terça-feira, 23 de junho de 2009
Chico Buarque, Leite Derramado
Foi a última noite que dormi aqui, e que sonhando com ela melei estes lençóis. Como toda manhã, arrancarei a roupa de cama e farei uma trouxa, que atirarei pela janela dos fundos para a lavadeira apanhar. Mas vai restar visível uma mancha úmida no colchão, que tratarei de virar como faço toda manhã, deixando para cima o lado das manchas secas. Terei a sensação de que o colchão pesa mais um pouco a cada dia, e imaginarei que na palha dentro dele, se impregna a pasta dos meus sonhos e atos solitários.
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Para o jardineiro do casarão, mamãe era mesmo como a flor, que ao mudar de vaso às vezes fenece.
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Vai ver que andei delirando, e de bom grado voltarei a falar somente de coisas que você já sabe. Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar. Não sei se já lhe contei como conheci Matilde na missa de sétimo dia do meu pai, quando ela falou Eulálio de tal jeito, que nem mesmo atrizes sensuais conseguiriam reproduzir na minha cama. Também acho que lhe contei como fui vigiá-la um dia depois, toda serelepe à saída da escola, era a mais moreninha da classe. Passei a buscá-la todo dia, só de de Matilde no saguão da escola juntei recordações em série para o resto da vida.
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O médico sempre me corta a palavra para narrar suas atividades numas paragens que só ele conhece, nesses matos onde estrangeiros gostam de se enfiar. E toca a falar de paludismo, esquistossomose, mal de Chagas, hanseníase, e entre uma e outra endemia me pego a contemplar o forte de Copacabana, esperando que desponte um transatlântico por trás da pedra. Ao meio-dia Matilde leva a Eulalinha para casa, onde lhe dá de mamar e a embala com a cantiga do boitatá-pega-neném. Volta para sentar comigo, me faz deitar a cabeça no seu colo e diz, abre a boca e fecha os olhos. Enche minha boca de areia e sai em disparada a fim de que eu a persiga mar a fundo, depois me chama para catar tatuís ou jogar peteca.
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É estranho ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre.
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Se o leite estanca assim de supetão, dizia à ama, é porque a mãe perdeu um ente querido, ou padeceu grande decepção amorosa. Olhava para o alto quando se referia ao ente querido, e decepção amorosa ela falava olhando para mim, como se eu fosse um mau marido. Logo eu, que sentia falta de Matilde tanto quanto a minha filha, e nem ao menos tinha outros peitos para me consolar.
Chico Buarque, Leite Derramado