro. Os nove acres de pedra que eram a sua casa desapareciam; seus cento e cinquenta criados se apagavam; seus oitenta cavalos de sela tornavam-se invisíveis; seria muito longo contar os tapetes, sofás, alfaias, porcelanas, pratas, gomis, pratos de aquecer e outros utensílios, muitas vezes de ouro batido, que se evaporavam sob a ação do miasma, como névoa marinha. Assim era, e Orlando ficava sozinho, lendo, um  homem despojado.
A doença tomou conta dele rapidamente, na solidão.

Virgínia Woolf, Orlando