domingo, 31 de outubro de 2010


De tanto amor minha vida se tingiu de violeta
e fui de rumo em rumo como as aves cegas
até chegar a tua janela, amiga minha:
tu sentiste um rumor de coração quebrado

e ali da escuridão me levantei a teu peito,
sem ser e sem saber fui à torre do trigo,
surgi para viver entre tuas mãos,
me levantei do mar a tua alegria.

Ninguém pode contar o que te devo, é lúcido
o que te devo, amor, e é como uma raiz
natal de Araucânia, o que te devo, amada.

É sem dúvida estrelado tudo o que te devo,
o que te devo é como o poço de uma zona silvestre
onde guardou o tempo relâmpagos errantes.


Pablo Neruda

Jack Kerouac, Big Sur



Ah, life is a gate, a way, a path to Paradise anyway, why not live for fun and joy and love...

* Ah, life is a gate, a way, a path to Paradise anyway, why not live for fun and joy and love or some sort of girl by a fireside, why not go to your desire and LAUGH...

* Everything is the same, the fog says 'We are fog and we fly by dissolving like ephemera,' and the leaves say 'We are leaves and we jiggle in the wind, that's all, we come and go, grow and fall' — Even the paper bags in my garbage pit say 'We are mantransformed paper bags made out of wood pulp, we are kinda proud of being paper bags as long as that will be possible, but we'll be mush again with our sisters the leaves come rainy season' — The tree stumps say 'We are tree stumps torn out of the ground by men, sometimes by the wind, we have big tendrils full of earth that drink out of the earth' — Men say 'We are men, we pull out tree stumps, we make paper bags, we think wise thoughts, we make lunch, we look around, we make a great effort to realise everything is the same.'

* I feel guilty for being a member of the human race.


Jack Kerouac, Big Sur (1962)

Friedrich Nietzsche, Ecce Homo


- o aforismo, a sentença, gêneros nos quais eu sou o primeiro entre os mestres alemães, são as formas da Eternidade. Minha ambição é dizer, em dez frases, o que todos os outros dizem num livro... o que todos os outros não dizem num livro...

- Eu sou curioso por demais, questionável por demais, animado por demais para poder aceitar uma resposta esbofeteada. Deus é uma resposta esbofeteada e grosseira, uma indelicadeza contra nós, os pensadores – no fundo apenas uma proibição esbofeteada e grosseira contra nós: vós não deveis pensar!...


- Eu não conheço nenhuma leitura capaz de arrebentar tanto o coração quanto Shakespeare: quanto um homem deve ter sofrido para ter uma tal necessidade de ser bufão! Entende-se o Hamlet? Não é a dúvida, é a certeza que enlouquece... Mas para isso a gente tem de ser profundo, tem de ser abismo, tem de ser filósofo para sentir assim... Nós todos temos medo da verdade...


Friedrich Nietzsche, Ecce Homo

Soneto de Vinicius dedicado a Neruda


Quantos caminhos não fizemos juntos
Neruda, meu irmão, meu companheiro...
Mas este encontro súbito, entre muitos
Não foi ele o mais belo e verdadeiro?

Canto maior, canto menor - dois cantos
Fazem-se agora ouvir sob o cruzeiro
E em seu recesso as cóleras e os prantos
Do homem chileno e do homem brasileiro

E o seu amor - o amor que hoje encontramos...
Por isso, ao se tocarem nossos ramos
Celebro-te ainda além, cantor geral

Porque como eu, bicho pesado, voas
Mas mais alto e melhor do céu entoas
Teu furioso canto material!

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Henry James, Lady Barberina


Sabe-se muito bem que há poucas paisagens, no mundo, mais fascinantes que as avenidas Hyde Park numa bela tarde de junho. E essa era exatamente a opinião de duas pessoas que, num lindo dia do começo daquele mes, há quatro anos, achavam-se instaladas à sombra das grandes árvores, em duas cadeiras de ferro (das grandes, de braços, pelas quais , se não me engano se pagam dois pence). Tinham atrás de si o lento desfile pelo caminho do parque, os rostos voltados para a agitação mais vívida da avenida. Estavam perdidas na multidão de observadores e pertenciam, pelo menos aparentemente, à classe de pessoas que, onde quer que se encontrem, fazem parte mais dos espectadores do que do espetáculo. Eram figuras tranquilas, simples, idosas e de aspecto algo neutro; o leitor muito as teria apreciado, embora dificilmente as houvesse observado. E no entanto, em toda aquela brilhante multidão, é a elas, gente obscura, que devemos dispensar atenção. Pedimos ao leitor que tenha confiança; não lhe solicitamos que faça desnecessárias concessões. Havia no rosto de nossos amigos a indicação de que estavam envelhecendo juntos e de que (se isso era uma condição) apreciavam a companhia um do outro o suficiente para não julgá-la desagradável. O leitor terá adivinhado que se tratava de marido e mulher; e, já que compreendeu isso, talvez tenha percebido que eram de nacionalidade que, no auge da estação, Hyde Park  oferece de mais representativo. Eram desconhecidos, mas eram sempre vistos, por assim dizer; e pessoas ao mesmo tempo tão bem instaladas e tão desligadas das demais só poderiam ser americanas. Essa reflexão, na verdade, só se poderia fazer após certa demora, pois é preciso confessar que traziam, na superfície, poucos sinais patrióticos. Tinham idéias próprias de americanos;  isso, porém, era muito sutil, e a nossos olhos - se cuidássemos em olhar - poderiam ser descendentes de ingleses, ou mesmo de outros europeus.  Era como se lhes conviesse passar despercebidos; sua conversação era expressiva. Não muito animada, antes um tanto sombria e monótona. Se estavam interessados nos cavaleiros, nos cavalos, nos transeuntes, na grande exibição de riqueza, saúde, luxo e lazer, isso era porque tudo aquilo se referia a outras impressões, pois tinham solução para tudo o que necessitasse resposta - porque, em suma, podiam fazer comparações. Não tinham chegado, mas apenas voltado; e o conhecimento que tinham de tudo quilo, mais que a surpresa, estava expresso em sua contemplação serena.
[...]
Nossos amigos davam as costas, como dissemos , para a solene revolução de rodas e a massa muito congestionada do público que havia escolhido aquela parte do espetáculo. Os espectadores foram todos agitados por um impulso: o recuo de cadeiras, o arrastar de pés, o farfalhar de vestidos e o murmúrio abafado de vozes o exprimiam suficientemente. Sua Alteza aproximava-se; Sua Alteza estava passando; Sua Alteza havia passado. Freer virou a cabeça e escutou um pouco; mas não alterou demasiadamente sua posição. A esposa não prestou atenção àquele pequeno tumulto. Ambos haviam visto figuras da realeza em toda a Europa, e sabiam que passavam muito depressa. Às vezes voltavam; outras, não; em mais de uma ocasião, tinham-nas visto passar pela última vez. Eram turistas veteranos e sabiam, perfeitamente, quando deviam levantar-se e quando deviam permanecer sentados. O Sr. Freer continuou com sua idéia:
- Algum jovem certamente há de aparecer, e uma das moças certamente aceitará o risco. Aqui, elas têm cada vez mais de aceitar riscos...

Henry James, Lady Barberina
Fernand Toussaint 

Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão enfim

Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar para mim

Queixo-me às rosas, que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

Devias vir para ver os meus olhos tristonhos
E quem sabe sonhavas meus sonhos por fim...

Composição: Cartola

Como nossos pais


Não quero lhe falar,
Meu grande amor,
Das coisas que aprendi
Nos discos...

Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa...


Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens...

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço,
O seu lábio e a sua voz...


Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração...


Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais...


Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais...


Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando...

Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem...


Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando vil metal...

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo,
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos


Como os nossos pais...


Composição: Belchior

Escrevo o que vejo, mas também
vejo o que escrevo. E no teu rosto,
o que vejo são as palavras que
nascem dos teus olhos, quando
os abres, e toda a luz do mundo
desce pelo teu rosto, dizendo
que é manhã. Por isso as escrevo,
para que a manhã possa nascer
deste poema, através das palavras
que o teu rosto me ensina.

Nuno Júdice

Tempo viajado


DOS MEUS RETRATOS rasgados
Me recomponho,
Com minhas espumas de acaso,
Meus solos vivos de fogo.
Muito se sofre.
As doces uvas sabem a enxofre.

Vulcões mordem as raízes
Das minhas plantas.
Em barcos postos a pique,
Naufragaram minhas lembranças.

Dizei-me por que lugares
Que pastores pastoreiam
Até sempre estas saudades
A mim mesmo tão alheias.

Muito se pena.
E vimos na areia morrer a sirena.

Procuro pelo meu rosto
O tempo que se desprende.
Que agulhas de desencontro
Separaram minha gente?

Dos meus retratos rasgados
Me levanto.
E acho-me toda em pedaços,
E assim mesmo vou cantando.

Muito se perde:
Pela terra negra ou pela água verde.

(Se Deus agora me visse,
abaixaria seus olhos
e ficaria mais triste.)


Cecília Meireles

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Soul Parsifal


Legião Urbana
Composição: Renato Russo / Marisa Monte

Ninguém vai me dizer o que sentir
Meu coração está desperto
É sereno nosso amor e santo este lugar
Dos tempos de tristeza tive o tanto que era bom
Eu tive o teu veneno
E o sopro leve do luar

Porque foi calma a tempestade
E tua lembrança, a estrela a me guiar
Da alfazema fiz um bordado
Vem, meu amor, é hora de acordar

Tenho anis
Tenho hortelã
Tenho um cesto de flores
Eu tenho um jardim e uma canção
Vivo feliz, tenho amor
Eu tenho um desejo e um coração
Tenho coragem e sei quem eu sou

Eu tenho um segredo e uma oração
Vê que a minha força é quase santa
Como foi santo o meu penar
Pecado é provocar desejo
E depois renunciar

Estive cansado
Meu orgulho me deixou cansado
Meu egoísmo me deixou cansado
Minha vaidade me deixou cansado
Não falo pelos outros
Só falo por mim
Ninguém vai me dizer o que sentir

Tenho jasmim tenho hortelã
Eu tenho um anjo, eu tenho uma irmã
Com a saudade teci uma prece
E preparei erva-cidreira no café da manhã
Ninguém vai me dizer o que sentir
E eu vou cantar uma canção p'rá mim

Desamparo


Digo-te que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?


Cecília Meireles
Bec Winnel


Laça-me o coração a curva de teus olhos,
Um giro de dança e doçura,
Berço noturno e firme, auréola do tempo,
E se já não sei mais o que foi minha vida
É que teus olhos não me viram no passado.

Folhas de luz, musgo de orvalho,
Ervas do vento, risos perfumados,
Asas cobrindo o mundo de clarões,
Barcos cheios do céu e do oceano,
Caçadores dos sons, manancial das cores,

Perfume que nasceu em ninho de alvoradas,
E que escondido está na palha das estrelas,
Como da inocência depende a luz
Depende o mundo de teus olhos puros
E em seu olhar corre meu sangue.

Paul Éluard

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Se meu cachorro fosse um professor




Se um cachorro fosse professor...


Se um cachorro fosse professor, você aprenderia coisas assim:
Quando alguém que você ama chega em casa, corra ao seu encontro.
Nunca perca uma oportunidade de ir passear.
Permita-se experimentar o ar fresco do vento no seu rosto.
Mostre aos outros que estão invadindo o seu território.
Tire uma sonequinha no meio do dia e espreguice antes de levantar.
Corra, pule e brinque todos os dias.
Tente se dar bem com o próximo e deixe as pessoas te tocarem.
Não morda quando um simples rosnado resolve a situação.
Em dias quentes, pare e role na grama, beba bastante líquidos e deite debaixo da sombra de uma árvore.
Quando você estiver feliz, dance e balance todo o seu corpo.
Não importa quantas vezes o outro te magoa, não se sinta culpado...volte e faça as pazes novamente.
Aproveite o prazer de uma longa caminhada.
Se alimente com gosto e entusiasmo.
Coma só o suficiente.
Seja leal.
Nunca pretenda ser o que você não é.
E o MAIS importante de tudo....

Quando alguém estiver nervoso ou triste,
fique em silêncio, fique por perto e mostre que você está ali para confortar.


Texto de Ramiro Rios
Angelica Privalihin

Respiro teu nome.
que brisa tão pura
súbito circula
no meu coração.

Respiro teu nome.
repentinamente,
de mim se desprende
a voz da canção.

Respiro teu nome.
Que nome? Procuro...
- Ah teu nome é tudo.
E é tudo ilusão.

Respiro teu nome.
Sorte. Vida. Tempo.
Meu contentamento
é límpido e vão.

Respiro teu nome.
Mas teu nome passa.
Alto é o sonho. Rasa,
minha breve mão.


Cecília Meireles
Anna Razumovskaya

Nada mais rigoroso que a paixão
pois, obstinada como é, busca-se
na busca do absoluto.

A superficialidade é que não conhece
o rigor e o teme. É então que estou
dentro da vida como em meus livros.

Daí, com uma tenaz e exacerbada,
com uma premeditada tônica
de crueldade e ironia no coração,

Leitor, não estranhes a repetição:
propositadamente obsessivos
são os poemas - como a paixão. 

Olga Savary

"You’ve got to give a little"

Omar Ortiz

Tudo foi um susto. Respirei uma vez. Uma vez apenas antes do beijo. Foi o suficiente para que me ardesse o corpo todo. Depois, foi o delírio. Dias e noites dos quais me lembro feito fossem minutos, segundos a desdobrarem-se em mais que tempo. Milhares de pequenos fragmentos de gestos, palavras, cenários. Uma incongruência de tempo e possibilidade.

O que chamamos vida entrecortada pelo poema, talvez isso. Algo entre o sonho, o desejo do sonho e a sensação de realização deles. Um relógio só aparentemente correto, um oceano de afeto, a disposição de dizer a verdade, a sensibilidade e o sexo. Foi o que bastou.
Suponho que o amor possa acontecer assim e não há realidade que o negue.

O corpo atravessado pela tua marca, a alma dançarina. A sensação da mais íntima de compreensão das coisas.
O sorriso fresco da felicidade. A felicidade tem um sorriso de um frescor ímpar e um olhar rejuvenescido.

O cd toca assim : "you've got to give a little, take a little and let your poor heart brake a little. That's the story of, that's the glory of love ". É uma linda canção. Os americanos acreditam nisso. Eu não. No amor há que haver dor, eles dizem. Não foi o que senti. Nenhum sofrimento naqueles dias. Nada negociado. A glória do amor nos habitava. Estávamos em pleno ar.

De mim o que sei é o vôo, o mergulho. Sem fronteiras. Até onde tiver que ir. Até o corte. Sem penitência. Sem medo.

Não sei mais de ti.

Silvia Chueire

Arrojos

Arthur Braginsky.

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.


Cesário Verde

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Walter Scott, Ivanhoé



Enquanto o cavaleiro tocava, o eremita assumia o ar de um crítico de prestígio de hoje assistindo a uma nova ópera. Inclinou-se para trás no banco e, de olhos semicerrados, ora fazia girar os polegares, com dedos entrelaçados, ora acompanhava o ritmo da canção com as mãos espalmadas, que se agitavam gentilmente no ar, como se estivesse inteiramente absorto na música. Quando a voz do cantor não podia elevar-se tão alto como exigia a melodia, o ermitão prestava-lhe um pequeno auxílio, cantando-a também de acordo com o seu gosto. Terminada a canção, o anacoreta declarou enfaticamente que era bonita e fôra muito bem cantada.
- Não obstante - acrescentou ele -, parece-me que o meu compatriota tem convivido muito com os normandos, para adotar o tom melancólico das suas canções. Que fôra o honesto cavaleiro fazer fora do país? E que poderia ele encontrar , na volta, senão a sua bela agradavelmente comprometida com um rival, e a sua serenata, como lhe chama, acolhida como o mio de um gato na sarjeta? Contudo, Sir Cavalheiro, bebo esta taça à vossa saúde e a de todos os verdadeiros amantes. Receio muito, porém, que não pertençais ao número deles - acrescentou o ermitão, vendo que o cavaleiro, cujo cérebro começava a anuviar-se com tão repetidas libações, misturava no vinho, por engano, a água que se achava na jarra.

- Ora essa! - exclamou o cavaleiro. - Acaso não me dissestes que esta água era da fonte do vosso abençoado padroeiro, São Dunstan?
- É verdade - disse o ermitão. - E centenas de pagãos foram nela batizados; mas nunca ouvi dizer que a bebessem. Neste mundo todas as coisas devem ser empregadas conforme o uso a que se destinam. São Dunstan conhecia, tão bem como qualquer pessoa, as prerrogativas de um frade jovial.
E, proferindo essas palavras, tomou da harpa, entretendo o seu hóspede com a seguinte canção característica acompanhada de uma espécie de estribilho, derry-down, que se encontra numa antiga canção inglesa:

O FRADE DESCALÇO

I

Dar-te-ei, bom camarada, doze meses, ou o dobro,
para procurares pela Europa, de Bizâncio à Espanha;
mas jamais encontrarás, por muito que te canses,
um homem tão feliz como o frade descalço.

II

Se um cavaleiro pela dama empreende uma jornada,
e às vésperas é trazido varado pela espada,
eu à pressa o confesso: para a sua dama
já não há conforto na terra, salvo o frade descalço

III

O vosso monarca? Psiu!... Muitos reis temos visto
pelo capuz e pelo hábito trocar as suas vestes...
mas qual de nós sente o menor desejo
de pela coroa trocar o capuz cinzento de um frade?

IV

O frade pôs-se a caminho, mas, onde quer que tenha ido,
a terra e os seus frutos a ele se destinam;
pode perambular por onde lhe aprouver, parar se está cansado
pois a casa de todos os homens é a casa do frade descalço.

V

Esperam-no ao meio-dia e ninguém, até que chegue,
pode profanar o lugar de honra e o caldo de ameixas;
porque as melhores iguarias e o lugar junto ao fogo
são direitos inegáveis do frade descalço.

VI

Aguardam-no à noite e a ceia está pronta;
abrem a boa e escura cerveja - enchem-se as jarras.
E a dona da casa sacrificaria o marido
para que um travesseiro macio não faltasse ao frade descalço

VII

Viva a sandália, a corda e o capuz,
o medo ao Diabo e a confiança no papa!
pois colher as rosas da vida, despidas de espinhos,
é permitido somente ao frade descalço.


 - Por minha fé - exclamou o cavaleiro -, cantastes bem, com vigor e com honra para a vossa ordem! E, por falar no Diabo, santo padre, não tendes medo de que ele vos apareça por aí qualquer dia, durante algum dos vossos passatempos poucos canônicos?


Walter Scott, Ivanhoé

Embalo

haleh bryan

Adormeço em ti minha vida,
- flor de sombra e de solidão -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza...


Cecília Meireles

Princípio


Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tateiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma.


Miguel Torga
Alberto Pancorbo 

Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.

Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão noturna que me guia.

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.


Fernando Pessoa

domingo, 24 de outubro de 2010


Respiradas.
O esforço do pulmão
capturado pelo envelope,
a letra tremendo
como uma pálpebra.
Não a cola isenta, neutra,
Mas a espuma, a gentileza,
a gripe, o contágio.
Porque a saliva
acalma um machucado.

As cartas de amor
deveriam ser abertas
com os dentes.

Fabrício Carpinejar
Christina Nguyen 

Não sei se você está lendo este texto na beira da praia ou embrulhado num cobertor.
Não sei onde você está.
Não sei se há um temporal se armando ou se está um daqueles dias cinzentos que provocam melancolia na gente.
Se eu soubesse, talvez soubesse um pouco de você.
É um mistério que a natureza não explica: nossa necessidade de localizar o outro climaticamente.
Relutamos em perguntar: você está deprimido hoje?
Chorando muito? Com vontade de cometer uma loucura?
Com saudades de alguém?
Em vez disso, é tão mais fácil: como é que está o tempo aí?

Aqui, agora, chove, mas acho que vai abrir.


Martha Medeiros

Irrealidade

Christine Comyn


Como num sonho
aqui me vedes:
água escorrendo
por estas redes
de noite e dia.
A minha fala
parece mesmo
vir do meu lábio
e anda na sala
suspensa em asas
de alegoria.
Sou tão visível
que não se estranha
o meu sorriso.
E com tamanha
clareza pensa
que não preciso
dizer que vive
minha presença.
E estou de longe,
compadecida.
Minha vigília
é anfiteatro
que toda a vida
cerca, de frente.
Não há passado
nem há futuro.
Tudo que abarco
se faz presente.
Se me perguntam
pessoas, datas,
pequenas coisas
gratas e ingrata,
cifras e marcos
de quando e de onde,
- a minha fala
tão bem responde
que todos creem
que estou na sala.
E ao meu sorriso
vós me sorris…
Correspondência
do paraíso
da nossa ausência
desconhecida
e tão feliz.


Cecília Meireles

Depois


Depois da confidência
me retirei da tarde.
O céu ficou vazio
vazio
onde era vôo de pássaros
(os pássaros estavam quietos).
Uma febre roía meus ouvidos:
voltei mais velha (exilada)
com um toque de infância entre meus dedos,
reserva de sal dentro dos olhos.


Olga Savary

Para onde vão minhas palavras,
se já não me escutas?
Para onde iriam, quando me escutavas?
E quando me escutastes? - Nunca.

Perdido, perdido. Ai, tudo foi perdido!
Eu e tu perdemos tudo.
Suplicávamos o infinito.
Só nos deram o mundo.

De um lado das águas, de um lado da morte,
tua sede brilhou nas águas escuras.
E hoje, que barca te socorre?
Que deus te abraça? Com que deus lutas?

Eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,
com minhas perguntas.
Para quê? Para quê? Rodas tontas,
em campos de areias longas
e de nuvens muitas.


Cecília Meireles

sábado, 23 de outubro de 2010

Frida Kahlo, o martírio da beleza


Há anos Frida Kahlo me persegue. Tentei fugir, não consegui. Desde os anos 70, redescoberta pelas feministas, quando fotos dela começaram a aparecer nas revistas, eu tinha medo. E me recusava a ler. Bastava aquele rosto duro, de pedra, metade asteca, metade etrusco, buço e sobrancelhas cerrados, olhar direto, arrogante. Sem saber quase nada, eu intuía qualquer coisa terrível na história de Frida. Descobri depois: era ainda mais terrível do que poderia imaginar.
Veio então um filme mexicano extraordinário, numa exibição especial qualquer, com certa atriz magnífica (não lembro o título, talvez Frida, algum cinéfilo me diga por favor). Saí do cinema aos prantos. E devorei, numa noite, uma biografia escrita por Rauda Jamis. Aterrorizado, fascinado. Ó Deus, por que a beleza pode ser tão medonha? Ou ao contrário, por que o medonho pode ser tão belo? Vieram então os quadros. As cores, as corças feridas com cabeça humana, corpos esquartejados, colunas vertebrais metálicas, as pernas amputadas, pregos na carne: a Dor. Maiúscula, maior que tudo. E sempre o rosto. Em todos os quadros, o rosto indescritível.
Em Paris, há três anos, caminhando por uma mostra de arte mexicana no Beaubourg, de repente tive uma espécie de vertigem. Que, estranho, não vinha de dentro de mim, mas emanava de um ponto na parede. Olhei: era uma explosão de cores primárias, brilhantes, exageradas. Era uma das dezenas de auto-retratos de Frida Kahlo. Amarelo, vermelho, verde, lilás. Tive febre, depois. E comprei um livro de reproduções, as livrarias de SaintGermain-des-Prés estavam cheias deles. E as de Amsterdam, as de Berlim, as de Milão e Londres e Oslo também, fui descobrindo. A imagem martirizada de Frida Kahlo estava por toda a parte, como um Cristo-mulher contemporâneo. Um Cristo artista, bissexual, bêbado, drogado, adúltero, arrancando sua transcendência do próprio sangue, com as próprias unhas. E eu cruzava a Europa de ponta a ponta ouvindo Adriana Calcanhoto cantar no walkman: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/ Cores que eu não alcanço/ Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores”.
Agora leio O diário de Frida Kahlo, um livro lindíssimo da Livraria José Olympio Editora, publicado no mundo todo este ano a partir de cadernos deixados no Banco do México. Os diários, escritos com tinta colorida, entremeados de desenhos perturbadores, com símbolos esotéricos hindus, celtas, pré-colombianos, cobrem os anos de 1944-1934. Sempre deitada, coberta de panos e mantas de seda índios, cheia de jóias extravagantes, ela olhava-se ao espelho e pintava e escrevia sem parar o que conhecia melhor: a própria dor. A coluna bífida, poliomielite, uma perna esmagada e amputada, várias fraturas na coluna, 33 cirurgias durante uma vida de apenas 47 anos.
Sobre aquele rosto, diz Carlos Fuentes, que a viu apenas uma vez no Palácio das Belas-Artes da Cidade do México: “O corpo é o templo da alma. O rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, a alma não tem outro santuário a não ser o rosto”. E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La maílana nace”.
Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu o suportarei.
Como ela, em sua homenagem, Frida.


Caio Fernando Abreu

O lado fatal

Daniel F. Gerhartz.

I
Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.

II

Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.

III

Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.

IV

Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu.
Quando se foram também os médicos e suas  máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste
que não estancará jamais.

V

Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.
Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.
Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).
Sobrevivo, mas pela insensatez.

VI

Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal. A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.

VII

Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.
Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.
Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.

VIII

O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?
De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar.

XIX

Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso
mas que nos abrange.
Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca.

X

Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos.
"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias.
Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos.

XI

O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia
[dar.(Um dia, celebraremos juntos.)

XII

Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não
[respondes.(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)

XIII

O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e
[banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança

XIV

Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava
[a justiça,
desejava a eternidade e a paz.
Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.
Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.
Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.

XV

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.
Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.

XVI

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta.

XVII

Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:
quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.
Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.

Lya Luft

Pista do meio-dia


Diz-lhes que vieste, viste & me olhaste
nos olhos, & viste a sombra
do guarda a afastar-se
Pensamentos a tempo & fora de época
Aquele que pedia boleia ficou na berma da estrada
& estendia o polegar no calmo cálculo da razão

(passa um carro)

Porque gira a minha mente à tua volta?
Porque se perguntam os planetas como
Seria estar na tua pele?

As tuas promessas ternas e selvagens eram paleio
Pássaros, num voo sem fim
O teu cão continua perdido nos bosques gelados
ou correria para ti
Como pode correr para ti?
Sangrando desorientado na neve
Continua a farejar os portões & procurando
Nos estranhos o teu cheiro
que recorda muito bem

Vês a lua a tua janela?
A loucura ri?
Ainda podes descer ao banco de rochedos
ao fundo da praia sem ele?

Fotografia de Inverno
o nosso amor corre perigo
Fico a pé toda a noite, a fumar a conversar
Recordo os mortos & espero amanhã
(Voltarão os nomes & os rostos dos que me eram chegados
Terá a floresta de prata fim?)


Jim Morrison
Dorina Costras 


Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!


Florbela Espanca

sexta-feira, 22 de outubro de 2010


bom soninho...
até amanhã...

Janis Joplin "little girl blue"


Janis
É tão triste ouvir
tanto sentimento disperso, perdido no tempo.
Alguém sonhou por mim, por nós,
por não sei quantos mais,
lançando sobre a Terra inteira
uma semente de Sol.
Foi tão lindo ouvir
a verdade do teu nome tanto tempo depois
porque a arte está além do tempo,
do tempo e do espaço,
arremessando à terra e ao céu
uma mensagem muito real.
Mensagem atual
para outras gerações que estão vindo aqui.
Novos rebeldes estão ligados às ondas
que o teu canto abriu no mar,
mesmo porque uma realidade opressiva
continua a existir.
É tão triste possuir
a consciência da liberdade
sem poder nada mudar.
Levantar as bandeiras do que poderia ser
mas, percebendo que o mundo é tão falso,
pouco podendo fazer.
O violão tocando
a canção de uma guitarra que calou a voz.
A poesia em teu olhar distante
gritando imagens,
palavras nuas encobertas pelo grande silêncio.
É bonito amar.
Tudo é tão belo e tão necessário
mas poucos compreendem isso.
Resta repetir, bem alto, o toque de Martin Luther King:
"Eles roubaram a nossa liberdade
e nós a queremos de volta".
Não há nada além
da vontade de viver que ainda existe em nós
fazendo nascer
o mesmo que muitos imaginaram quando quiseram cantar
ou escrever poemas em pranto
no espelho radiante das águas.
É verdade, sim:
eu sou apenas um poeta, um sonho da chuva.
Você foi um pouco mais do que nós quando decidiu viver,
deixando a saudade em sombras
no leito do amanhecer.
Fugiu do mundo inteiro.
Não queria ir para a guerra
mas não encontrou a paz.
Paz e amor a gente inventava
mas não deu para segurar
quando os senhores da guerra
mataram as flores do paraíso.
É o fim do sonho.
É o fim de todo um mundo que nem ao menos começou.
O sistema derrotou a utopia
e todos nós perdemos novamente.
Estamos enfiados nas garras do maldito poder.
Janis Joplin, eu agora sei:
a lembrança estacionada na aventura do tempo
conta estórias de uma realidade que nós desejávamos viver.
A beleza seria algo real
se a nossa revolução viesse a acontecer.
Poderia ser
Joan Baez ou Ângela Davis
ou simplesmente você,
mulher, ser humano, ser profundo
como nós poetas, "beatniks", malucos, ciganos,
"drop-outs" da vida.
Escuto a tua voz
em discos antigos dos anos 60
ou do início dos 70, quando você se foi,
deixando o teu estranho nome escrito
em um oceano de estrelas.
Woodstock se foi.
O amor que todos encontraram na liberdade de ser,
quebrando limites, regras, países,
fazendo as cabeças,
e se acabando como o fogo no gelo das montanhas.
Tocando o teu estranho blues,
amargurado, triste, liberto,
eternamente eterno,
na distância do pensamento eu sinto
tua voz nos discos,
tua alma ao vento,
Pérola de luz.

Luiz Lima