sábado, 28 de setembro de 2013

Mim

Jean Paul Avisse

O tempo transcorre em mim
Celeremente. Tão afoito que finda.
Acho que sei, afinal, a que vim.
E já me vou. Uma pena.
Não há tempo mais pra mim.
Volto à silente matéria cósmica
Que em mim, um dia, se organizou
Para me ser. Uma vez, uma vez somente.


Darcy Ribeiro

Aritmética da solidão


Quando fiquei novamente solteiro, estava decepcionado com o mundo.

Entendia a solidão como sarcasmo. Minhas roupas não enchiam mais uma máquina de lavar, a comida estragava na geladeira, toda noite era fim melancólico de domingo.

Não fazia sentido estar sozinho. Logo eu, que sempre defendi a vida a dois, logo eu, que sempre valorizei o casamento, logo eu, que dizia que liberdade na vida é ter um amor para se prender – me enxergava amaldiçoado, raivoso com a falta de sorte, ofendido com as separações.

Reclamava da sina aos amigos da injustiça, já profetizava que ficaria encalhado o resto dos dias, já me preparava para ser um canalha incorrigível, já prometia encerrar o destino romântico e rasgar as crônicas enternecidas.

Minha filha Mariana buscou me acalmar. Saiu comigo para esfriar o drama. Afinal, até ópera tem intervalo.

– Pai, dá um tempo na choradeira...

– É fácil dizer porque não é contigo.

– Está se sentindo o único separado da terra, que coisa, relaxa, olha para os lados.

– É que parece que jamais vou encontrar a mulher de minha vida. Adoro a convivência a dois.

– Você já é dois, pai.

Aquela frase me confortou: eu era dois. Era inteiro. Não dependia de ninguém para me completar. Não precisava levantar os braços para o ônibus de recolhe. Não morreria de sede como uma samambaia. Poderia me cuidar, me dar ao luxo de ser egoísta e não mendigar alianças.

No momento em que aceitei a solteirice, e sorria dentro dela, conheci Juliana. E tudo que abandonei floresceu furiosamente em meus olhos.

O cara que não queria mais um envolvimento sério voltou a oferecer declarações eternas. O cara que não queria mais casamento passou a se imaginar no altar. O cara que não queria mais ter filhos descartou de vez a vasectomia. O cara que não mais confiava nas mulheres começou a desconfiar dos homens.

O namoro venceu o apocalipse, mas não eliminou a dúvida. Havia o receio de reprisar histórias anteriores.

Fui conversar com Juliana:

– Eu sou dois sozinho.

– Pode ser três comigo – ela corrigiu.

Eu ri. E completei:

– Então, posso ser quatro contigo. Eu e minha solidão, tu e tua solidão.

Nunca mais seria metade de ninguém. Nem de mim mesmo.



Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 14/05/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17432

Música


Música: ouço dentro o que vejo fora
Vejo dentro o que ouço fora,
Sou uma arquitectura de sons instantâneos
Sobre um espaço que se desintegra.
A música inventa o silêncio,
A arquitectura inventa o espaço
Fábricas de ar.
O silêncio é o espaço da música:
Um espaço sem dimensão:
Não há silêncio salvo na mente.
O silêncio é uma ideia,
A ideia fixa da música.
A música não é uma ideia:
É movimento, sons caminhando sobre o silêncio
Silêncio é música
Música não é silêncio.


Octavio Paz

Um lugar

Ildiko Neer

Este é um lugar de desafeição
O tempo antes e o tempo depois
Numa luz sombria: nem luz do dia
Investindo a forma de lúcida quietude
Transformando a sombra em efêmera beleza
Com vagarosa rotação sugerindo permanência
Nem escuridão para purificar a alma
Esvaziando o sensual pela privação
Purificando a afeição do temporal.
Nem plenitude nem vazio. Apenas um tremeluzir
Sobre os rostos tensos devastados pelo tempo
Distraídos da distração pela distração
Cheios de fantasias e vazios de sentido
Túmida apatia sem concentração
Homens e pedaços de papel remoinhando no vento frio
Que sopra antes e depois do tempo,
Vento que entra e sai de pulmões viciados
Tempo antes e tempo depois.
Eructação de almas doentias
No ar desbotada, os miasmas
Levados no vento que varre os sombrios montes de Londres,
Hampstead e Clerkenwell, Campden e Putney,
Highgate, Primrose e Ludgate. Não aqui
Não aqui a escuridão, neste mundo de agitadas vozes.

Desce mais, desce apenas
Ao mundo da solidão perpétua,
Mundo não mundo, mas aquilo que não é mundo,
Escuridão interna, privação
E destituição de toda a propriedade,
Dissecação do mundo do sentido,
Evacuação do mundo da fantasia,
Inoperância do mundo do espírio;
Este é um dos caminhos, e o outro
É o mesmo, não em movimento
Mas abstenção de movimento; enquanto o mundo se move
Em apetência, nos seus caminhos metalizados
Do tempo passado e do tempo futuro.

t.s.eliot

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

As praias desertas

Antonio Duarte



As praias desertas continuam
Esperando por nós dois
A este encontro eu não devo faltar

O mar que brinca na areia
Está sempre a chamar
Agora eu sei que não posso faltar

O vento que venta lá fora
O mato onde não vai ninguém
Tudo me diz
Não podes mais fingir

Porque tudo na vida há de ser sempre assim
Se eu gosto de você
E você gosta de mim

As praias desertas continuam
Esperando por nós dois


Antonio Carlos Jobim

Ouvir estrelas

Aimee Stewart

Ora ( direis ) ouvir estrelas!
Certo, perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto
Que, para ouví-las,
muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto

E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo? "

E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e e de entender estrelas



Olavo Bilac
Annibale Carracci

O lugar que a gente morava quase só tinha bicho, solidão e árvores.
Meu avô namorava a solidão.
Ele era um florilégio de abandono.
De tudo que me restou sobre aquele avô foi esta imagem: ele deitado na rede com sua namorada,mas se a gente o retirasse da rede por alguma necessidade, a solidão ficava destampada.
Oh, a solidão destampada!
Essa imagem da solidão que ficara dentro de mim por anos.

 Manoel de Barros

He touched me


He touched me, so I live to know
That such a day, permitted so,
I groped upon his breast.
It was a boundless place to me,
And silenced, as the awful sea
Puts minor streams to rest.

And now, I 'm different from before,
As if I breathed superior air,
Or brushed a royal gown;
My feet, too, that had wandered so,
My gypsy face transfigured now
To tenderer renown.


Emily Dickinson

A Procura


“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.

Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo."



Fernando Sabino, O encontro marcado
Editora Record, 32a. edição

A Poesia


A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.

Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.

Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.

Adélia Prado

Milos Karadaglic - Libertango

Rosicler 1

Steve Hanks

Não perguntavam por mim,
mas deram por minha falta.
Na trama da minha ausência,
inventaram tela falsa.

Como eu andava tão longe,
numa aventura tão larga,
entregue à metamorfose
do tempo fluido das águas;
como descera sozinho
os degraus da espuma clara,
e o meu corpo era silêncio
e era mistério minha alma -
- cantou-se a fábula incerta,
segundo a linguagem da harpa:
mas a música é uma selva
de sal e areia na praia,
um arabesco de cinza
que ao vento do mar se apaga.

E o meu caminho começa
nessa franja solitária,
no limite sem vestígio,
na translúcida muralha
que opõem o sonho vivido
e a vida apenas sonhada.

Cecília Meireles

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa

Valentin Rekunenko

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais –
Como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejas de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra
canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos
diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.


Manoel de Barros, Poemas Rupestres

XLIv - O guardador de rebanhos

nathalie picoulet

Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu…
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez…

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!


Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa) - 07/05/1914 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ana Carolina lê trecho de "Poema Sujo", de Ferreira Gullar

bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já

um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-cidreira

e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida
Como se perdeu o que eles falavam ali
mastigando
misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa
janela
tão reais que
se apagaram para sempre
Ou não?


Ferreira Gullar

Man in the mirror



I'm Gonna Make A Change,
For Once In My Life
It's Gonna Feel Real Good,
Gonna Make A Difference
Gonna Make It Right ...

As I, Turn Up The Collar On My
Favourite Winter Coat
This Wind Is Blowin' My Mind
I See The Kids In The Street,
With Not Enough To Eat
Who Am I, To Be Blind?
Pretending Not To See
Their Needs
A Summer's Disregard,
A Broken Bottle Top
And A One Man's Soul
They Follow Each Other On
The Wind Ya' Know
'Cause They Got Nowhere
To Go
That's Why I Want You To
Know

I'm Starting With The Man In
The Mirror
I'm Asking Him To Change
His Ways
And No Message Could Have
Been Any Clearer
If You Wanna Make The World
A Better Place
Take A Look At Yourself, And
Then Make A Change


I've Been A Victim Of A Selfish
Kind Of Love
It's Time That I Realize
That There Are Some With No
Home, Not A Nickel To Loan
Could It Be Really Me,
Pretending That They're Not
Alone?

A Widow Deeply Scarred,
Somebody's Broken Heart
And A Washed-Out Dream
(Washed-Out Dream)
They Follow The Pattern Of
The Wind, Ya' See
Cause They Got No Place
To Be
That's Why I'm Starting With
Me
(Starting With Me!)

I'm Starting With The Man In
The Mirror
I'm Asking Him To Change
His Ways
And No Message Could Have
Been Any Clearer
If You Wanna Make The World
A Better Place
Take A Look At Yourself And
Then Make A Change


Michael Jackson 

Cantigas leva-as o vento...




A lembrança dos teus beijos
Inda na minh'alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.

Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar'cido
Revive numa saudade


Florbela Espanca 

sábado, 21 de setembro de 2013

Frances Ha: uma homenagem aos errantes


bruno-dayan

Anda difícil ser jovem. O leque de opções é farto e isso deixa qualquer um indeciso. E, até quando se decide com alguma convicção, pouco adianta: onde foram parar os empregos, onde estão os amores, o que fazer quando as coisas não saem como o esperado?

De uma coisa a protagonista de 27 anos do filme Frances Ha sabe: “dar certo” é algo muito relativo – e restrito. Existem poucas vias para o sucesso e inúmeras para o fracasso. A única maneira de conseguir vaguear pela vida sem lamentar as tentativas frustradas é reconhecer que a normalidade também pode ser manca, vesga e fanha. Mesmo quando tem chance de acertar, Frances prefere apostar no azarão: “Gosto das coisas que parecem erros”.

E já que ela revela isso com um sorriso no rosto, e não resmungando, subverte a questão e mostra que o “erro” pode ser um estilo de vida aceitável, é só cuidar para que ele não provoque isolamento nem nos conduza ao “ai de mim”. Arriscar com graça e autenticidade pode ser um acerto do avesso.

Nem todos querem ser campeões em tudo. Os errantes não aparecem nas colunas sociais nem são exemplos de virtude, mas têm um jeito próprio de se expressar e de existir, lutando para manter sua identidade mesmo na contramão do que se estabeleceu como “certo”. Conheço, por exemplo, quem prefira dias nublados e chuvosos, o que soa como errado, ainda que um erro poético.

Só que a poesia não tem nada a ver com essa preferência. Um dia, essa pessoa me confessou que gostava de dias nublados porque era quando não se sentia cobrada a “aproveitar a vida lá fora”. Ela aproveitava a vida por dentro, e o clima fechado era seu cúmplice diante de uma sociedade que decretou como certo que todas as pessoas devem frequentar parques e praticar exercícios ao ar livre. Quando chovia, ela tinha a rara oportunidade de se sentir enquadrada.

Há caminhos bem sinalizados para se ter uma vida plena, saudável e com garantia de receber uma estrelinha dourada ao final da jornada, mas há quem se sinta tentado pelos desvios. Qual o problema de não querer ter filhos ou de não desejar fazer parte da diretoria? Lembro de uma passagem divertida de um livro de Martin Page. O personagem recebe uma promoção e a recusa, questionando. “Por que sou obrigado a evoluir?”. O patrão insiste: “Mas você faz um trabalho excelente!”. E ele: “Não faço isso de propósito”.

Há quem não queira mais responsabilidades do que já tem, mesmo que isso implique ganhar menos dinheiro. Quem decretará que isso é falta de rumo?
Errantes somos todos, em algum aspecto. Fazer besteira para chamar a atenção é contraproducente, mas optar por alternativas não abençoadas pelo senso comum pode ser apenas uma maneira de levar a vida como se gosta.


Marta Medeiros
Zero Hora - 11/09/2013

Não-coisa


arthur braginski


O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa

sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.


Ferreira Gullar

Sobre Vivência




um puta vento soprando no rosto
arrasta os cabelos os pensamentos
o canto dos pássaros e o barulho
dos carros

os espirros os gemidos os pigarros
os esquecimentos e os sentimentos
raros

viver é tão imenso
e ao mesmo tempo
um faro

uma vez sim uma vez não esses
punhados de dúvidas e uma
certeza escancarada

não sei
onde se formam as paisagens
muito menos em que navegação
o mar é a viagem

e tudo isso tem cheiro


Lau Siqueira

Cultivo una rosa blanca



Cultivo una rosa blanca;
En julio como en enero,
Para el amigo sincero
Que me da su mano franca.

Y para el cruel que me arranca
El corazón con que vivo,
Cardo ni ortiga cultivo
Cultivo una rosa blanca.


José Martí

Bruce Springsteen - watching "Girls In Their Summer Clothes"

Rio de Janeiro - 20.09.2013




Bruce Springsteen (The Boss)

18.09.2013 - Espaço das Américas - São Paulo - the best show ever...

terça-feira, 17 de setembro de 2013

There is a pleasure in the pathless woods

Nathalie de Lan

There is a pleasure in the pathless woods,
There is a rapture on the lonely shore,
There is society, where none intrudes,
By the deep sea, and music in its roar:
I love not man the less, but Nature more,
From these our interviews, in which I steal
From all I may be, or have been before,
To mingle with the Universe, and feel
What I can ne'er express, yet cannot all conceal.


 Lord Byron
Childe Harold - Canto IV - Verse 178

XLVI - O guardador de rebanhos

Roman Frances

Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) - 10/05/1914

Artes

hans zatska

hans zatska

Henriette Ronner Knip

Emile Munier - her best friend

james wells champney

james hayllar

james sant - wild flowers

james john hill

Jean Leon Basile Perrault

jean baptiste greuze

Jean Leon Basile Perrault

Jean Leon Basile Perrault

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Vejo, logo Existo



Sou um visual. O que na memória trago, trago-o visualmente, se susceptível é de assim ser trazido. Mesmo ao querer evocar em mim uma qualquer voz, um perfume qualquer, não evito que antes que ela ou ele me vislumbre no horizonte do espírito, me apareça à visão rememorativa a pessoa que fala, a coisa donde o perfume partiu. Não dou isto por absolutamente certo; pode ser que, radicada em mim de vez a persuasão de que sou um visual, no lugar final do sofisma que é a escuridão íntima do ser me fosse desde então impossível evitar que a ideia de que sou um visual não levantasse imediatamente uma imagem falsamente inspiradora. Seja como for, o menos que sou, é um visual predominantemente. Vejo, e vendo, vivo.

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

Quem não Ama a Solidão, não Ama a Liberdade



Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas.
Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas ações, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo.

Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.
A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.
Ademais, quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente. Assim, é um benefício para ela se à solidão física corresponder a intelectual. Caso contrário, a vizinhança frequente de seres heterogêneos causa um efeito incômodo e até mesmo adverso sobre ela, ao roubar-lhe seu «eu» sem nada lhe oferecer em troca. Além disso, enquanto a natureza estabeleceu entre os homens a mais ampla diversidade nos domínios moral e intelectual, a sociedade, não tomando conhecimento disso, iguala todos os seres ou, antes, coloca no lugar da diversidade as diferenças e degraus artificiais de classe e posição, com frequência diametralmente opostos à escala hierárquica da natureza.
Nesse arranjo, aqueles que a natureza situou em baixo encontram-se em óptima situação; os poucos, entretanto, que ela colocou em cima, saem em desvantagem. Como consequência, estes costumam esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'



Todas as teorias, todos os poemas 
Duram mais que esta flor. 
Mas isso é como o nevoeiro, que é desagradável e húmido, 
E maior que esta flor... 
O tamanho, a duração não têm importância nenhuma... 
São apenas tamanho e duração... 
O que importa é a flor a durar e ter tamanho... 
(Se verdadeira dimensão é a realidade) 
Ser real é a única coisa verdadeira do mundo. 


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 

Sensibilidade

andrew ferez


Meu coração,
É um quarto de espelhos,
Que reflete e multiplica,
Infinitamente,
Uma impressão.

É como o eco
Dos longos corredores desertos,
Que repete e amplifica,
Misteriosamente,
Uma palavra.

É como um frasco de perfume raro
Que guardou,
Para sempre,
Um leve aroma da essência que encerrou.


Helena Kolody, in Infinito Presente

Derramada é você

Claude Theberge

E se eu não me encaixasse em sua nuca de noite? Se eu não beijasse seu rosto quando você dorme dez minutinhos de tolerância? Se eu não ligasse o chuveiro antes para deixar aquecido? Se eu não preparasse seu iogurte? Se eu não levasse você ao trabalho com a rádio que gosta? Se eu não mandasse mensagens por onde ando? Se não saíssemos de mãos dadas com você invertendo o jeito de comprimir a palma para dentro? Se eu não estivesse perto para escutar seus desabafos? Se eu não recolhesse suas roupas sem que percebesse? Se eu não pressentisse seu cansaço e a objetividade da ressaca? Se eu não despertasse sua nudez com as palavras certas? Se eu não amasse sua família e seus amigos? Se eu não fizesse nenhuma provocação? Se você não ficasse muda - respirando lento - em meu ouvido? Se não segurasse minha cabeça por trás? Se não reclamasse de minha barba arranhando seu rosto? Se não dançássemos com o álcool dos olhos? Se eu não procurasse mexer em seu pescoço para acalmá-la? Se eu não fosse o voto de minerva de seus vestidos e sapatos? Se não abraçasse quando você está quase chorando para criar uma árvore de ombros?

Se não,
se não,
se eu não existisse, amada, o que você faria?

A saudade explica o amor.

A saudade esclarece o quanto estamos amando.

É um calorão que vem com a simples ideia de perder alguém. A garganta acelera com a ameaça da ausência. É uma falta de ar que forma o suspiro. É uma dificuldade tremenda de dormir separado, como se seu corpo estivesse sempre pela metade. É uma calamidade não apressar as pazes. É uma angústia ver o outro aborrecido.

Você passa a não suportar nem uma pequena incompreensão por muito tempo, e logo escreve e logo telefona e logo pede desculpa.

Você lembra e não acredita de tão perfeito. Só ama quem não acredita naquilo que está vivendo.

Se você não tem noção de quanto se entrega, a saudade mostra.

A saudade é um sofrimento alegre. Você sofre, mas agora acompanhada do motivo de sua saudade.

Derramada é você, apenas não parou para pensar no que sente por mim.

A saudade é parar um minuto.

Nem pare. Tente evitar. Procure fugir do assunto.

Eu sou água, você é fogo. O fogo é mais derramado do que a água.

Recomendo não olhar para baixo. Continue voando com suas labaredas. É melhor não saber.

Você ainda não conhece o tamanho de sua saudade para conhecer o tamanho de seu amor.


Fabrício Carpinejar

O amor

Antonio Sgarbossa



O amor!... Um sonho, um nome, uma quimera,
Uma sombra, um perfume, uma cintila,
Que pendura universos na pupila,
E eterniza numa alma a primavera;

Que faz o ninho, e dá meiguice à fera,
E humaniza o rochedo, e o bronze, e a argila,
Sem o afago do qual Deus se aniquila
Dentro da própria luminosa esfera.

A música dos sóis, o ardor do verme,
O beijo louco da semente inerme,
Vulcão, que o vento arrasta em tênues pós:

Curvas suaves, deslumbrantes seios
De vida e formas variegadas cheios,
É o amor em nós, e o amor fora de nós.


Luís Delfino

Primaveras

 
La chanson la plus charmante
Est la chanson des amours!
V. Hugo

XIX

Primavera! juventud Del anno,
Mocidad! primavera della vita.
Metastasio


I

A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores.
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: – Como é linda a veiga!
Responde a rosa: – Como é doce o orvalho!
 

II

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

São flores murchas; – o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.

Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio

Na primavera – na manhã da vida – 
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida – a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.


 Casimiro de Abreu, In As Primaveras, 1859
imagens: Andrei Markin

Mas que tempo é esse?



Saí do cinema pensando: é preciso estar atento e forte, colega, a idade Média está de volta.

Discretamente, todo dia, de muitas formas estamos sendo bombardeados por mensagens tipo: não saia da linha, não cometa nenhuma transgressão, não se apaixone. Caso contrário, você será punido por isso. O vírus da Aids materializou nas cabeças burras aquela velha suspeita de que toda a nudez, um dia, seria inevitavelmente castigada. O que confirma a culposa lenga-lenga judaico-cristã de que este planeta não passa mesmo de um sofrido vale de lágrimas, onde todo prazer é sinônimo de pecado. Para quem acompanhou a luta das minorias nos anos 60 e 70, resta um espanto no ar: o que está acontecendo? É um retrocesso? Foi tudo inútil? Como se entrássemos coletivamente numa máquina do tempo moral e mental, para negar a História e ignorar todos aqueles vislumbres de felicidade individual conquistados nas últimas décadas, tentar ser feliz agora, saindo fora do esquema, é crime. Homossexuais, mulheres independentes, homens descasados, rebeldes de todo tipo, artistas, loucos mansos e varridos: a nova moral está no seu encalço.

A neocaretice está solta pelas ruas. Ela mora no apartamento ao lado, na casa da esquina e anda muito preocupada com a possibilidade de Jocasta e Édipo consumarem seu colorido incesto às oito da noite. Ela quer que o sexo que não se destine exclusivamente à procriação seja varrido da face da Terra. Ela sorri amável no elevador, dá bons-dias, boas-tardes, boas-noites, depois fica prestando atenção na sua vida para ver se você está andando direitinho dentro da linha. E se não estiver, tome cuidado, porque de alguma forma você pode ser punido. Despejo, desemprego – você sabe, essas pequenas tragédias que acontecem com quem ainda é capaz de não só acreditar em um pouco de prazer, mas até de lutar por isso. Embora, concordo, ninguém saiba mais direito o que seria “o prazer” a estas alturas da década de 80.

Quanto a nós, meio gauches, meio bandidos, dinossauros sobreviventes daquele tempo em que tudo parecia que ia mudar – não resta muito mais a fazer senão resistir. Movidos, no mínimo, pela curiosidade de onde vai dar tudo isso. E sempre se pode cantarolar baixinho aquele velho blues (Milagres) de Cazuza, que diz assim: “Mas que tempo mais vagabundo é esse que escolheram pra gente viver?”.



Caio Fernando Abreu
OESP – Caderno 2 – 20 janeiro de 1988

"A velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo. Em que consiste este processo? Em outras palavras, o que é envelhecer? Esta ideia está ligada à ideia de mudança. Mas a vida do embrião, do recém-nascido, da criança, é uma mudança contínua. Caberia concluir daí, como fizeram alguns, que nossa existência é uma morte lenta? É evidente que não. Semelhante paradoxo desconhece a verdade essencial da vida: ela é um sistema instável no qual se perde e se reconquista o equilíbrio a cada instante; a inércia é que é o sinônimo de morte. A lei da vida é mudar."

Simone de Beauvoir, in "A Velhice"

Idade da perda (II)




viver é jogar a alma
num abismo e tangê-la
pelo avesso do corpo
é sempre um muito
tão pouco

até que respirar
se torne um verbo
finito

e um grito
no oco


Lau Siqueira

O chão é cama


Serge Marshennikov


O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.


Carlos Drummond de Andrade
In O Amor Natural, 1992



XLVII - O Guardador de Rebanhos

hiroshi chang


Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.


Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Nada mudou...


Nada mudou.
O corpo faz doer,
tem que comer, que respirar e que dormir,
tem a pele fina e o sangue logo em baixo,
provisão farta de dentes e de unhas,
ossos que quebram, articulações que esticam.
Nas torturas tudo isto é tido em conta.


Nada mudou.
O corpo treme como tremeu
antes e após a fundação de Roma,
no século XX antes de Cristo e depois,
torturas há, como antes houve,
apenas a terra diminuiu,
e o que quer que se passe é como se passasse ali à esquina.


Nada mudou.
Há só mais gente.
às velhas culpas novas se juntaram,
reais, insinuadas, fugazes e nenhumas,
mas o grito com que o corpo lhes responde,
é, foi e será um grito de inocência,
numa escala e num registo eternos.


Nada mudou.
talvez só as maneiras, a dança, as cerimônias.
O gesto da mão protegendo a cabeça
permanece o mesmo todavia.
O corpo enrosca-se, arranha-se e arranca-se,
cai das pernas cortadas, encolhe os joelhos,
arroxeia, incha, baba-se e sangra.


Nada mudou.
Fora o curso do rio,
a linha das florestas, da costa, desertos e glaciares.
Entre paisagens assim se desfia a alma,
desaparece e volta, aproxima-se e parte,
estranha para si própria,inabarcável,
certa uma vez e logo incerta de existir,
enquanto o corpo está, está e está
e não tem lugar para onde ir.


Wislawa Szymborska