quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
O Lobo da Estepe - Hermann Hessé
“Os homens nasceram para andar na terra, não na água. Foram criados pra viver e não pra pensar. Quem faz do pensamento sua principal atividade pode chegar muito longe com isso, mas, sem dúvida, estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado”.
“Livros, manuscritos, pensamentos está amarrado e embebido pela miséria do solitário, pela problemática do ser humano, pelo anseio de dar um novo sentido à vida humana que já perdeu seu rumo”
História de um intelectual cinqüentão vivendo em plena desvairada década de 1920 que, após abandonar a regrada vida burguesa, se entrega à dissipação da vida boêmia dos bares e dos salões de dança. O erudito Harry Haller vive o tempo toda a tensão entre a vida sublime de seus grandes poetas e músicos - Goethe e Mozart, a vida da alta cultura, do espírito, dos Imortais, e a vida das profundezas da superficialidade, do sensual, da carne.Vive atraído por dois pólos magnéticos opostos, um representado pela vida noturna, pelo álcool, pelos cigarros, pelo jazz, pelas meretrizes e pelo despertar ao meio dia; o outro pela vida ascética, diurna, tranqüila, de jardins bem cuidados da família burguesa vizinha que admira logo no primeiro capítulo como alguém que sente nostalgia por um paraíso perdido.
“Já se sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente de um indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura”
“Sempre exigira das mulheres a quem amava, que tivessem educaçãoe inteligência, sem me dar conta de que nem mesmo a mulher mais espiritual e relativamente educada jamais daria resposta ao logos que havia em mim. Meus problemas nasciam diretamente dos sentidos.”
O Lobo da Estepe, pertence à burguesia, não consegue superá-la, daí seu misto de apreço e desprezo pela vida burguesa. Harry entrega-se à dissipação querendo superar a mediocridade burguesa, quer uma transcendência, mas não tem força bastante para esta libertação, daí a sua atração pela vida burguesa quando sente-se aprofundar demais na vida do libertino.
“A felicidade de que necessitava e por que ansiava era diferente, era uma infelicidade que me permitia sofrer com ânsia e com prazer”
Porém, para além da dupla personalidade, Haller descobre ter mil almas, que além dos dois pólos pelos quais se sente atraído, uma infinidade de pulsões interiores e exteriores atua sobre o seu ser, engendrando múltiplas personalidades, mal contidas pela frágil unidade de seu ego. Mas Haller admite no delírio final do romance a coordenação das mil almas, mil personalidades em torno de um eixo central que dá unidade à pluralidade de personas.
“As anotações de Harry são um documento da época. Sua enfermidade anímica não é o capricho de um solitário, mas a enfermidade do próprio tempo, a neurose daquela geração a que ele pertencia, neurose que não aterrava os débeis e insignificantes, mas precisamente os fortes, os mais espirituais, os mais fortes”
O Lobo da estepe é um romance que narra a desintegração da personalidade num homem maduro, ou quiçá o fracasso ou a resignação ante a impossibilidade de formação de uma personalidade coesa e sólida na voragem de um tempo de transmutação de valores, de fragmentação e velocidade. Haller vive entre as trevas e a luz, o sensual e o espiritual, o moderno e a tradição, o profano e o sagrado, numa interminável e aguda crise. Não é feliz. A certa altura, no clímax de uma sensual festa de máscaras, imerso na multidão, já desfigurado, sem passado, sem face, sem personalidade, sente seu ego, sua individualidade dissolvida na unio mystica da alegria. Harry Haller experimenta uma espécie de transcendência espiritual às avessas.
“Talvez aqueles poucos fregueses, aos quais conhecera de vista não passassem de verdadeiros filisteus e tivessem em casa altares domésticos erigidos aos tímidos ídolos de resignação, ou talvez ficassem uns pobres diabos sem rumo como eu pacíficos, bebedores, cheios de pensamentos sobre a falência dos ideais.”
“Todas as tentativas de tornarem as coisas compreensíveis se fazem por meio de teorias, mitologias, de mentiras”
O livro parece deixar uma conclusão pessimista quanto à possibilidade de formação da unidade pessoal. Mas Hesse, em nota de 1961 para uma reedição do romance, diz que não descarta no romance a esperança oculta de uma síntese transcendente, que integre o santo e o libertino, o que parece estar prefigurado na demonstração da unidade oculta das mil almas no capítulo final da obra.