sábado, 28 de novembro de 2009

Jack Kerouac, Tristessa


Estou em um táxi com Tristessa, bêbado, com uma garrafa de uísque Juarez Bourbon no malote de dinheiro da ferrovia que eles me acusaram de roubar da estrada de ferro em 1952 – aqui estou eu na Cidade do México, um sábado à noite chuvoso, mistérios, velhas ruas laterais de sonho e sem nomes passam vertiginosamente, a ruazinha onde eu caminhara por entre multidões de vagabundos índios enrolados em mantas trágicas, suficientes para fazer você chorar, e você achou ter visto facas reluzindo sob as dobras – sonhos lúgubres tão trágicos quanto aquele da Velha Noite da Estrada de Ferro, com meu pai sentado com suas coxas grandes no vagão de fumantes da noite, cochilando enquanto seguia pelos trilhos vastos, enevoados e tristes da vida – mas agora estou no alto daquele platô vegetal que é o México, a lua de Citlapol com quem eu esbarrara algumas noites antes no telhado sonolento a caminho do antigo banheiro de pedra com goteira – Tristessa está doidona, linda como sempre. Vai alegre para casa deitar na cama e curtir sua morfina.

Noite anterior tive uma discussão silenciosa na chuva sentado com ela nos balcões sombrios da meia noite comendo pão com sopa e bebendo Delaware Punch. Saí dessa conversa com a visão de Tristessa em minha cama, em meus braços, a estranheza de seu rosto amoroso, asteca, garota índia com olhos de Billie Holliday misteriosos e semicerrados e com uma grande voz melancólica como as atrizes vienenses de rostos tristes como Luise Rainer que fizeram toda a Ucrânia chorar em 1910.

Curvas lindas em forma de pêra moldam a pele de seu rosto, que tem pestanas compridas e tristes, e uma resignação de Virgem Maria, e uma compleição cor de café e textura de pêssego e olhos de um mistério impressionante com uma falta de expressão de profundidade rasteira, meio desdém meio um lamento de dor pesaroso. “Estou doente”, ela sempre diz para mim e Bull enroscada na almofada. Estou na Cidade do México em um táxi com os cabelos desgrenhados, e enlouquecido. Passo pelo Cine México em meio a engarrafamentos chuvosos bebendo da garrafa. Tristessa tenta se explicar em arengas longas que na noite anterior, quando a botei em um táxi, o motorista tentou agarrá-la e ela deu um soco nele, uma notícia que o motorista atual recebeu sem comentários. Vamos até a casa de Tristessa para sentar e ficarmos doidões. Tristessa já me avisou que a casa estará uma bagunça porque sua irmã está bêbada e doente e El Indio estará lá sentado majestosamente com uma agulha de morfina espetada no braço moreno, os olhos vidrados olhando para você, ou esperando que a espetada da agulha traga a própria chama e falando “Hmmm, za... a agulha asteca em minha carne flamejante”. Muito parecido com o gato grande em Culiao que me apresentou  na vez em que eu vim ao México para ver outras visões. Minha garrafa de uísque tem uma tampa mexicana frouxa estranha. O tempo todo eu acho que ela vai se soltar e deixar toda a minha bolsa afogada em uísque com 43% de álcool.

Pelas ruas enlouquecidas de sábado à noite com chuva como Hong Kong, nosso táxi avança devagar
por entre os caminhos do Mercado e saímos no bairro da rua das putas e saltamos atrás das barracas perfumadas de frutas e dos quiosques de tortillas, feijão e tacos com bancos fixos de madeira – o bairro pobre de Roma. Pago os 3,33 do táxi com dez pesos e peço “seis” de troco, que recebo sem qualquer comentário e me pergunto se Tristessa acha que ostento e sou perdulário demais, o grande John Bêbado no México – Mas não tenho tempo para pensar, andamos apressados pelas calçadas escorregadias com reflexos de néon e da luz das velas dos ambulantes que vendiam castanhas sobre um pano sentados no chão – entramos rapidamente na viela fedorenta onde ficava a casa de cômodos de um andar – Quando entramos, passamos por torneiras gotejantes, baldes e meninos. Nós nos abaixamos para passar por baixo de roupa pendurada e chegamos à sua porta de ferro, que está destrancada naquele interior de adobe, e nós entramos na cozinha, a chuva ainda pingando das chapas de metal e tábuas que serviam como telhado da cozinha – e permitiam que gotinhas caíssem ruidosamente na cozinha sobre o lixo da galinha no canto úmido – Onde agora, miraculosamente, vejo o gatinho rosa dando uma mijadinha sobre pilhas de restos de quiabo e comida de galinha. O quarto lá dentro está completamente imundo e bagunçado, como se tivesse sido saqueado por loucos, com jornais rasgados espalhados e galinhas comendo arroz e pedacinhos de sanduíches do chão – A irmã de Tristessa está na cama, doente, enrolada em uma colcha rosa – é tão trágico quanto a noite em que Eddy levou um tiro na chuvosa Russia Street –

Tristessa está sentada  na beira da cama arrumando as meias de náilon. Ela as puxa de dentro dos sapatos de um jeito esquisito, com o rosto grande e triste observando seus esforços, com os lábios franzidos. Observo a maneira como ela torce os pés para dentro convulsivamente quando olha para os sapatos. Ela é uma garota bonita demais. Eu me pergunto o que todos os meus amigos iam dizer lá em Nova York e em San Francisco, e o que aconteceria em Nola quando você a visse atravessar a Canal Street sob o sol quente, ela de óculos escuros e um andar preguiçoso, tentando amarrar o quimono ao sobretudo fino como se o quimono devesse amarrar o casaco, dando puxões convulsivos e brincando na rua, dizendo “Olha ali o táxi – eei, é eeleee que – lá vai você – Eu  traago de bolta yur moa-ny.” Moa-ny, dinheiro. Ela fala de um jeito parecido com minha velha tia francocanadense lá em Lawrence. “Não quero su moa-ny, o que quero é yur loave.” Loave, amor. “És yur lawv.” Lawv, a lei. – Acontece a mesma coisa com Tristessa, ela está o tempo todo tão doidona, e passando mal.

Ela se aplica dez gramas de morfina por mês – sai cambaleando pelas ruas da cidade tão bela que as pessoas continuam a se virar para olhar para ela – Seus olhos são radiantes e reluzem e seu rosto está úmido com o sereno e seu cabelo índio está negro, bem legal, é dividido em dois rabos-de-cavalo na parte de trás, enrolados em coques na nuca (o próprio penteado catedral das índias) – Seus sapatos, para os quais ela sempre está olhando, são novos em folha, não surrados, mas ela deixa que suas meias de náilon caiam o tempo todo, e as puxa insistentemente, e torce os pés convulsivamente – você visualiza uma garota bonita igual em Nova York, vestindo uma saia rodada florida a la New Look com um suéter de cashmere Dior e seios retos, e seus lábios e olhos fazem o mesmo e fazem o resto. Aqui ela está reduzida às roupas empobrecidas e sombrias de senhora índia – Você vê as senhoras índias no negro inescrutável dos umbrais, olhando como se fossem buracos nas paredes não as mulheres – suas roupas – e você olha outra vez e vê a mujer* nobre e brava, a mãe, a mulher, a Virgem Maria do México. – Tristessa tem um ícone enorme em um canto de seu quarto.

Ele fica de frente para o quarto, de costas para a parede da cozinha, no canto direito de quem olha para aquela cozinha lamentável com suas goteiras que chovem de forma indescritível dos galhos de árvore do telhado e dos compensados (o telhado explodido do abrigo) – Seu ícone representa a Santa Maria a olhar de dentro de seus chadores azuis, sua túnica e seus objetos de Damema, para os quais El Indio reza com devoção quando sai para descolar uma parada. El Indio diz ser um vendedor de suvenires – nunca o vi vendendo crucifixos em San Juan Letrán, nunca vi El Indio na rua, nem em Redondas, em lugar nenhum. A Virgem Maria está com uma vela, um monte de velas econômicas que queimam a cera dentro de vidros e duram semanas, como rodas de oração tibetanas – a ajuda incansável de nosso Amida – eu sorrio ao ver esse ícone adorável – Ele está rodeado de retratos dos mortos – Quando Tristessa quer dizer “mortos”, ela junta as mãos em uma atitude santificada, indicando sua crença asteca na santidade da morte, e da mesma maneira a santidade da essência – Então ela tem uma foto do Dave morto meu velho camarada de muitos anos que agora está morto, de pressão alta aos 55 anos – Seu rosto vagamente índio-grego salta da fotografia pálida indefinível. Não consigo vê-lo em meio a toda aquela neve. Sem dúvida ele está no Céu, as mãos juntas em posição de oração em um êxtase eterno de Nirvana. É por isso que Tristessa continua a juntar as mãos e rezar, dizendo, também: “Eu amo o Dave”, ela tinha amado seu antigo senhor – Era um velho apaixonado por uma garota. Ela estava viciada aos dezesseis. Ele a tirou das ruas e, ele também um viciado das ruas, redobrou seus esforços para conseguir, finalmente, entrar em contato com viciados de grana, e mostrou a ela como viver – uma vez por ano iam juntos de carona até Chalmas, na montanha, escalar parte dela de joelhos para chegar ao santuário com sua enorme pilha de muletas deixadas ali por romeiros curados de suas doenças, as milhares de esteiras abertas no sereno onde dormem à noite em cobertores e sobretudos – retornando, devotos, famintos, saudáveis, para acender novas velas para a Mãe e caindo outra vez nas ruas em busca de sua morfina – Só Deus sabe onde eles a conseguiam.

Eu me sento e admiro a mãe majestosa dos amantes. Não há como descrever o horror daquela escuridão nos buracos do teto, o halo marrom da noite da cidade perdido em uma elevação vegetal verde acima das Rodas dos telhados Blakeanos de adobe – a Chuva agora embaça o verde sem fim da planície do vale a norte de Actopan. Garotas bonitas passam correndo por cima de sarjetas cheias de poças – Cães latem para carros que passam em bandos – A chuva fraca esvazia-se de maneira lúgubre sobre a pedra úmida da cozinha, e a porta reluz (ferro) toda brilhante e molhada – O cachorro uiva de dor na cama. – O cão é a pequena mãe chihuahua de 30cm de comprimento, com belos pezinhos de dedos negros e unhas, um cachorro tão “refinado” e delicado que você não poderia tocá-lo sem que ele ganisse de dor – “C-aaa-in”. Tudo o que você podia fazer era estalar os dedos com delicadeza para ela e deixar que esfregasse o seu focinhozinho gelado e molhado (negro como o de um touro) contra suas unhas e seu polegar. Cachorrinho doce – Tristessa diz que ela está no cio e é por isso que chora – o galo grita debaixo da cama. O galo está esse tempo todo escutando debaixo das molas, meditativo, virando-se para olhar para aquela escuridão silenciosa ao redor, o barulho dos humanos dourados acima “BEU-VEU-VAA?”, grita ele, uiva, interrompe meia dúzia de conversas simultâneas e vociferantes como papel rasgado acima –

A galinha cacareja.
A galinha está lá fora, circulando por entre nossos pés, ciscando o chão com suavidade – Ela gosta das pessoas. Quer se aproximar de mim e se esfregar sem limites contra a perna da minha calça, mas eu não a encorajo, na verdade, ainda não a havia notado e parece aquele sonho do vasto pai insano do celeiro na floresta na uivante Nova Scotia com as marés prestes a engolir a cidade e toda a região de pinheiros ao redor no norte sem fim – era Tristessa, Cruz na cama, El Indio, o galo, a pomba no alto da cornija (nunca fez um som além do eventual treinamento de bater as asas), o gato, a galinha e a porra da mulher cachorra vadia  pretinha vira-lata chihuahua Espana que uiva.

A seringa de El Indio está totalmente cheia. Ele enfia a agulha com força e ela está cega e não penetra
na pele e ele a enfia com mais força e consegue, mas em vez de estremecer aguarda boquiaberto e em êxtase e aplica tudo, deprimido, parado. – “Você precisa me fazer um favor, Mr. Gazookus”, diz Old Bull Gaines interrompendo meu pensamento. “Vamos lá na Tristessa comigo – Estou com pouco”, mas estou pronto para desaparecer da Cidade do México, com caminhadas pela chuva, chapinhando nas poças sem reclamar ou mesmo qualquer interesse, apenas tentando chegar em casa, na cama, morto. É o maldito alucinado livro dos sonhos da droga do mundo, cheio de súplicas, mentiras e acordos escritos. E suborno, para as crianças comprarem doces, para as crianças comprarem doces. “A morfina é para a dor”, sigo pensando, “e o resto é o resto, isso é o que é, eu sou o que sou. Adoração a Tathagata, Sugata, Buda, perfeito na Sabedoria e na Compaixão, que alcançou, está alcançando e irá alcançar, todas essas palavras de mistério.”

– O motivo pelo qual eu trago o uísque, para beber, para romper a cortina negra – Ao mesmo tempo um comediante na cidade de noite – incomodado por melancolias e intervalos de calmaria, entediado, bebendo, reverente, entrando em colapso. “Onde eu vou fazer...” – Puxo a cadeira até o canto perto do pé da cama para poder sentar entre a gata e a Virgem Maria. A gata, la gata em espanhol, a pequena Tathagata da noite, de cor dourada e rosada, três semanas de idade, um focinho rosado maluco, um rosto maluco, olhos verdes, bigodes em fórceps e suíças douradas de leão – Passo meus dedos por seu crânio pequeno e ela levanta-se, ronrona e a máquina de ronronar passa um tempo ligada, e ela olha ao redor do quarto e vê satisfeita o que todos estamos fazendo. – “Ela está com pensamentos de ouro”, penso eu. – Tristessa gosta de ovos, ou não deixaria um galo macho neste ambiente feminino? Como eu posso saber como são feitos os ovos? À minha direita, as velas devocionais queimam diante da parede de barro.

É infinitamente pior  do que o sonho de sono que tive na Cidade do México no qual passo por apartamentos brancos vazios e tristes, sozinho, ou um em que os degraus de mármore de um hotel me aterrorizam – É a noite chuvosa na Cidade do México e estou no meio do bairro do Mercado dos Ladrões do México e El Indio é um ladrão bem conhecido e mesmo Tristessa era uma batedora de carteiras mas eu não faço mais que passar de leve as costas da mão contra o volume de meu dinheiro dobrado guardado à maneira dos marinheiros no bolso da frente de ferroviário de meus jeans – E no bolso da camisa guardo os cheques de viagem que são, de certa forma, impossíveis de roubar – Aquela, Ah, aquela rua lateral onde a gangue de mexicanos me pára e vasculha minha bolsa de viagem. Eles pegam o que querem e me levam para tomar uma bebida – É melancolia de maneira imprevisível nesta terra, percebo todas as incontáveis manifestações os inventos da mente-pensante que erguem uma parede de horror diante de sua conscientização pura de que não há parede ou horror apenas A Luz Leitora Vazia Transcendental Beijável da verdadeira e perfeitamente vazia Eternidade Duradoura. – Sei que está tudo bem mas quero prova, e os Budas e as Virgens Marias estão ali para me lembrar da minha promessa solene de fé nesta terra agreste e estúpida onde nós vivemos em fúria nossas assim chamadas vidas em um mar de preocupações, carne para as Chicagos dos Túmulos – bem neste minuto meu próprio pai e meu próprio irmão jazem lado a lado na lama no Norte e eu devo ser mais inteligente que eles – ao ser esperto, estou morto. Olho para os outros que estão conversando, eles percebem que estive perdido em pensamentos na minha cadeira no canto, mas estão em busca de preocupações sem fim e irrefreáveis (todas 100% mentais) próprias – Estão falando em espanhol, eu entendo apenas trechos soltos dessa conversa viril – Tristessa diz “chinga” frase sim, frase não, um marinheiro de boca suja – ela diz isso com desprezo e seus dentes rangem o que me deixa preocupado.
“Você conhece as mulheres tão bem quanto pensa?” –
O galo está tranqüilo e de repente solta um grito.

Jack Kerouac, Tristessa