quinta-feira, 19 de março de 2009

Brasil, um país do futuro

Antes de deixar a vida por vontade própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação; dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me propiciou, a mim e a meu trabalho, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país mais e mais e em parte alguma poderia eu reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído. Depois de 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações. Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra. Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite.
Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.


Quando os sacerdotes tentam desabituá-los do canibalismo, esbarram mais com admiração, da parte deles, do que com verdadeira resistência, pois esses selvagens ainda vivem fora de toda noção de civilização ou de moral, e devorar prisioneiros para eles não significa senão um prazer tão inocente como beber, dançar ou dormir com mulheres. Esse ínfimo grau do modo de viver parece a princípio um obstáculo invencível para a obra dos jesuítas, mas, na realidade, facilita-lhes a tarefa. Como essas criaturas nuas não possuem idéias religiosas ou morais, é muito mais fácil incuti-las nelas do que em povos em que já domina um culto próprio e em que magos, sacerdotes e xamanes com indignação se opõem ao missionário. A população aborígene do Brasil, ao contrário, é, como diz Nóbrega, um “papel em branco” que macio e dócil aceita a nova prescrição e acolhe todo ensino. Por toda parte os aborígenes recebem sem nenhuma desconfiança os “brancos”, os sacerdotes: “Onde quer que vamos, somos recebidos. com grande boa vontade”. Sem hesitação deixam que eles os batizem e de boa vontade e gratos seguem — e por que não? — os sacerdotes, os “brancos bons”, que os protegem contra os outros, os “brancos maus”. Naturalmente os jesuítas, como realistas experimentados e sempre atentos, sabem que esse assentimento indolente e irrefletido, que o ajoelhar-se e o persignar-se de canibais, absolutamente ainda não é verdadeiro cristianismo; mesmo no mais célebre defensor de sua missão em São Paulo, em Tibiriçá, observam-se às vezes reincidências no canibalismo. Os jesuítas não esperdiçam o tempo com estatísticas ostentadoras relativas às almas já conquistadas; sabem que sua verdadeira tarefa está no futuro. Em primeiro lugar é preciso apenas fazer com que essas massas nômades se fixem em sítios, para que se possa tomar conta de seus filhos e dar-lhes instrução. A atual geração, canibalesca, esta já não é possível civilizar de fato. Mas será fácil educar, de acordo com a civilização, as crianças, portanto as gerações vindouras. Por isso, para os jesuítas, o mais importante é criar escolas em que, muito previdentemente, começam com aquela ideia de mescla sistemática que fez do Brasil uma unidade e que sozinha o manteve como unidade. Conscientemente reúnem crianças das choças dos selvagens com os mestiços, já numerosos, e insistentemente solicitam que enviem crianças brancas de Lisboa, ainda que sejam apenas as crianças abandonadas, desamparadas, que são apanhadas nas ruas de Lisboa. Todo elemento novo que favoreça a mescla, é bem recebido por eles, mesmo o constituído pelos — “moços perdidos, ladrões e maus que aqui chamam de patifes”. Eles têm interesse em criar os mestres do povo por meio do próprio sangue do povo, pois os aborígenes no ensino religioso confiam mais nos irmãos da mesma cor ou de cor mesclada, do que nos estrangeiros, nos brancos. Ao contrário dos outros, os jesuítas pensam exclusivamente nas gerações vindouras; realistas e calculistas exatos e clarividentes, são os únicos que têm uma visão verdadeira do Brasil futuro, e, ainda antes que qualquer geógrafo tenha ideia da vastidão desta terra, eles pautam seu trabalho por um padrão exato. O que eles fazem é um plano de campanha para o futuro, e o objetivo desse plano, que permanece fixo através dos séculos, é a constituição desta nova terra no sentido duma única religião, dum único idioma, duma única ideia.

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A verdadeira resistência com que em seu grandioso plano de colonização, esbarram os jesuítas, não provém, como a princípio poderia esperar-se, dos aborígenes, dos selvagens, dos canibais, e sim dos europeus, dos cristãos, dos colonos. Até então, para aqueles soldados evadidos, marinheiros desertados, para os degredados, o Brasil era um paraíso exótico, uma terra sem lei, sem restrições e deveres, uma terra em que podia cada um fazer e deixar de fazer o que bem lhe aprouvesse. Sem serem seriamente importunados pela justiça ou pela autoridade, podiam eles permitir-se livre curso aos instintos desregrados; o que na pátria era punido com grilhões e ferrete, no Brasil era considerado prazer permitido, de acordo com a doutrina dos conquistadoras:- “Ultra equinoxialem non peccatur”. Eles se apossavam de terras, onde quisessem e na quantidade que quisessem; capturavam aborígenes onde quer que os encontrassem e, a chicote, os obrigavam a trabalhar. Apossavam-se de toda mulher que encontravam, e o enorme número de mestiços patenteou, em breve, a difusão dessa poligamia desenfreada. Não havia ninguém para lhes impor autoridade, e, por isso, cada um desses indivíduos que, em sua maioria, ainda traziam nas espáduas as marcas do ferrete da casa de correção, vivia, como um paxá, sem se importar com direito e religião e, sobretudo, sem jamais mover as mãos para realmente trabalhar. Ao invés de civilizarem a terra, aqueles primeiros colonos mesmos estavam asselvajados.

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Outrora os escritores, antes de darem um livro à publicidade, costumavam escrever um pequeno prefácio, no qual declaravam por que motivos, de que pontos de vista e com que intenção haviam escrito a obra. Era bom hábito, pois criava desde logo, pela franqueza e pelas palavras dirigidas aos leitores, conveniente entendimento entre um e outros. Desejo, pois, dizer, com a maior sinceridade possível, o que me levou a ocupar-me com um tema, na aparência, muito afastado do meu habitual círculo de atividade.
Quando, no ano de 1936, devia partir para Buenos Aires a fim de tomar parte no congresso do P.E.N.C., recebi convite para, aproveitando essa viagem, visitar o Brasil. Minhas expectativas não eram lá muito grandes. Eu tinha, sobre o Brasil, a ideia pretensiosa que, sobre ele, tem o europeu e o norte-americano, e tenho agora dificuldade de recordá-la. Imaginava que o Brasil fosse uma república qualquer das da América do Sul, que não distinguimos bem umas das outras, com clima quente, insalubre, com condições políticas de intranquilidade e finanças arruinadas, mal administrada e só parcialmente civilizada nas cidades marítimas, mas com bela paisagem e com muitas possibilidades não aproveitadas — país, portanto, para emigrados ou colonos e, de modo nenhum, país do qual se pudesse esperar estímulo para o espírito. Uma visita de dez dias a tal país parecia-me suficiente para quem não é geógrafo, colecionador de borboletas, caçador, sportsman ou negociante. Demorarei lá oito ou dez dias e depois regressarei depressa, assim pensei, e não me envergonho de confessar esse meu modo insensato de pensar. Acho mesmo importante fazê-lo, porque ele é mais ou menos o mesmo que ainda é corrente nos círculos europeus e norte-americanos. O Brasil, no sentido cultural, ainda hoje é uma terra incógnita como, no sentido geográfico, o foi para os primeiros navegadores. Muitas vezes fiquei surpreso de ver que ideias confusas e deficientes, mesmo pessoas cultas e interessadas por coisas políticas, possuem sobre esse país que, indubitavelmente, está destinado a ser um dos mais importantes fatores do desenvolvimento futuro do mundo. Quando, por exemplo, a bordo, um negociante de Boston, de modo bastante depreciativo falou sobre pequenos países sul-americanos e eu tentei lembrar-lhe que só o Brasil compreende um território maior do que os Estados Unidos, julgou ele que eu estava gracejando e só se convenceu da minha afirmativa diante dum mapa. Encontrei num romance — de autor inglês muito conhecido — o engraçado pormenor de fazer o seu protagonista ir para o Rio de Janeiro a fim de nesta cidade aprender o espanhol. Mas esse autor é apenas um dos inúmeros indivíduos que não sabem que no Brasil se fala português. Todavia não compete a mim, está claro, fazer censuras pretensiosas a outros por seus poucos conhecimentos; eu próprio, quando parti pela primeira vez da Europa, nada, ou, ao menos, nada de seguro sabia sobre o Brasil.
Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, comovido, pois se me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas lambem uma espécie inteiramente nova de civilização. Aqui havia, inteiramente contra a minha expectativa, um aspecto absolutamente próprio, com ordem e perfeição na arquitetura, e no traçado da cidade, aqui havia arrojo e grandiosidade em todas as coisas novas e, ao mesmo tempo, uma civilização antiga ainda conservada de modo muito feliz, graças à distância. Aqui havia colorido e movimento; os olhos não se cansavam de olhar e, para onde quer que os dirigisse, sentia-me feliz. Apoderou-se de mim uma ebriedade de beleza e de gozo que excitava os sentidos, estimulava os nervos, dilatava o coração e, por mais que eu visse, ainda queria ver mais. Nos últimos dias da minha permanência no Brasil viajei para o interior ou melhor para lugares que julguei situados no interior. Viajei doze, quatorze horas para São Paulo, para Campinas, pensando com isso aproximar-me do coração deste país. Mas, quando de volta examinei o mapa, verifiquei que com essas, doze ou quatorze horas de viagem de trem apenas havia penetrado até um pouco abaixo da pele; pela primeira vez comecei a fazer ideia do incrível tamanho deste país, que propriamente já quase não deveria ser qualificado de um país, mas sim antes de um continente, um mundo com espaço para trezentos, quatrocentos, quinhentos milhões de habitantes e uma riqueza imensa sob este solo opulento e intacto, da qual apenas a milésima parte foi aproveitada. Um país em desenvolvimento rápido, mas apenas incipiente e, apesar de toda a atividade operante, construtiva, criadora, organizadora, um país cuja importância para as gerações vindouras não podemos calcular, mesmo fazendo as mais ousadas combinações. E com surpreendente velocidade desvaneceu-se a presunção européia que muito superfluamente trouxera como bagagem. Percebi que havia lançado um olhar para o futuro do mundo.

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É impossível conhecer inteiramente o Brasil, esse mundo tão vasto. Passei cerca de meio ano neste país e precisamente só agora sei que, apesar de toda a diligência em aprender e de todo o viajar, ainda não posso dizer que conheço o Brasil e sei também que uma vida inteira não bastaria para conhecê-lo. (...)Apesar de todo o meu viajar, olhar, aprender, ler e procurar, não penetrei muito além da orla da civilização do Brasil. Tenho que me consolar com a ideia de haver encontrado apenas dois ou três brasileiros que puderam afirmar conhecer o âmago quase impenetrável de seu país, e com a de que estrada de ferro, vapor ou auto, meios esses também impotentes contra a vastidão fantástica desta terra, não me teriam levado muito além dos lugares até onde fui. Não me é possível expender conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão indistinto, em conseqüência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de especialistas para esclarecê-lo inteiramente. É impossível ter uma noção completa dum país que ainda não tem uma vista de conjunto completa de si próprio e se acha em crescimento tão rápido que toda estatística e todo relatório já estão atrasados quando impressos. Do grande número de aspectos quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral. Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humano pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas a diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro. O Brasil resolveu-o duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas, também a admiração do mundo. (...)Aqui vivem os descendentes dos portugueses que conquistaram e colonizaram o Brasil, aqui vive a descendência aborígene dos que habitam o interior do país desde épocas imemoráveis, aqui vivem milhões provindos dos negros que nos tempos da escravatura foram trazidos da África, e milhões de estrangeiros, portugueses, italianos, alemães e até japoneses. Segundo o modo de pensar europeu, seria de esperar que cada um desses grupos assumisse atitude hostil contra os outros, os que haviam chegado primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos contra os negros, os brasileiros contra os europeus, os de cor branca, parda ou vermelha, contra os da raça amarela, e que as maiorias e as minorias em luta constante pelos seus direitos e prerrogativas se hostilizassem. Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, vivem em perfeito acordo entre si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea. Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo — e a importância desse experimento parece-me modelar — o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema. Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a quimera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há séculos assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo. O que em outros países está teoricamente estabelecido apenas no papel e no pergaminho, a absoluta igualdade dos cidadãos na vida pública, bem como na vida privada, aqui existe de fato, na escola, nos empregos, nas igrejas, nas profissões e na vida militar, nas universidades, nas cátedras.

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A primeira impressão que dá este país é a duma opulência perturbadora. Tudo é intenso, o sol, a luz, as cores. O azul do céu é aqui mais vivo, o verde é mais carregado, a terra é compacta e vermelha; nenhum pintor poderá encontrar em sua paleta tons de cor mais deslumbrantes, mais irisados do que os que aqui têm as aves em sua plumagem, as borboletas em suas asas. A natureza alcança sempre o seu superlativo: nas trovoadas, que com estrondosos relâmpagos rasgam o firmamento; nas chuvas, que se precipitam como catadupas, e na vegetação, que em alguns meses pulula, formando intenso matagal verde. Mas também o solo intacto desde séculos e milênios responde aqui a todo apelo com uma energia quase incrível. Se nos lembramos do trabalho, do esforço, da habilidade, da tenacidade a que na Europa temos de recorrer para conseguir, dum jardim, ou dum agro, flores ou frutos, ficamos surpresos de encontrar aqui uma vegetação que, ao contrário, temos que conter para que se não desenvolva demasiado impetuosa, demasiado violentamente. Aqui não temos que favorecer o crescimento e sim lutar contra ele, a fim de que em sua bárbara impetuosidade não sufoque o que é plantado pela mão do homem. Espontaneamente e sem trato crescem aqui os vegetais que dão à maior parte da população o alimento, a banana, a manga, a mandioca, o abacaxi. E toda nova planta frutífera, todo novo vegetal, trazido doutro continente para aqui, imediatamente se adapta a este húmus virgem. A impetuosidade com que esta terra responde a todas experiências que nela se tentam, de maneira paradoxal, várias vezes em sua história econômica, até se transformou em perigo. Aqui se originaram com seqüência quase regular crises de superprodução, unicamente porque tudo corria demasiado rápido e fácil; o Brasil, logo que começava a produzir alguma coisa, tinha sempre de conter-se para não produzir demais. O lançamento do café ao mar ou ao fogo no século vinte é o último exemplo disso. Por isso a história econômica do Brasil está cheia de mudanças surpreendentes, e talvez até mais dramáticas do que as de sua história política. Via de regra, o caráter econômico dum país é, desde o começo, inequivocamente determinado; cada país como que toca um único instrumento e a euritmia não se altera essencialmente no correr dos séculos. Este é um país de jardins, aquele tira sua riqueza de madeiras ou de minérios, aqueloutro a obtém da criação de gado. A linha da produção pode oscilar em diferentes ascensões e descidas, mas de um modo geral a direção permanece a mesma. O Brasil, ao contrário, é o país das constantes transformações e das súbitas mudanças. Verdadeiramente cada século teve aqui característica econômica diversa e, no desenvolver-se do drama, cada ato tem o nome de um produto: açúcar, ouro, café, borracha, algodão ou madeira. Em cada século, propriamente em cada meio século, o Brasil apresentou sempre outra nova surpresa de sua opulência.

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Desde 1808 é permitido a navios estrangeiros aportarem aqui e permutarem-se os artigos, sem que os tributos tenham que ser remetidos para a Tesouraria de Lisboa. É permitido no Brasil falar, escrever e pensar, e assim pode afinal ter início neste país, com o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento cultural, que por tanto tempo foi violentamente impedido. Pela primeira vez desde o rápido episódio da ocupação holandesa se mandam vir sábios, artistas, técnicos de nomeada, a fim de aqui promoverem o desenvolvimento de uma civilização própria. Criam-se coisas inteiramente desconhecidas aqui, como sejam bibliotecas, museus, universidades, academias de arte, escolas técnicas, e dá-se ao país inteira liberdade de revelar sua personalidade na civilização do mundo.

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Mas é uma particularidade do desenvolvimento do Brasil o fato de este país de possibilidades sem limites sempre vencer cada uma de suas crises por meio duma repentina transformação: logo que o seu principal artigo de exportação o deixa em dificuldades, encontra ele outro, e este mais rendoso. Do mesmo modo que o século dezessete operou tal milagre, da inesperada ascensão, pelo açúcar e o século dezoito pelo ouro e pelos diamantes, o século dezenove realiza-o pelo café. Após o ciclo do açúcar, do “ouro branco”, e o ciclo do ouro “áureo”, começa com o café o ciclo do “ouro pardo”, que depois por curto tempo é substituído pelo ciclo do “ouro vermelho”, da borracha. É uma marcha triunfal sem par, pois com o café o Brasil obtém durante o século dezenove e parte do século vinte um monopólio mundial absoluto: de novo são os velhos e tão característicos fatores, a fertilidade, do solo, a facilidade do plantio, a primitividade do processo de produção, que fazem com que esse novo produto seja muito apropriado precisamente para o Brasil. O café não pode ser plantado, nem colhido com máquina. No seu plantio e na sua colheita o escravo ainda vale muito. E é como o açúcar, o cacau, o fumo, um produto cobiçado pelos nervos gustativos requintados; é propriamente o produto complementar do açúcar e do fumo, pois após uma boa refeição constituem os três uma tríade ideal.

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Embora não sejam escravos, esses seringueiros praticamente são mantidos em escravidão, por contratos de trabalho e pelo fato de os empresários, ainda não satisfeitos com o lucro obtido na borracha, venderem a esses infelizes trabalhadores presos no “cárcere verde” da floresta virgem os artigos e os víveres de que eles precisam, por preços quatro a cinco vezes superiores ao seu valor. Quem quiser conhecer todos os pormenores do horror desse período, leia o admirável romance de Ferreira de Castro, que com grandioso realismo descreve essa vergonhosa época. O trabalho do seringueiro é terrível; morando em miserável rancho na floresta, isolado de toda a humanidade civilizada, tem ele que primeiro abrir com facão e foice caminho para chegar às seringueiras e depois marcá-las e sangrá-las, tem que várias vezes por dia ir e voltar, sob o calor escaldante, tem que ferver o látex obtido, e, enfraquecido pela febre, com suas forças consumidas, após meses de trabalho, graças a cálculos criminosos, continua devendo ao empresário, que dele exige o que com ele gastou para levá-lo para ali, e o explora no fornecimento de víveres. Se o desgraçado tenta fugir do seu cativeiro, que é eufemicamente denominado “contrato de trabalho”, é caçado, exatamente como outrora o escravo, por guardas armados, e dai em diante tem que trabalhar acorrentado.(...)
Todos especulam, todos negociam com borracha, e, enquanto as árvores sangram e no cárcere verde da floresta os seringueiros perecem às centenas e aos milhares, uma geração inteira enriquece no Amazonas com o ouro liquido, como outrora seus antepassados enriqueceram nos vales auríferos de Minas Gerais.

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Essa imigração de quatro a cinco milhões de brancos nos últimos cinqüenta anos importa num enorme acréscimo de energia para o Brasil e ao mesmo tempo lhe proporciona uma imensa vantagem no ponto de vista da civilização e da etnologia. A raça brasileira, que, por uma importação de negros durante três séculos, está ameaçada de se tornar cada vez mais escura, cada vez mais africana, clareia visivelmente, e o elemento europeu, em oposição ao elemento, primitivamente crescente, de escravos analfabetos, eleva o nível geral de civilização. O italiano, o alemão, o eslavo, o japonês trazem de suas pátrias, por um lado, uma energia e uma disposição para o trabalho ainda de todo íntegra e, por outro, a pretensão a um padrão de vida mais elevado. Sabem ler e escrever, têm conhecimento técnico, trabalham com ritmo mais rápido do que a geração mal acostumada pelo serviço dos escravos e não raro debilitada em sua capacidade de trabalho pelo clima.

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Tudo aqui se mistura, se confunde, pobre e rico, novo e velho, paisagem e civilização, choças e arranha-céus, negros e brancos, carroças antiquadas e automóveis, praia e rochedo, vegetação e asfalto. E tudo isso brilha com as mesmas cores deslumbrantes, tudo é bonito, tudo é mesclado e sempre fascinante.

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No Rio a vida pode ser boa para todos. A ideia de aqui ser rico, de viver em uma dessas casas maravilhosas cercadas de parques e situadas nos outeiros da Tijuca é muito sedutora. É mais fácil ser pobre aqui do que noutra grande cidade. O mar é livre para o banho, e a beleza para todos os olhos; as pequenas necessidades da vida custam pouco dinheiro, as pessoas são afáveis e é infinda a multiplicidade das pequenas surpresas
diárias que fazem feliz uma pessoa, sem que ela saiba o porque disso. Há, na atmosfera, algo de brando e repousante que faz com que o indivíduo se torne menos combativo,talvez também menos enérgico. Esta paisagem, como tudo o que é belo e sem par na terra, dá ao indivíduo um misterioso consolo. De noite, com seus milhões de estrelas e de luzes, de dia com suas cores claras e vivíssimas, ardentes e explosivas, no crepúsculo com sua leve neblina e jogos de nuvens, em seu calor fragrante e em seus aguaceiros tropicais, esta cidade sempre é encantadora. Quanto mais tempo a conhecemos, tanto mais gostamos dela. Mas quanto mais tempo a conhecemos, tanto menos podemos descrevê-la.

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 Só meia dúzia de velhos lamentam o desaparecimento do “Rio antigo”, mas como isso, em verdade, não fazem mais do que inconscientemente lamentarem a própria velhice.

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Algumas das coisas singulares, que tornam o Rio tão colorido e pitoresco, já se acham ameaçadas de desaparecer. Sobretudo as “favelas”, as zonas pobres. em plena cidade, será que ainda as veremos daqui a alguns anos? Os brasileiros não gostam de falar dessas “favelas”; no ponto de vista social e no ponto de vista higiênico, constituem elas um atraso, numa cidade muito limpa e que, por um serviço modelar de higiene, em alguns anos se libertou inteiramente da febre amarela, que outrora nela era endêmica. Mas as “favelas” apresentam um colorido especial no meio dessa figura caleidoscópica, e ao menos umas dessas estrelinhas do mosaico deveria ser conservada no quadro da cidade, porque elas representam um fragmento da natureza humana primitiva no meio da civilização..
 Essas “favelas” têm a sua história. A gente humilde que, em parte, vive com salários muito pequenos, não podia morar em casas de aluguel situadas. dentro da cidade; vir diariamente dos arredores da cidade ao local do serviço, e, depois, voltar para casa seriam duas viagens por dia, que acarretariam despesas de passagens. Por isso, procuraram eles, nos morros e nos rochedos situados dentro da cidade, para os quais não há ruas, um local e construíram uma casa, ou melhor, uma choça, sem perguntarem de quem era o terreno. Para a construção de um desses mocambos. não há necessidade de arquiteto. Pegam-se alguns bambus e fincam-se no solo. Enchem-se os vãos entre os bambus com barro amassado. Soca-se o chão. Cobre-se o casebre com palha. E está ele pronto. Não precisa de janelas de vidro, algumas folhas de zinco apanhadas em qualquer lugar servem de janelas. Uma cortina feita de um saco velho cobre a entrada, que, quando muito, ainda é embelezada por pedaços de madeira, de caixões. E a choça é igual à que há centenas de anos seus avós construíram na aldeia brasileira ou africana. O mobiliário não é lá muito rico — uma mesa feita pelo próprio dono da casa, uma cama, alguns bancos — e, nas paredes se acham pregadas algumas figuras coloridas, tiradas de velhas revistas. Esses moradores também não têm algumas comodidades modernas. Assim é que a água tem que ser carregada da fonte que fica em baixo, na planície, por um caminho de degraus feitos no barro ou no rochedo; ininterruptamente se veem mulheres e crianças carregando para cima do morro o precioso líquido em vasilhas sobre a cabeça, não em potes — esses custariam muito dinheiro — mas em latas de querosene. A iluminação elétrica não chega a esses casebres, à noite neles tremeluzem apenas pequenas lamparinas de querosene. E sempre o caminho íngreme subindo degraus, pedras e escadas, muitas vezes resvaladiço e raramente limpo, pois entre os casebres andam os bichos mais diversos, cabras e gatos famintos, cães sarnosos e galinhas magras, e as águas servidas correm, sem cessar, pelas vielas. A cinco minutos de uma praia de luxo, de uma avenida, parece-nos estarmos numa aldeia da Polinésia ou da África. Vemos o máximo de primitividade, a maneira mais simples de habitar e de viver, uma maneira que na Europa ou nos Estados Unidos da América do Norte já quase não se acredita existir. Mas, coisa curiosa, o espetáculo nada tem de aflitivo, de repulsivo, de vergonhoso, pois esses moradores se sentem ali mil vezes mais felizes do que o nosso proletariado em suas casas de cômodos. Moram em casas próprias, podem ali fazer e deixar de fazer o que quiserem; à noite ouve-se que cantam e riem — ali eles são senhores de si. Se aparece o proprietário do terreno ou uma comissão que os obriga a se retirarem; para se abrir no local uma rua ou um bairro residencial moderno, eles calmamente se mudam para outro morro. Nada os impede de carregarem consigo os seus casebres. E, como esses casebres estão situados no alto dos morros, nos mais inacessíveis recantos, têm a mais bela vista que se pode imaginar, a mesma vista que têm as mais caras vilas de luxo, e é a mesma natureza luxuriante que ali orna seus lotezinhos com palmeiras, e generosamente lhes dá bananeiras essa maravilhosa natureza do Rio, que não deixa a alma ser melancólica e infeliz, porque, incessantemente, afaga, com sua mão macia e tranquilizadora. Quantas vezes subi aqueles degraus escorregadios, de barro, para visitar essas zonas de gente humilde. Nunca vi por ali uma pessoa pouco afável ou uma pessoa triste. Como essas “favelas” desaparecerá uma parte interessante, um pedaço incomparável do Rio, e quase não posso imaginar os morros da Gávea e outros sem esses pobres casebres, colados na rocha, que com sua primitividade lembrem quanto de supérfluo temos e exigimos.

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Também outra originalidade do Rio em breve será vítima da ambição civilizadora e talvez também da moral — como em muitas cidades da Europa, Hamburgo ou Marselha — as ruas de que não se fala, a zona do Mangue, a grande feira do amor, a yoshivara do Rio. Oxalá ainda a última hora aparecesse um pintor, a fim de retratar essas ruas, quando elas à noite brilham com luzes verdes, vermelhas, amarelas e brancas e sombras fugitivas, constituindo um espetáculo oriental, misterioso pelos destinos acorrentados uns aos outros e semelhante ao qual não vi outro em toda minha vida. Nas janelas, ou melhor, nas portas se acham como animais exóticos por trás das grades, mil ou talvez mil e quinhentas mulheres, de todas as raças e todas as cores, de todas as idades e naturalidades, negras senegalescas ao lado de francesas, que já quase não podem encobrir com arrebiques as rugas produzidas pelos anos, caboclas franzinas e croatas obesas, e esperam os fregueses, que em incessante préstito espiam pelas janelas, a examinar a mercadoria. Por trás de cada uma dessas mulheres se veem lâmpadas elétricas de cor, que iluminam com reflexos mágicos o aposento posterior, no qual se destaca da penumbra o leito, que é mais claro, um clair-obscur de Rembrandt, que torna quase mística essa atividade quotidiana e, além disso, assombrosamente barata. Mas o que é mais surpreendente, o que, ao mesmo tempo, é brasileiro, nessa feira, é a calma, o sossego, a disciplina; ao passo que em ruas como essas, em Marselha, em Toulon, reina grande barulho, se ouvem risadas, gritos, chamados em voz alta e gramofones, ao passo que lá os fregueses bêbados, europeus, berram nas ruas, aqui, nas do Rio reina calma e moderação. Sem se sentirem envergonhados, os homens passam diante daquelas portas para às vezes desaparecerem ali, como um rápido raio de luz. E por cima de toda essa atividade calma e oculta está o firmamento com suas estrelas; mesmo esse recanto, que em outras cidades, de qualquer modo, consciente e envergonhado de seu comércio, se concentra nos bairros mais feios e mais decaídos, no Rio ainda tem beleza e se torna um triunfo de cor e de luzes variadas.

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Aos jogos importados da Europa, à vispora, ao bacará e à roleta, juntava-se um inventado no Brasil, o jogo do bicho, o jogo nacional, que, apesar de rigorosamente proibido pelo Governo, era realizado com o máximo interesse. Esse jogo do bicho tem uma singular história de origem, a qual por si já mostra de modo claro quão profundamente essa paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo. O diretor do Jardim Zoológico queixava-se de que este era pouco visitado. Por isso, como bom conhecedor de seus patrícios, teve a esplêndida ideia de fazer sortear cada dia um dos bichos do seu Jardim, um dia o urso, outro dia o burro, outro dia o elefante. Todo indivíduo cujo bilhete de entrada correspondia ao bicho sorteado, recebia um prêmio no valor de vinte ou vinte e cinco vezes a importância da entrada. Deu-se logo o resultado desejado: o Jardim Zoológico durante semanas foi visitadíssimo, mas os visitantes verdadeiramente ali iam menos para verem os bichos do que para ganharem prêmios. Afinal começaram a achar que o Jardim era muito distante e que era muito penoso irem ali todos os dias. Por isso passaram a jogar particularmente, entre si, de acordo com o jogo do Jardim Zoológico. Surgiram pequenas bancas atrás dos balcões das tavernas e nas esquinas, bancas essas que recebiam o jogo e pagavam os prêmios. Quando a Policia proibiu o jogo, foi ele secretamente relacionado com o resultado da loteria. Para evitar que a Polícia apreendesse qualquer prova, jogava-se em confiança. O banqueiro não fornecia recibo a seus clientes, mas não se conhece caso algum em que não houvesse ele cumprido a sua obrigação. Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais; toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.


Brasil, um País do futuro
Stefan Zweig
Tradução: Odilon Gallotti