sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Fim

Recabarren, deitado, entreabriu os olhos e viu o oblíquo teto raso de junco. Da outra peça chegava-lhe um rasgado de violão, uma espécie de paupérrimo labirinto que se enredava e desatava infinitamente... Recobrou, pouco a pouco, a realidade, as coisas cotidianas que já nunca mais trocaria por outras. Olhou sem pena seu grande corpo inútil, o poncho de lã ordinária que lhe cobria as pernas. Fora, além das grades da janela, dilatavam-se a planície e a tarde; dormira, mas ainda ficara muita luz no céu. Com o braço esquerdo tateou, até dar com o cincerro de bronze que estava ao pé do catre. Uma ou duas vezes o agitou; do outro lado da porta, continuavam chegando até ele os modestos acordes.
O tocador era um preto que aparecera uma noite com pretensões de cantor e que provocara outro forasteiro a um longo desafio. Vencido, continuava frequentando a venda, mas não voltara a cantar; talvez a derrota o tivesse desgostado. As pessoas já se haviam acostumado a esse homem inofensivo. Recabarren, dono da venda, não se esqueceria desse desafio; no dia seguinte, ao acomodar uns surrões de erva, seu lado direito se imobilizara bruscamente e perdera a fala. À força de apiedar-se das desventuras dos heróis dos romances, terminamos apiedando-nos excessivamente das próprias desventuras; não assim o sofrido Recabarren, que aceitou a paralisia como antes aceitara o rigor e as solidões da América. Habituado a viver no presente, como os animais, agora olhava o céu e pensava que o halo rubro da lua era sinal de chuva.
Um menino de feições indiáticas (filho seu, talvez) entreabriu a porta. Recabarrren perguntou-lhe com os olhos se havia algum freguês. O pequeno, taciturno, disse através de gestos que não; o preto não contava. O homem prostrado ficou só; sua mão esquerda brincou um instante com o cincerro, como se exercitasse um poder.
A planície, sob o último sol, era quase abstrata, como vista num sonho. Um ponto moveu-se no horizonte e cresceu até ser um cavaleiro que vinha, ou parecia vir, para casa. Recabarren viu o chapéu de abas largas, o grande poncho escuro, o cavalo mouro, mas não o rosto o homem, que, por fim, susteve o galope e veio aproximando-se a trotezinho.
A umas duzentas varas dobrou. Recabarren não o viu mais, porém o escutou vozear, apear-se, amarrar o cavalo ao palanque e entrar com passo firme na venda.
Sem alçar os olhos do instrumento, onde parecia buscar alguma coisa, o preto disse com doçura:
- Já sabia que eu podia contar com o senhor.
O outro, com voz áspera, replicou:
- E eu contigo, moreno. Uma porção de dias te fiz esperar, mas aqui vim.
Houve um silêncio. Por fim , o negro respondeu:
- Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.
O outro explicou sem pressa:
- Mais de sete anos passei sem ver meus filhos. Encontrei-os naquele dia e não quis mostrar-me como um homem que vive trocando punhaladas.
- Já compreendi – disse o negro. – Espero que os tenha deixado com saúde.
O forasteiro, que se sentara no balcão, riu-se com vontade. Pediu uma cachaça e a degustou sem concluí-la.
- Dei bons conselhos a eles – declarou - , que nunca são demais e nada custam. Disse-lhes, entre outras coisas, que o homem não deve derramar o sangue do homem.
Um lento acorde precedeu a resposta do negro:
- Fez bem. Assim não se parecerão a nós.
- Pelo menos a mim – dise o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: - Meu destino quis que eu matasse e agora, outra vez, põe- me a faca na mão.
O preto, como se não o ouvisse, observou:
- Com o outono se vão encurtando os dias.
- Esta luz que fica me basta – replicou o outro, pondo-se de pé. Perfilou-se diante do negro e falou-lhe com cansado.
- Deixa em paz o violão, que hoje te espera outra espécie de desafio.
Os dois encaminharam-se à porta. O negro, ao sair, murmourou:
- Talvez neste me vá tão mal como no primeiro.
O outro respondeu com seriedade:
- No primeiro não te saíste mal. O que se deu é que querias chegar ao segundo.
Afastaram-se um pouco das casas, caminhando a par. Um lugar da planície era igual a outro e a lua resplandecia. De repente olharam-se, detiveram-se e o forasteiro tirou as esporas. Já estavam com o poncho no anetebraço, quando o preto disse:
- Uma coisa quero pedir-lhe antes que cruzemos ferros. Que nesta briga ponha toda sua coragem e toda sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.
Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martín Fierro tenha ouvido o ódio. Seu sangue o sentiu como um acicate. Entreveraram-se e o aço afiado luziu e marcou a cara do negro.
Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa, nunca o diz ou talvez o diga infinitamente e não a compreendemos, ou a compreendemos mas é intraduzível como uma música... De seu catre, Recabarren presenciou o fim. Uma investida e o negro recuou, perdeu pé, fintou um talho à cara e se desdobrou numa punhalada profunda, que penetrou no ventre. Depois veio outra que o vendeiro não conseguiu ver com exatidão e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar sua penosa agonia. Limpou o facão ensangüentado no pasto e voltou às casas com lentidão, sem olhar para trás.
Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era ninguém. Ou melhor, era o outro: não tinha destino sobre a terra e matara um homem.

Jorge Luis Borges, Artifícios.