O desespero é a discordância interna duma síntese cuja relação se refere a si mesma. Todavia a síntese não é a discordância, é apenas a sua possibilidade, ou então implica-a. Caso contrario não haveria sombra de desespero. Desesperar não seria mais do que uma característica humana, inerente à nossa natureza, ou seja, que o desespero não existiria, sendo apenas um acidente para o homem, um sofrimento como uma doença em que se soçobrasse, ou, como a morte, nosso destino comum. Portanto, o desespero está em nós.
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Da mesma forma como provavelmente não haja, segundo os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que não há um só que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si mesmo.
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(...) a maior parte das pessoas vive sem grande consciência do seu destino espiritual... e daí toda essa falsa despreocupação, essa falsa satisfação em viver etc., etc., que é o próprio desespero.
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Pecar é ignorar – definição socrática do pecado.
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O pecado é desespero. O que eleva sua intensidade é o novo pecado de desesperar do próprio pecado. Percebe-se facilmente que é isso o que se entende por elevação de intensidade. Não se trata dum outro pecado, como após um roubo de cem, um outro de mil moedas. Não, não se trata aqui de pecados isolados. O estado contínuo de pecado é o pecado, e esse pecado intensifica-se na sua nova consciência.
Desesperar do próprio pecado significa que este se encerrou na própria sequência e não quer sair daí. Recusa-se a qualquer contato com o bem, receia o medo de escutar por vezes uma outra voz. Não, pois está decidido a escutar apenas a si mesmo, a não conviver senão consigo, a fechar-se no seu eu, a enclausurar-se por detrás duma nova muralha, enfim, a garantir-se pelo desespero do seu pecado contra qualquer surpresa ou perseguição por parte do bem. É consciente de ter cortado todas as pontas atrás de si, e de estar assim inacessível ao bem como o bem o está a ele. Isso a tal ponto que, conquanto num momento de fraqueza o quisesse, voltar atrás lhe seria impossível. Pecar é afastar-se do bem. Porém desesperar do pecado, é um segundo abandono, e que, como dum fruto, espreme do pecado as últimas forças demoníacas. Então, nesse endurecimento ou inteiriçamento infernal, levado na sua própria sequência, obriga-se, não apenas a ter como estéril e vazio a tudo o que seja arrependimento e perdão, mas ainda a ver nisso um perigo, contra o qual, em primeiro lugar, precisa armar-se, exatamente como faz o homem de bem contra a tentação. Nesse sentido, Mefisto no Fausto, diz certo ao afirmar que não há pior miséria do que a dum diabo que desespera. Porque o desespero, nesse caso, não é senão fraqueza que dá ouvidos ao arrependimento e ao perdão. Para caracterizar a intensidade de potência que se eleva o pecado, quando dele se desespera, poderia dizer-se que se começa por renegar o bem, e se acaba por renegar o arrependimento.
Entrar em desespero devido ao pecado é tentar manter-se caindo cada vez mais. Como o aeróstata sobe largando lastro, assim o desesperado se obstina em lançar todo o bem pela borda afora – sem compreender que é um lastro que eleva, quando conservado -, e cai, julgando subir – e é certo que, também, cada vez se torna mais leve. Por si só o pecado é a luta do desespero. Todavia, esgotadas as forças, é preciso uma nova elevação de potência, uma nova compreensão demoníaca sobre si mesmo. Isso é o desespero do pecado. É um progresso, um crescimento do demoníaco que, evidentemente, nos mergulha, nos afunda no pecado. É uma tentativa para dar o pecado um interesse, para torná-lo uma potência, dizendo que as sortes estão deitadas para sempre, e que se permanecerá surdo a qualquer ideia de arrependimento e perdão. Não se ilude o desespero do pecado, contudo, com o seu próprio nada, sabendo bem que nada mais tem de que possa viver, nada mais, a própria ideia do seu eu sendo nada para ele. É o que, como grande psicólogo, diz o próprio Mcbeth (II,I), depois de ter assassinado o rei – e desesperando agora do seu pecado:
There’s nothing serious in mortality:
All is but toys: renown and grace is dead.
[nada há de sério em imortalidade
Tudo fantasia: renome e graça morreram]
O magistral desses versos está na dupla intenção das palavras renown e Grace. Pelo pecado, quer dizer, desesperando do pecado, está ao mesmo tempo a infinita distância da graça... e dele próprio. O seu eu, só egoísmo, culmina em ambição. Ei-lo rei e, contudo, desesperando do seu pecado e da realidade do arrependimento, ou seja, da graça, e mesmo, acaba de perder o seu eu. Incapaz de por si mesmo o sustentar, está exatamente tão distante de o poder gozar na ambição como de obter a graça.
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É impossível julgar as pessoas como animais. Impossível porque os animais não se julgam.
O desespero Humano – Sören Kierkegaard
Tradução: Alex Marins