quarta-feira, 12 de agosto de 2009

[4] - Livro do Desassossego



E do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

Mas o contraste não me esmaga — liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço.
A glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido…
E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, e do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento do mundo.
E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos, da minha estátua recebida por prazeres, e do anel de renúncia em meu dedo evangélico, joia parada do meu desdém extático.


Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego