“Poetry is when an emotion has found its thought and the thought has found words.”
Robert Frost
Alejandra Pizarnik, Diarios
Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.
Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.
Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou a ajudar a dormir um inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.
Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.
.
António Ramos Rosa
Emil Cioran (In: “Cadernos: 1957–1972”)
Abro a caixa do poema para descobrir
velhos versos, estrofes que ficaram a meio,
imagens gastas pelo bolor dos anos. Devia
ter deitado tudo para o lixo, no meio
de metáforas sem uso, de aliterações
surdas, de hipérboles furadas como balões
de feira. Mas encontro palavras que ainda
me servem, as que falam de coisas que não
passam, as que trazem um eco de vozes
que voltam a soar aos meus ouvidos, como
se estivessem comigo. E volto a fechá-la,
para não perder o que nunca tive.
Nuno Júdice
também uma forma de amar e de olhar por ti, quando sin-
to a tua vida a pulsar como uma estrela ou um vocábulo e
eu já não tenho perguntas que te faça nem outra forma de
segurar as tuas mãos a não ser a dor e o júbilo de te olhar
com a mesma alegria feliz com que olho uma manhã car-
regada de frutos.
Quando os animais se afastarem caminhando pela tua au-
sência, ainda azuis mas incompletos, restará a sombra das
árvores e a tua recordação na inquietação dos pássaros, ou
a minha antiga tristeza cantando por entre uma floresta de
poemas que escrevi para celebrar, no teu corpo, o canto
inesgotável.
Adiei-me por ti. E por ti ardo, como o velho anjo que pegou
o fogo aos quatro pontos cardeais.
Joaquim Pessoa
Levo comigo o gosto do vinho na boca. (Por todas as coisas boas, dizíamos, todas as coisas cada vez melhores que nos vão acontecer.)
Não levo nem uma única gota de veneno. Levo os beijos de quando você partia (eu nunca estava dormindo, nunca). E um assombro por tudo isso que nenhuma carta, nenhuma explicação, podem dizer a ninguém o que foi.
- Eduardo Galeano, no livro “Vagamundo”
queimadura nos ossos, ferida enamorada, inebriada com o cheiro
das estrelas.
É doce a tua mão, irmã gémea do meu peito, a que espera que a
noite chegue, a que pede amor à minha carne e deposita uma flor
azul no meu cansaço.
Debaixo da lua, a força de ter-te devolve a luz ao mundo, as laran-
jas brancas do teu peito oferecem-me o perfume dos roseirais que
crescem junto ao mar.
Joaquim Pessoa
sombras que passam na rua através das horas, relâmpagos
que não chegam a iluminar as paredes do quarto.
Românticos
que se encontram depois de viver vidas paralelas, cansados – mas enlaçados antes que chegue a hora de partir, sem saberem se amanhã há outro sono igual, ou uma escolha para fazer.
Os dois sabem que são doidos, estendem os dedos na escuridão entre as luas. Os dois sabem que mais adiante podem arder de repente no meio do Verão, consumidos pelos segredos e pela indiferença.
Noites sem sexo são perfeitas, também;
e raras, e condenadas e incompletas.
Nunca estamos preparados, diz um. Nunca estamos, repete o outro, quando a primeira borboleta sossega depois de um beijo em dívida.
Francisco José Viegas
A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.
Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.
Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
na mão.
Antonio Brasileiro
Emil Cioran
Poesia é o diário de um animal do mar vivendo na terra e querendo voar no ar.
Poesia é uma série de explicações da vida dissolvendo-se em horizontes muito cambiantes para explicações.
Poesia é uma busca de sílabas para atirar contra barreiras do desconhecido e desconhecível.
Poesia é o silêncio e a fala entre a raiz úmida e esforçada de uma flor e a florescência iluminada pelo sol daquela flor.
Poesia é o abrir e fechar de uma porta, deixando aqueles que estavam olhando a imaginar o que viram por um breve instante.
Carl Sandburg
castos
meus beijos da manhã
nas suas
costas
gasto
meus beijos de manhã
e você
gosta
adorne
de beijos as manhãs
em que eu te
aderno
afagos
de beijos nas manhãs
em que me
afogas
beba
meus beijos nas manhãs
depois me
babe
astro
nos beijos da manhã
na tua
ostra
nau
de beijos da manhã
pra você
nua
Antoniel Campos
Alejandra Pizarnik | Diarios.
«Dor. Dor de ser. Dor de amar e de não ser amada. Dor da noite acariciando meus cabelos. Dor do mar. Dor da vida passar sem parar na minha porta. Dor de falar e que minhas palavras fiquem ligadas ao vento quem as espalhará por lugares imemoriais. Dor de ser e de não ter vocação para ser. Dor de lidar com tanto amor e não poder deixá-lo em lugar algum porque ninguém quer recebê-lo.
a essência de tua resina e convivido
intimamente com a ponta de teus dedos, com tua loucura.
Nossas peles se roçam, nossas pernas se entrelaçam,
nossos corpos se abraçam
Somos uma mistura.
Cheios de humor, temos a qualidade
da extravagância, o prazer de transgredir,
o deleite da transformação.
Selvagens somos, tigres, sombras nos espelhos,
temos a ilegalidade na alma
e a sabedoria na intuição.
E temos belos corpos, voos rasantes
e o mesmo estratagema.
Um homem, a paixão de um homem,
esse é o meu tema.
Bruna Lombardi
A análise sobrecuriosa das sensações — por vezes das sensações que supomos ter —, a identificação do coração com a paisagem, a revelação anatômica dos nervos todos, o uso do desejo como vontade e da aspiração como pensamento — todas estas coisas me são demasiado familiares para que em outrem me tragam novidade, ou me deem sossego. Sempre que as sinto, desejaria, exatamente porque as sinto, estar sentindo outra coisa. E, quando leio um clássico, essa outra coisa é-me dada.
Confesso-o sem rebuço nem vergonha… Não há trecho de Chateaubriand ou canto de Lamartine — trechos que tantas vezes parecem ser a voz do que eu penso, cantos que tanta vez parecem ser-me ditos para conhecer — que me enleve e me erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma ou outra ode daqueles nossos poucos clássicos que seguiram deveras a Horácio.
Leio e estou liberto. Adquiro objetividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmaras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.
Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua desolação.
Bernardo Soares. Fernando Pessoa
O livro do Desassossego
O deus bom, decididamente, não foi dotado para criar: possui tudo, menos a onipotência. Grande por suas deficiências (anemia e bondade andam juntas), é o protótipo da ineficácia: não pode ajudar ninguém… Só nos agarramos a ele quando nos despojamos de nossa dimensão histórica; enquanto nos reintegramos a ela, nos é estranho, nos é incompreensível: não tem nada do que nos fascina, não tem nada de monstro. E é então quanto nos voltamos ao criador, deus inferior e atarefado, instigador dos acontecimentos. Para compreender como pôde ter criado, é preciso imaginá-lo presa do mal, que é inovação, e do bem, que é inércia. Esta luta foi, sem dúvida, nefasta para o mal, pois deveu sofrer a contaminação do bem: o que explica por que a criação não pode ser inteiramente má.
Emil Cioran
Emil Cioran
1
O eterno retorno é uma ideia misteriosa e, com ela, Nietzsche pôs muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir como foi vivido e que tal repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?
O mito do eterno retorno afirma, por negação, que a vida que desaparece de uma vez por todas, que não volta mais, é semelhante a uma sombra, não tem peso, está morta por antecipação, e por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa atrocidade, essa beleza, esse esplendor não têm o menor sentido. Essa vida é tão importante quanto uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, que não alterou em nada a face do mundo, embora trezentos mil negros tenham encontrado nela a morte depois de suplícios indescritíveis.
Será que essa guerra entre dois reinos africanos do século XIV se modifica pelo fato de se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno?
Sim: ela se tornará um bloco que se forma e perdura, e sua brutalidade não terá remissão.
Se a Revolução Francesa devesse se repetir eternamente, a historiografia francesa se mostraria menos orgulhosa de Robespierre. Mas como ela trata de algo que não voltará, os anos sangrentos não passam de palavras, teorias, discussões, são mais leves que uma pluma, já não provocam medo. Existe uma diferença infinita entre um Robespierre que apareceu uma só vez na história e um Robespierre que voltaria eternamente para cortar a cabeça dos franceses.
Digamos, portanto, que a idéia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas aparecem para nós sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. Com efeito, essa circunstância atenuante nos impede de pronunciar qualquer veredicto. Como condenar o que é efêmero? As nuvens alaranjadas do crepúsculo douram todas as coisas com o encanto da nostalgia; até mesmo a guilhotina.
Não faz muito tempo, surpreendi-me experimentando uma sensação incrível: folheando um livro sobre Hitler, fiquei emocionado com algumas fotos dele; lembravam-me o tempo de minha infância; eu a vivi durante a guerra; diversos membros de minha família foram mortos nos campos de concentração nazistas; mas o que era a sua morte diante dessa fotografia de Hitler que me lembrava um tempo passado da minha vida, um tempo que não voltaria mais?
Essa reconciliação com Hitler trai a profunda perversão moral inerente a um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto, cinicamente permitido.
2
Se cada segundo de nossa vida deve se repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Essa ideia é atroz. No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável. É isso que levava Nietzsche a dizer que a ideia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos (das schwerste Gewicht).
Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.
O que escolher, então? O peso ou a leveza?
Foi a pergunta que Parmênides fez a si mesmo no século VI antes de Cristo. Segundo ele, o universo está dividido em pares de contrários: a luz/a escuridão; o grosso/o fino; o quente/o frio; o ser/o não-ser. Ele considerava que um dos polos da contradição é positivo (o claro, o quente, o fino, o ser), o outro, negativo. Essa divisão em polos positivo e negativo pode nos parecer de uma facilidade pueril. Exceto em um dos casos: o que é positivo, o peso ou a leveza?
Parmênides respondia: o leve é positivo, o pesado é negativo. Teria ou não teria razão? A questão é essa. Só uma coisa é certa. A contradição pesado/leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições.
3
Há muitos anos penso em Tomas. Mas foi sob a luz dessas reflexões que o vi claramente pela primeira vez. Eu o vi de pé, diante de uma janela de seu apartamento, os olhos fixos na parede do prédio defronte, do outro lado do pátio, sem saber o que fazer.
Conhecera Tereza três semanas antes numa cidadezinha da Boêmia. Não tinham passado nem sequer uma hora juntos. Ela o acompanhara à estação e esperara até o momento de ele subir no trem. Cerca de dez dias depois, veio vê-lo em Praga. Nesse dia mesmo fizeram amor. À noite, ela teve um acesso de febre e passou uma semana inteira com gripe na casa dele.
Ele sentiu então um amor inexplicável por aquela moça que para ele era quase uma desconhecida. Tinha a impressão de que se tratava de uma criança que fora deixada numa cesta e abandonada nas águas de um rio para que ele a recolhesse na margem da sua cama.
Tereza ficou com ele uma semana, depois, já curada, voltou para a cidade onde morava, a duzentos quilômetros de Praga. É aí que se situa o momento a que me referia e em que vejo a chave da vida de Tomas: está de pé à janela, os olhos fixos na parede do prédio defronte, do outro lado do pátio, refletindo:
Devia propor que ela viesse se instalar em Praga? Essa responsabilidade o assustava. Se a convidasse agora, ela viria para junto dele e lhe ofereceria toda a sua vida.
Ou seria melhor desistir? Nesse caso, Tereza continuaria como garçonete num restaurante de uma cidadezinha do interior e ele não a veria nunca mais.
Queria que ela ficasse? Sim ou não?
Fixa, do outro lado do pátio, a parede defronte, e procura uma resposta.
Volta, mais uma vez e sempre, à imagem daquela mulher deitada no divã; ela não lhe lembrava ninguém de sua vida de outros tempos. Não era nem amante nem esposa. Era uma criança que ele retirara de uma cesta e que depositara na margem da sua cama. Ela havia adormecido. Ele se ajoelhara ao seu lado. Sua respiração febril se acelerava e ele ouviu um leve gemido. Encostou o rosto no dela e sussurrou palavras reconfortantes enquanto ela dormia. Alguns instantes depois, sua respiração se acalmou e seu rosto se levantou maquinalmente em direção ao dele. Sentiu nos lábios o cheiro um pouco acre da febre e o aspirou como se quisesse se impregnar da intimidade do corpo dela. Imaginou então que fazia muitos anos que ela estava na sua casa e que morria. De repente, pareceu-lhe evidente que não sobreviveria à morte dela. Deitou-se ao seu lado para morrer com ela. Movido por essa visão, enfiou o rosto no travesseiro, junto ao dela, e assim ficou por muito tempo.
Agora, Tomas está de pé à janela e relembra esse instante. O que se revelava assim, senão o amor?
Mas seria amor? Estava convencido de que queria morrer ao lado dela, e esse sentimento era claramente exagerado: ele a estava vendo então apenas pela segunda vez! Não seria mais a reação histérica de um homem que, compreendendo em seu foro íntimo a inaptidão para o amor, começa a representar para si próprio a comédia do amor? Ao mesmo tempo, seu subconsciente era tão covarde que ele escolhera para sua comédia essa modesta garçonete do interior que praticamente não tinha chance de entrar na vida dele.
Olhava os muros sujos do pátio e compreendia que não sabia se era histeria ou amor.
E, nessa situação em que um verdadeiro homem saberia agir imediatamente, ele se recriminava por hesitar e assim negar ao instante mais belo de sua vida (está de joelhos à cabeceira da moça, convencido de não poder sobreviver à morte dela) qualquer significação.
Torturava-se com recriminações, mas terminou por se persuadir de que no fundo era normal que não soubesse o que queria:
Nunca se pode saber o que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.
Seria melhor ficar com Tereza ou continuar sozinho?
Não existe meio de verificar qual é a decisão acertada, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que leva a vida a parecer sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa, pois um esboço é sempre o projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Poder viver apenas uma vida é como não viver nunca
Milan Kundera, A insustentável leveza do ser
ANTON TCHEKHOV, As três Irmãs
Clarice Lispector
Um sopro de vida
A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam em si mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha ideia de vivê-la. O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras… Poucos como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possibilidade estética de se sonhar assim.
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distração, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o reles que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha ao sonho. Não tive sequer castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca nem caíram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente da criada velha, que queria recompor, sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores, apreçado pelo peso entre os pós-escritos do perdido.
Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a glória da minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de não crer como um pendão de derrota — pendão contudo nas mãos débeis, mas pendão arrastado entre a lama e o sangue dos fracos, mas erguido ao alto, ao sumirmo-nos nas areias movediças, ninguém sabe se como protesto, se como desafio, se como gesto de desespero. Ninguém sabe, porque ninguém sabe nada, e as areias engolfam os que têm pendões como os que não têm. E as areias cobrem tudo, a minha vida, a minha prosa, a minha eternidade.
Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória.
Bernardo Soares. Fernando Pessoa
Livro do Desassossego
Clarice Lispector, Um sopro de vida
Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver os bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.
II.
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.
Ana Cristina César
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distracção, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha […] ao sonho. Nao tive sequer reles castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca; nem caíram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente da criada velha, que queria recompor sobre a mesa inteira a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores, apressado pelo peso entre os postscriptos do perdido.
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego
Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida
— Alejandra Pizarnik | Diarios
Cada qual forja o seu mundo. Meu mundo é este quarto. Fora dela está o desconhecido, o indiferente, que não tenho vontade de explorar. Aqui é onde eu sinto a limitação. É aqui que eu vejo o vão dos esforços humanos. De repente, a ideia de viver me agrediu. Será que estou vivo? Não sei o que é viver. Além disso, ao estar aqui, respondo às minhas necessidades. Preciso dessa solidão cheia de livros, música, fumaça e café. Viver! Acho que "viver a vida" significa desfrutá-la. Pois a minha alegria é esta.
É ela e seu corpo redimidos.
É ela e seu corpo abraçados.
É ela e seu corpo alinhados como joelhos.
É ela devolvida a si, devolvida às alegrias proibidas, as alegrias quando se tocava em segredo.
É ela e os medos superados, a culpa liquidada, os seios observando as janelas.
A rua da cintura, e a chuva, para não andar, para ficar debaixo das marquises esperando passar.
O homem deveria sentar numa cadeira ao longe, como se fosse um milagre e lhe faltasse fé para reconstituir os detalhes.
O homem não deveria estragar com a sua presença aquele momento, mas silenciar, esquecer os comentários, jejuar os dentes, reprimir o ímpeto.
Nenhuma brincadeira, nenhuma certeza, nenhuma crença.
É difícil desaparecer, sei que é difícil.
Homem, não lhe resta outra opção!
Desapareça estando ali. Nenhum movimento brusco, não procurar água, a sede, o casaco.
Desapareça aos poucos para que ela, enfim, se veja dançando para Deus.
Fabrício Carpinejar – Do livro –“ O amor esquece de começar”
espaço, ocupo pouco
e uma certa letargia nos movimentos
já não se fala mais como antigamente
mas todos ganham mais dinheiro.
E se fazem intervalos
se criam movimentos débeis
tanta gente falando em viver.
Saber. Não sei de nada.
Deveriam olhar mais pros bichos
e aprender com eles.
Que esta racionalidade
parece não estar dando certo.
Espaço ocupo pouco
e mal me cabe dentro
tudo o que me mostram
e o que me fazem ouvir.
Bruna Lombardi
Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida