Na arte como nas relações humanas, que incluem os diversos laços amorosos, nadamos contra a correnteza. Tentamos o impossível: a fusão total não existe, o partilhamento completo é inexeqüível. O essencial nem pode ser compartilhado: é descoberta e susto, glória ou danação de cada um – solitariamente.
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O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
É uma idéia assustadora: vivemos o nosso ponto de vista, com ele sobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou congelamos conforme nossa abertura ou exclusão em relação ao mundo.
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Construir um ser humano, um nós, é trabalho que não dá férias nem concede descanso: haverá paredes frágeis, cálculos malfeitos, rachaduras. Quem sabe um pedaço que vai desabar. Mas se abrirão também janelas para a paisagem e varandas para o sol.
O que se produzir – casa habitável ou ruína estéril – será a soma do que pensaram e pensamos de nós, do quanto nos amaram e nos amamos, do que nos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudar isso, esse selo, sinete, essa marca.
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Em plena maturidade sinto em mim a menina assombrada com a beleza da chuva que chega sobre as árvores num jardim de muitas décadas atrás. Tudo aquilo é pra sempre meu, ainda que as pessoas amadas partam, que a casa seja vendida, que eu já não seja aquela.
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Ensinaram-me desde cedo que minha liberdade era essencial, que se ligava à minha dignidade, e que eu seria responsável por minhas escolhas. Mais: eu sabia que mesmo se tudo desse errado alguém sempre estaria ali para mim.
Esse se tornou para mim o conceito básico de família: aquele grupo, ou aquela pessoa que, mesmo se não me compreende e às vezes nem aprova, me respeitará e amará como sou – ou como consigo ser.
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Gosto de usar a palavra anistiar – melhor que perdão, pois não tem conotação religiosa, nem dá a idéia de que somos bonzinhos perdoando alguém.
Nem a nós mesmos.
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Gosto das coisas – pessoas e palavras – desconcertantes.
Seus contornos imprecisos permitem que a gente exerça o direito de refletir e de criar em cima delas.
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Viver, como talvez morrer, é recriar-se a cada momento.
Arte e artifício, exercício e invenção no espelho posto à nossa frente ao nascermos. Algumas visões serão miragens: ilhas de algas flutuantes que nos farão afundar. Outras pendem em galhos altos demais para a nossa tímida esperança. Outras ainda rebrilham, mas a gente não percebe – ou não acredita.
A vida não está aí apenas para ser suportada ou vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada.
Não é preciso realizar nada de espetacular.
Mas que o mínimo seja o máximo que a gente conseguiu fazer consigo mesmo.
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O essencial não tem nome nem forma:
É descoberta e assombro, glória ou danação de cada um.
Lya Luft, Perdas & Ganhos