quarta-feira, 28 de abril de 2010



[...] elas diziam em coro – quem morre precisa ser enterrado porque o corpo apodrece. Apodrece? Meu Deus, então eu não sabia nada sobre a morte, para mim a morte era a hora de ir para o céu ou para
o inferno, aquele estágio debaixo da terra era provisório, era apenas uma decisão tola dos homens. O corpo apodrece? Apodrece igual à maçã? Muito pior, boba, fica cheio de bichos. Isso é mentira, eu
nunca vou ficar cheia de bichos. A irmã Letícia vinha me consolar: se você ficar santa, o seu corpo não apodrecerá. E se eu não conseguir? Jesus vai te ajudar, não tenha medo, e você sabe que a gente não sente nada depois da morte? O corpo não é nada, menina, São Francisco chamava o corpo assim: meu irmão burro. Por quê? Porque o corpo só faz bobagens, o corpo demora a compreender. Nessa noite resolvo conversar às claras com meu corpo: irmão burro, presta atenção, não apodreça, por favor eu não quero ficar cheia de bichos e se você me prometer isso, eu prometo te tratar com paciência. Depois refleti: adianta tratar um burro com paciência? Os santos não maltratavam o corpo? Meu Deus, que espécie de contrato é preciso fazer com o corpo? Se eu o maltratar em vida, ele me agradecerá na morte?


Hilda Hilst