sexta-feira, 25 de junho de 2010

Friedrich Nietzsche, Acerca da verdade e da mentira

Num certo canto remoto do universo cintilante, vertido em incontáveis sistemas solares, havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da “história mundial”, mas foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou e os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim, alguém poderia inventar uma fábula como esta e, no entanto, não ficaria suficientemente esclarecido quão lastimável, quão obscuro e fugidio, quão desprovido de finalidade e arbitrário se apresenta o intelecto humano no interior da natureza. Eternidades houve em que ele não existia; quando ele tiver de novo desaparecido, nada terá alterado. Pois para este intelecto não há outra missão que transcenda a vida humana. Antes, pelo contrário, ele é humano, e só o seu dono e progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à volta do qual gira o mundo. Mas se nós conseguíssemos comunicar com um mosquito, saberíamos que também ele paira neste ambiente com a mesma presunção e se sente como centro voador deste mundo. Na natureza não há nada de tão censurável e limitado que não se inchasse qual tubo insuflável por meio de um pequeno sopro dessa força do conhecimento; e tal como todo e qualquer carregador ambiciona ter o seu admirador, assim o homem mais orgulhoso, o filósofo, julga ver de todos os lados os olhares do universo, quais telescópios dirigidos para o seu agir e pensar.
É estranho que o intelecto seja capaz disso, ele que é acrescentado apenas como auxiliar aos seres mais infelizes, mais delicados e efêmeros, para sustentá-los durante um minuto na existência da qual, sem esta contribuição, eles teriam toda a razão de fugir como o filho de Lessing. O orgulho ligado ao conhecer e sentir que põe uma névoa ofuscante nos olhos e sentidos dos homens engana-os, por conseguinte, sobre o valor da existência pelo fato de encerrar em si o apreço mais lisonjeiro acerca do conhecimento. O seu efeito mais geral é a ilusão, mas também os efeitos mais particulares contêm em si algo de índole semelhante.
[...]
Que é que o homem no fundo sabe acerca de si mesmo? Sim, se ele conseguisse, ao menos uma vez, percepcionar-se completamente como se estivesse metido num expositor de vídeo iluminado! Não é que a natureza lhe oculta a maior parte das coisas, mesmo sobre o seu corpo, para banir e fixá-lo longe das dobras intestinais, longe do rápido fluir da corrente sanguínea e dos estremecimentos emaranhados das fibras, numa consciência orgulhosa e malabarista! A natureza deitou fora a chave e ai da fatídica curiosidade que conseguisse, através de uma fenda, olhar para fora e para baixo da câmara da consciência e pressentir que o homem assenta no impiedoso, no sôfrego, no insaciável, no homicida, na indiferença do seu não saber e como que suspenso em sonhos preso nas costas de um tigre. De onde, com os diabos, vem nesta constelação o impulso da verdade?

Friedrich Nietzsche, Acerca da verdade e da mentira