quarta-feira, 30 de junho de 2010

Souza Neto, Linhas Paralelas


...não escutavam sequer o ruído das rápidas passadas. Não se perguntavam o que os tangia aloucados. Iam. Iam juntos, porém somente Ana se unia por solidariedade, por profunda e misteriosa solidariedade. Conheceram-se quase meninos e Ana, que sempre estivera longe dele, posto que sob o mesmo teto, recusando os favos de seu coração, ia agora unida ele, não por amor, mas por um sentimento indenominável, audaz como o amor, leal como o amor, terrível como o amor.
[...]
O olhar de Tote!... arma bigúmea. Aquele olhar faiscava, ameaçava, apostrofava, intimidava o ódio, a inveja e a vingança. Raciocinava, distinguia o perigo, media o adversário, discernia os golpes, adivinhava as ciladas, perscrutava as intenções, avaliava a agressão, sugeria a defesa, circundava o espaço dos lanços e esgueiramentos. Aliava-se às grandes mãos de Tote, altipotentes, esmagadoras, abertas como nanoplas flexíveis, fechadas como tenazes de malhar. Manzorras, mãos pensantes e caritativas, que apagavam incêndios, que domavam potros, que abaionetavam caudais, que não batiam por crueza. Punhos férreos, incansáveis no trabalho, implacáveis nos combates. Mãos longas e humanas, mãos tristes, que não conheciam o amor nem o êxtase dos carinhos epidérmicos. Mãos de labor, só para o labor; mãos de bravo, só para a bravura. Mãos que não faziam romance, mas que faziam história.
[...]
Sua vida e a de Ana semelhavam duas estranhas linhas paralelas, paralelas que nunca estiveram na mesma direção, que não podiam correr no mesmo rumo, quase constituindo um singular paralelismo sem paralelas, uma espécie de paralelismo em que os traços, eqüidistantes, andavam em sentido oposto, um indo enquanto o outro vinha, aquele voltando quando este ia; em que, guardando a mesma distância, uma ponta passava pela outra como o sim passa pelo não, sem jamais se entenderem, uma sempre a esperar que, na passagem, no cruzamento, a outra a compreendesse e que, unidas, identificadas, o não transfeito em sim, nunca mais se separassem.

Souza Neto, Linhas Paralelas