domingo, 30 de maio de 2010

Martha Medeiros, Divã

Tan Jian Wu


O café terminou. Hora de ir embora, mas ela fica.O show começa agora.
Primeiro ela fala do meu senso de humor. Depois da minha inteligência. Depois do meu estilo de vida, dos livros que tenho, da educação que já não se vê hoje em dia, de como eu sou agradável, de como a acolhi quando nos conhecemos, em como ela era agradecida por minha bondade, por minhas palavras gentis, em como era importante para ela conhecer alguém que administrava tão bem o cotidiano, em como invejava o meu sucesso enquanto pessoa. A expressão é dela: o meu sucesso enquanto pessoa.
Ela ainda não havia terminado sua declaração de amor quando comecei a sentir ódio de mim. Quem era a mulher por quem ela dizer ter tanta admiração? Quem a havia acolhido, quem era gentil, quem era um sucesso enquanto pessoa? Quase abri a porta para conferir o número do apartamento: uma de nós estava no lugar errado.
Era repulsiva, para mim, a ideia de ter enganado tão bem outra pessoa, de ter vendido uma imagem que não correspondia à realidade. Nem para meus filhos eu era tão boa, nem para Mônica eu era tão gentil, nem para Tati, amiga nova por quem eu começava a sentir afeto, eu andava sendo tão agradável. Como foi acontecer de essa senhora, por quem eu jamais mexi um dedo, a quem jamais tive intenção de cativar, surgir em minha casa para me enaltecer?
Marketing pessoal. De repente fui me dando conta de todos os truques sociais que eu havia utilizado , do bom comportamento que originou toda essa confusão. Ela comprou de mim uma amizade que eu não tinha para pronta-entrega. Iludi essa mulher com sorrisos mecânicos e um café passado na hora.
Não gosto de nada que é raso, de água pela canela,. Ou eu mergulho até encontrar o reino submerso de Atlântida, ou fico à margem, espiando de fora. Não consigo gostar mais ou menos das pessoas, e não quero essa condescendência comigo também. Pareço transparente e azul, mas é tudo anilina, sou uma praia de cartão-postal. Queria poder dizer a essa mulher de pernas cruzadas e costas eretas que se ela fosse mesmo minha amiga estaria estirada no sofá, com as pernas em cima da mesinha de centro e pedindo que eu colocasse um disco. Que se ela fizesse parte do meu mundo, não estaria usando essa echarpe rosa-bebê nem teria exagerado tanto no perfume, e muito menos falaria o português correto.”eu lhe admiro tanto, Mercedes.” Amigas não usam lhe.
Amigas morrem de rir, mesmo em velório. Amigas debocham, liberam, recordam, comentam, confessam, perdoam, comungam e exorcizam fantasmas com litros de vinho branco. Duas amigas e uma tarde livre é o paraíso. Não ficam olhando para o relógio como eu e essa estranha.
Ela se vai. Me abraça apertado, compartilha minha dor, eu que já nem lembrava que a visita era de condolência. Tento parecer mais triste do que realmente estou. Ela diz para eu não deixar de telefonar, que sempre que eu me sentir sozinha ela virá, que ela tem uma turma de biriba que é ótima, irão me adorar. Ela realmente me quer bem. Três beijinhos. “pra casar de novo.” Eu mereço.


Martha Medeiros, Divã