domingo, 14 de março de 2010
14 - Ao que se chama Amor
Cupidez e amor: como estas duas palavras soam diferentemente aos nossos corações! Pode ser, no entanto, que exprimam ambas o mesmo instinto que receba dois nomes: A primeira perjurativamente, do ponto de vista daqueles que já possuem , que têm um instinto de posse levemente satisfeito e que receiam entretanto pelos seus “bens”; a segunda elogiosamente, do ponto de vista dos insatisfeitos e dos ávidos que acham “bom” este instinto. O nosso amor pelo próximo não será o desejo imperioso de uma nova propriedade? E não sucede o mesmo pelo nosso amor pela ciência , pelo saber, pela verdade? E igualmente com todos os desejos de novidade? Cansamo-nos, pouco a pouco do antigo, do que possuímos com certeza , temos ainda necessidade de estender as mãos ; mesmo a mais bela paisagem, quando vivemos diante dela por mais de três meses, deixa de nos poder agradar, qualquer margem distante nos atrai mais: geralmente uma posse reduz-se com o uso. O prazer que tiramos a nós próprios procura manter-se, transformando qualquer coisa nova em nós mesmos, é precisamente a isso que se chama possuir. Cansar-se de uma posse é cansar-se de si próprio (pode-se também sofrer como o excesso: à necessidade de jogar fora, de dar, pode-se assim atribuir o nome lisongeiro de “amor”). Quando vemos sofrer uma pessoa, aproveitamos com gosto essa ocasião que nos oferece de apoderarmos dela; é o que faz o homem caridoso, o indivíduo complacente; chama-se também "amor " a esse desejo de uma nova posse que despertou na sua alma e tem prazer nisso como diante de uma nova conquista iminente. Mas é o amor de sexual que se revela mais nitidamente como um desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da pessoa que deseja, quer ter um poder absoluto tanto sobre a sua alma como sobre o seu corpo, quer ser amado unicamente, habitar e reinar na outra alma como o mais alto e o mais desejável. Se considerarmos que isso não significa outra coisa senão excluir o mundo inteiro do gozo de um bem, de uma felicidade preciosa; se pensarmos que aquele que ama visa empobrecer e privar todos os demais competidores, e tornar-se o dragão do seu tesouro, sendo o mais implacável “conquistador”, o explorador mais egoísta;se imaginarmos, por fim, que todo o resto do mundo lhe parece indiferente, desbotado, sem valor, e que se encontra disposto a efetuar qualquer sacrifício, a perturbar qualquer ordem estabelecida, a relegar para segundo plano qualquer interesse: então, espantamo-nos que esta cupidez bárbara, esta furiosa injustiça do amor sexual tenha sido a tal ponto glorificada, divinizada, em todos os períodos da história, que se tenha extraído desse amor a idéia de amor concebida como contrária do egoísmo, quando representa talvez a sua expressão mais direta. Esse uso lingüístico, evidentemente, deve ter sido criado por aqueles que não possuíam e desejavam possuir – talvez tenham provavelmente existido sempre em maior número. Aqueles que possuíram muito e que conheceram a sociedade, deixaram por vezes escapar uma palavra falando de “demônio furioso”, como Sófocles, o mais adorável e o mais amado dos atenienses; mas Eros sempre riu de semelhantes blasfemadores – eram os seus grandes favoritos. Existe realmente, aqui e além na terra, uma espécie de prolongamento do amor, no qual o desejo que dois seres experimentam um pelo outro dá lugar um novo desejo, uma nova cobiça, a uma sede superior comum, a de um ideal que os ultrapassa a ambos: mas quem é que conhece tal amor? Quem já o viveu? O seu verdadeiro nome é amizade.