sexta-feira, 12 de março de 2010

Martha Medeiros, Divã

by Pino


Espelho, espelho meu, existe alguém mais egoísta do que eu? Tô sabendo, Lopes: sou apenas um reflexo desse mundo individualista, onde todos estão voltados para o próprio umbigo.

Meus filhos, meu marido, meu lar, minha profissão, minha agenda, minha cabeça, meu coração, tudo meu, meu, meu. O que acontece com os outros que possa vir a me interessar? A experiência deles, talvez, mas nunca um fato que seja alheio à minha pessoa, que não me comova ou me alimente. O inferno não são os outros. O inferno são os outros sem atrativos para mim.

Megera, assumo. Meu egoísmo não é material, não é financeiro: gosto de dinheiro mas não sou escravizada por ele, distribuo o pouco que ganho sem pesar. Meu egoísmo é o de não conseguir repartir emoções. Não tenho conseguido dar nem receber. Só atento para o que nasce em mim e em mim se desfaz, morre, é consumido.

Meu egoísmo é revelar só um pedaço do que sou, só a parte boa, a mocinha da história. Tenho, dentro de mim, um elenco de coadjuvantes que não deixo que brilhem, que não dão autógrafos nem saem nas capas de revista. Egoísta. Poupando o mundo do meu lado sórdido, que costuma ser o mais interessante.

São meus os meus sonhos eróticos, meus os momentos de isolamento, são meus os devaneios, minhas as omissões. Os disfarces são meus, a boa mãe que sou em termos, a esposa perfeita que mais ou menos, a amiga leal que nem tanto. Não faço maldades, não prejudico ninguém, mas não me dou inteira.

Egoísta! Bradarão os anjos ao me receberem para o Juízo Final. Não sei se me deixarão entrar, não sei se confesso agora o meu desdém pela opinião alheia ou se corro o risco de ser deportada do paraíso. Egoísta! Bradarão em coro aqueles a quem não me revelei.

Nunca roubei, nem matei, nem enganei no troco. Não me lembro de ter deixado um telefonema sem resposta, uma amiga esperando por mim. Nunca cheguei atrasada, nunca faltei com o respeito, nunca neguei carinho, abraço e mesada, nunca pisei em alguém, nunca difamei, nem forcei passagem. Ultrapassei os limites de volocidade, às vezes, mas não atropelei pedestre algum, não violei a lei, não blefei. Pecar, pequei.

Não acreditar em Deus foi o caminho mais fácil pra não me torturar, para não me penitenciar por não ter seguido os mandamentos todos. Não sei de cor quais são, nem quantos. Sei que não poderia obedecê-los, seja por implicância ou contravenção. Ninguém mantém-se integralmente puro sem enlouquecer.

Egoísta. Guardo para mim as palavras que não me atrevi a pronunciar, os planos descartados e os fetos de mim mesma que abortei. Poupei os outros do meu lado mais cruel e impactante, o meu lado mais insano e fascinante. Tenho tudo o que quis, tenho mais do que planejei, e mesmo assim – egoísta! – mal vejo a hora de recomeçar. Não sei se nasci para desempenhar o papel que me foi reservado. Tenho um bom currículo e alguns bens, mas o que é mais meu, minha maior propriedade, nunca foi declarada, minha loucura ninguém sabe onde mora, minha fé nem eu mesma sei onde se esconde.

Deus? Pergunta difícil a sua. Já tem sido deveras estafante acreditar em mim mesma. Mas de uma coisa você pode estar certo, não creio numa onipresença a serviço do bem, numa generosidade cósmica a nos zelar. Deus é o quê? Fé. Acreditar na existência de uma força suprema que segure as rédeas para nós de vez em quando. Deus é uma área de repouso, é umas férias que a gente se concede em meio a tantas decisões a tomar. Deus assume como interino enquanto a gente descansa da gente mesmo.

Lopes, que bom seria se existisse mesmo um sábio velhinho que jogasse os dados por nós: avance duas casas, dobre à direita, avance mais uma, espere sua vez de jogar, agora volte três casas, bravo, amém.

Não me lembro quem me ensinou a rezar. Fiz a primeira comunhão no colégio como se estivesse fazendo um trabalho de grupo, sem consciência do rito de passagem. Melhor assim. Não queria ser abduzida para aquele mundo de pecados e culpas, de votos de pobreza e castração. Procurei selecionar dos sermões aquilo que poderia me servir, e me serviu a idéia de que é possível que exista algo muito maior do que nós, muito mais forte do que nossas vontade, muito mais poderoso do que nosso pensamento. São inúmeros os fiéis neste planeta, algo deve haver por trás de tanta devoção. Em todo caso, não optei pela obediência nem me deixei seduzir pela liderança: minha única vaidade religiosa é me reconhecer humilde.

Mais do que isso seria pedir demais de mim. Eu uso com regularidade expressões como “graças a Deus”, “pelo amor de Deus”, “que Deus te ouça”, mas Deus é o apelido que dou à sorte. Em sorte eu acredito.

[...]

Tenho a sorte da consciência desperta, dessa consciência atrapalhada, que ora se revela transparente, ora obscura, mais ainda assim provocativa, uma consciência que se dilata e se contrai mas que está em movimento, sem ela eu estaria tão motivada pra vida quanto este tapete.

Religião é apenas o que nos distrai desta consciência vigorosa de tudo. [...] Religião para mim? Pintar. Eu gosto de ler também...

[...] sofrer, seja lá por qual razão, me parece uma estupidez [...] Isso é inconsciência? Então estou mais espiritualizada do que nunca, deixando os acontecimentos fluírem conforme a vontade divina.


Martha Medeiros,  Divã