quinta-feira, 3 de junho de 2010

Emile Zola, Germinal



- Justiça! Chegou a hora da justiça!
Aos poucos Etienne inflamava-se. Não possuía a abundância fácil e cascateante de Rasseneur. Muitas vezes as palavras não lhe vinham, tinha de torturar a frase e dela saia com um esforço que ressaltava com um movimento de ombros. Mas nesses contínuos tropeços descobria imagens de uma energia familiar que empolgavam seu auditório. Da mesma forma seus gestos de mineiro, os cotovelos para trás, depois estendendo-se e lançando os punhos para a frente, sua mandíbula repentinamente avançando, como para morder, exerciam também uma ação extraordinária sobre os camaradas. Todos o diziam, ele não era um espetáculo, mas prendia a atenção.
- O sistema assalariado é uma nova forma de escravidão – continuou ele com a voz ainda mais vibrante. – A mina deve ser do mineiro, como o mar é do pescador, como a terra é do camponês. Compreendam isso de uma vez por todas: a mina é de vocês, de todos vocês, que há um século a vêm pagando com tanto sangue e tanta miséria!
Com a maior sem-cerimônia abordou problemas obscuros de direito, a enfiada de leis especiais sobre minas em que ele se perdia. O subsolo, assim como o solo, pertencia à nação; apenas um privilégio odioso assegurava o monopólio às companhias. Para Montsou, a pretensa legalidade das concessões complicava-se com tratados passados outrora com proprietários de antigos feudos, segundo o velho costume de Hainaut. Os mineiros, portanto, só tinham que reconquistar sua propriedade. E com as mãos estendidas ele mostrava a região inteira, para além da floresta. Nesse momento, a lua, que subia no horizonte, escorregando pelos ramos mais altos, iluminou-o. Quando a multidão, ainda no escuro, divisou-o assim, todo iluminado, distribuindo a fortuna com suas mãos abertas, aplaudiu de novo, prolongadamente.
- Sim, sim, ele tem razão! Bravo!
A partir daí Etienne cavalgou no seu plano favorito: a distribuição de instrumentos de trabalho à coletividade, como ele dizia numa frase, cuja barbárie o comichava deliciosamente. Nele, agora, a evolução era completa. Tendo partido da fraternidade humilde dos catecúmenos, da necessidade de reformar o sistema assalariado, acabara na idéia política de o suprimir. Depois da reunião no Bom-Joyeux, seu coletivismo ainda humanitário e sem fórmula, enrijecera num programa complicado, que ele ia discutindo cientificamente, artigo por artigo. Primeiro disse que a liberdade só podia ser conseguida com a destruição do Estado; quando o povo tivesse tomado o poder, as reformas seriam feitas: volta à comuna primitiva; substituição da família moral e opressiva pela família igualitária e livre; igualdade absoluta, civil, política e econômica; garantia da independência individual graças à possessão e ao produto integral dos instrumentos de trabalho; enfim instrução profissional e gratuita, paga pela coletividade. Isso levaria a uma reforma da sociedade velha e podre. Atacou o casamento, o direito de fazer testamento, regulamentou a fortuna particular, pôs abaixo o monumento iníquo dos séculos mortos com um grande gesto, sempre o mesmo, o gesto do ceifador que derruba a colheita madura. Com a outra mão foi reconstruindo, erguendo a futura comunidade, o edifício da verdade e da justiça surgindo na aurora do século XX. Diante de tal tensão cerebral a razão perdeu pé, restou apenas a idéia fixa do sectário. Os escrúpulos da sua sensibilidade e do seu bom senso evaporaram-se, nada era mais fácil do que a relização desse mundo novo: previra tudo, falava dele como de uma máquina que montaria em duas horas, sem levar em conta o fogo e o sangue.


Emile Zola, Germinal