"A causa de tudo isso é estar eu doente", decidiu, finalmente, mal-humorado. "Eu próprio me atormento e martirizo, e não sei ao certo o que faço... E ontem, e anteontem, e todo este tempo tenho estado a atormentar-me... Quando me puser bom... deixarei de sofrer... Mas se eu não me ponho bom? Senhor! Como eu já estou farto de tudo isto!"
Caminhava sem parar. Sentia uma ânsia feroz de distrair-se, fosse como fosse; mas não sabia que fazer nem que empreender. Uma sensação nova, invencível, se ia arraigando nele cada vez mais: era uma aversão infinita, quase física, por tudo quanto encontrava e via, uma sensação obstinada, maldosa, inflamada. Todas as pessoas se lhe tornavam odiosas, eram-lhe também odiosas as suas caras, a sua maneira de andar, todos os seus movimentos.
Cuspir-lhes-ia simplesmente, morderia quem quer que tivesse a intenção de lhe falar...
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- Que pensam as senhoras? - exclamou Razumíkhin, elevando a voz ainda mais. - Julgam que eu me ponho assim porque eles mentem? Tolice! Eu gosto que eles mintam! A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais. Vai mentindo... que depois hás de atingir a verdade! É precisamente por ser homem que eu minto. Nem uma só verdade poderia alcançar se antes não mentisse catorze vezes, e até cento e catorze vezes, o que representa uma honra sui generis; simplesmente, nós nem sequer sabemos mentir com inteligência! Tu me mentes, mas mentes-me de uma maneira especial, e eu ainda por cima te dou um abraço. Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor que dizer a verdade à maneira de toda a gente; no primeiro caso é-se um homem e, no segundo, não se é mais do que um papagaio! A verdade não anda depressa, mas, à vida, podemos fazê-la correr; há exemplos disso. Ora vejamos: que somos nós presentemente? Todos, todos sem exceção, no campo das ciências, da cultura, do engenho, da invenção, da experiência, em todos os campos, em todos, em todos, não passamos das primeiras letras. Gostamos de nos regalarmos com a inteligência alheia! Da papinha já feita! Não é verdade? Não tenho razão? - exclamou Razumíkhin, exaltando-se e apertando as mãos das duas mulheres. - Não será verdade isso tudo?
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Todos os criminosos, sejam eles quais forem, experimentam no momento de cometer o seu crime uma espécie de enfraquecimento da vontade e do raciocínio, estado esse que vem depois a ser substituído por um atordoamento extraordinário e pueril, precisamente no momento em que mais necessárias lhe seriam a razão e a prudência. Esse eclipse do raciocínio, esse desfalecimento da vontade, segundo Raskólhnikov, apoderava-se do homem à maneira de uma doença, desenvolvendo-se progressivamente e alcançando o seu máximo de intensidade momentos antes do cometimento do crime: persistia durante a execução deste último e algum tempo depois, conforme os indivíduos, acabando depois por desaparecer como qualquer outra doença. O problema estava em saber se é a doença que engendra o crime, ou se o próprio crime, por sua natureza, é que é sempre acompanhado de um certo gênero de doença; mas isso era uma questão que ele não se sentia capaz de resolver.
Quando chegou a essas deduções, decidiu que, pelo que lhe dizia respeito, pessoalmente e ao seu projeto, não era possível que se produzissem semelhantes colapsos morais, pois nem a sua razão nem a sua vontade haviam de abandoná-lo durante toda a execução da sua empresa, unicamente pela razão de que aquilo que se propunha levar a cabo não era um crime... Prescindimos do processo mediante o qual chegara a essa resolução suprema, pois já nos adiantamos sobre os acontecimentos... Acrescentamos apenas que as dificuldades práticas, de ordem puramente material, do assunto, não assumiam no seu espírito senão uma importância completamente secundária. "Basta que conserve o domínio da minha vontade e da minha razão para que, chegando o momento, fiquem vencidas todas essas dificuldades quando se trata de tocar nos pormenores mais insignificantes do meu plano..." Mas a execução do seu desígnio ia-se adiando. Cada vez tinha menos fé na possibilidade de as suas resoluções assumirem um caráter definitivo e, chegada a hora, os acontecimentos tomarem um rumo completamente diferente, imprevisto, para não dizer inesperado.
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E os meus pensamentos eram como sonhos, sonhos estranhos e diferentes. Que sonhos! Mas foi então que me comecei a lembrar de que... Não, não foi assim. Já estou outra vez desfigurando a verdade! Olha, eu, por essa altura, não fazia outra coisa senão perguntar a mim próprio: "Pois se eu vejo a estupidez dos outros, por que não procuro ser mais inteligente do que os outros?" Porque eu sabia, Sônia, que, se estivesse à espera de que os outros todos se tornassem inteligentes, tinha muito que esperar... Além disso reconhecia que os homens não mudam e não há quem seja capaz de mudá-los, e que não vale a pena uma pessoa incomodar-se em vão. Sim, é assim mesmo! É essa a lei... é a lei, Sônia! É assim mesmo! E agora sei também, Sônia, que quem é forte de alma e inteligência domina sobre eles. Quem se arrisca a muito é que tem razão, para eles. Quem é capaz de desprezar muitas coisas é que é para eles o legislador, e o que for mais atrevido de todos, é esse o que tem mais razão. Tem sido assim até hoje e assim será para sempre! Só o cego é que não o vê!
Enquanto dizia isso, embora continuasse olhando para Sônia, Raskólhnikov já não se preocupava com o fato de que ela pudesse ou não compreendê-lo. A febre apoderara-se completamente dele. Parecia tomado de um sombrio entusiasmo. (De fato, havia já muito tempo que não falava com ninguém.) Sônia compreendia que aquela lúgubre catequese era nele sincera, que era a sua verdade.
- Então adivinhei, Sônia - continuou com entusiasmo -, que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer. Então me ocorreu, pela primeira vez na minha vida, um pensamento que anteriormente nunca me acontecera. Nunca! De repente tornou-se-me claro como a água, surgiu-me em toda a evidência que, até hoje, ninguém se atrevera, nem se atreveria, ao passar junto a toda essa estupidez, a pegar-lhe simplesmente pelo rabo e a atirar com ela para o diabo. Eu... eu queria atrever-me, e matei... a única coisa que eu queria era atrever-me, Sônia: aí tens a verdadeira razão.
Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo