Cada um descobre o seu anjo tendo um caso com o demônio.
(Avô Mariano)
(...) Um pássaro-martelo rodopia sobre mim. Pousa e se aproxima, sem medo. Fica-me olhando, sereno como se eu lhe fosse familiar. Me apetece tocar-lhe mas me guardo, imóvel. Ele se anicha em seu próprio corpo, parece adormecido. Fecho os olhos, afrouxado naquela quietude. Quando me levanto e, pé ante pé, tento despertar o pássaro, ele se conserva imóvel. Estaria adoentado, ainda me ocorreu. Um pássaro adoece? Ou desmorona-se logo na morte, sem enfermidade pelo meio? Encorajado pela atitude da ave acabo tocando-lhe, num leve roçar dos dedos. É então que do corpo do mangondzwane se libertam dezenas de outras aves semelhantes, num deflagrar de asas, bicos e penas. E o bando, em espesso cortejo, se afasta, rente ando o rio Madzimi, lá onde minha mãe se converteu em água.
Volto a casa, já anoitece. Procuro Dulcineusa, quero-lhe contar o sucedido com a ave dos presságios. Não está no quarto nem na cozinha. Surpreendo-a na sala deitada no escuro com o Avô. Está de costas, ainda meio despida. A blusa está desabotoada e as costas nuas luzem, gotejadas de suor. Parecem ter acabado de ter relações.
A Avó ainda está ofegante. Receio que fique ali, ao rigor do frio e da cacimba. Chamo-a, com carinho:
- Avó Dulcineusa!
Lentamente ela se vira. Um choque quase me atira ao chão. Não é Dulcineusa. É minha Tia Admirança! E sua ofegação não resulta de cansaço. Ela está chorando. Mãos nas mãos, dedos num entrelaço cego. Chora junto de Mariano.
- Esse homem, você não sabe quanto eu o amei!.. Quanto eu o amo.
- O Avô?
- Esse homem não é seu Avô, Mariano.
Ergue-se e sai chorando. Fico no escuro, vazio de ideia, deserto de sentimento. Mariano não era meu avô? Teria eu escutado bem? Ou a Tia estaria já contaminada pela morte que pairava em casa?
A sombra do pássaro-martelo atravessa o chão da minha alma.
Regresso ao quarto e sento na mesa. À minha frente, olho a folha em branco. Nada está nela escrito. Alguma vez terá havido realmente qualquer palavra escrita?
Seguro a caneta. O desejo arde em minhas mãos mas, ao mesmo tempo, o medo me paralisa. É um receio profundo de que qualquer coisa esteja desabando. Começo escrevendo, a mão obedece a uma voz antiga enquanto vou redigindo:
Desculpe sua Tia. Mas eu careço de lhe fazer uma revelação: Admirança foi a mulher em minha vida. Não foi Dulcineusa, nem Miserinha, nem nenhuma. Foi ela, minha Admirança. Ela é muito mais nova que a irmã Dulcineusa. Quando casei, ela estava longe de ser mulher. Era menina, a mais nova das irmãs de Dulcineusa. Depois, foi completando formas, enchendo-se de redondeada polpa. Não imagina como ela detinha belezas! Vivia conosco, em nossa casa, e Dulcineusa nem suspeitava como sua irmã
recheava meu coração e apaladava meus sonhos.
Dimira, assim eu lhe chamava. Minha Dimira que eu sempre tanto desejei! Em miúda, ela se costumava meter numa canoa e subir o rio. Nas noites sem luar, Admirança empurrava a embarcação até quase não ter pé. Depois saltava para dentro da canoa e, à medida que se afastava, ia despindo suas roupas. Uma por uma, as lançava na água e as vestes, empurradas pela corrente, vinham ter à margem. Desse modo, eu sabia quando ela já estava inteiramente nua. Sucedia, porém, quando eu deixava de
vislumbrar a canoa, perdida que estava na distância. Não vendo, eu adivinhava a sua nudez e prometia que, um dia, aquela mulher me pertenceria. E era como se, naquele instante, uma luz abrisse o ventre da escuridão. Eu era o acendedor das noites.
Não houve lua nova que eu não ficasse na margem espreitando sua invisível presença, entre as neblinas do rio. (...)
Naquela noite regressei ao rio e encontrei Admirança ainda no bote. Ela acreditou que eu vinha para propósitos de corpo e beijo. Mas eu, mal entrei na embarcação, me prostrei como que de joelhos e lhe pedi se podia dormir ali com ela. Dormir, sem mais demais. Que eu nunca havia dormido com mulher nenhuma. Ela me olhou, espantada, como se a ausência do luar me escangalhasse o juízo. E estendeu a mão, ajudando-me a deitar, todo estendido no barquito.
No embalo da ondulação acabei adormecendo.
Admirança, entretanto, foi mandada para Lualua, onde havia uma missão católica. Nós nos encontrávamos lá, não havia mês que não o fizéssemos. Foi assim que ela engravidou. E não podia. Pensei, rápido, num modo de sanar o pecado. Pedi a Mariavilhosa, sua mãe, que fizesse de conta que estava grávida. Se ela fingisse bem, os xicuembos lhe dariam, mais tarde, um filho verdadeiro. Sua mãe fingiu tão bem, que a barriga lhe foi crescendo.
Sua mãe aumentava de um vazio. Seu pai sorria, todo saciado. E até ela mesma acreditava estar dando guarida a um novo rebento. Na missão de Lualua, entretanto, nascia um menino do ventre de Admirança. Trouxemos o pequeno bebê na encobertura da noite e fizemos de conta que se dava um parto na casa grande, em Nyumba-Kaya.
Até seu pai chorou, crente de que o vindouro era genuíno fruto de seu sangue.
Mas com o tempo o menino cresceu, foi ganhando feições. Admirança definhava só ao pensar que esse moço ia revelando a identidade do pai verdadeiro. Ela me suplicou que deixasse esse seu filho sair da Ilha. Ele que crescesse fora, longe das vistas. E longe de sua culpa. E o menino foi mandado para a cidade. Lá se fez homem, um homem acertado no sentimento. Esse homem é você, Mariano. Admirança é sua mãe.
Mia Couto, in "Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra"