terça-feira, 30 de julho de 2013




Eu sorria. Nada mais. De repente, porém, eu soube
Na profundeza do meu silênciao
Que ele me seguia. Como minha sombra, leve e sem culpa.
Na noite uma canção soluçou…
Os índios se estendiam, como serpentes, pelas vielas da cidade.
Uma harpa e uma Jarana eram a música, e as morenas sorridentes
eram felicidade.
Ao fundo, atrás do ‘Zocalo’, o rio cintilava
e escurecia, como
os momentos da minha vida.
Ele me seguia.
Acabei chorando, isolada no pórtico
da igreja paroquial,
protegida por meu xale de ‘bolita’, encharcado por minhas lágrimas.


Frida Kahlo, in
Cartas apaixonadas de Frida Kahlo

Fraga e sombra

 Jaroslaw Grudzinski


A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.


Carlos Drummond de Andrade
In Claro enigma, 1951

Anikeev Sergey


Reconheço este quarto impermeável
reconheço-te estás adormecido
o peito muito aberto as mãos luminosas
o grande talento dos teus dentes miúdos

Há o perigo de um grito lindíssimo
quando andas assim comigo no invisível

Quando a manhã vier sairás comigo
para o espaço que nos falta para o amor
que nos falta

A aurora
está fatigada

a aurora
como um rio nosso
em torno dos elevadores

Tinha eu a idade
de um merselhês
silencioso
e tímido
Tu davas-me a lousa dos magos
o teu riso as letras
mais obscuras do alfabeto
Foi há muito tempo
ou agora
na caverna dos leões expressivos

A caverna que dá para a caverna
a caverna os lagos diligentes

Belo tu és belo
como um grande espaço cirúrgico

Porque tu não tens nome existes

A minha boca
sabe à tua boca

A minha boca
perdeu a memória
não pode falar as palavras
entram no seu túnel
e não é preciso segui-las

Disse que és alto
alto
branco e despovoado


Mário Cesariny

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Mais Que Um Poema



Não me fales de incêndios da alma,
Nem da linguagem dos amantes.
Antes, prova dos meus olhares
Do amor que só se sabe em ti.
Já me disse incontida, desmedida,
Quando sequer te percebes em mim.
Deixa que me confesse inteira,
Muito além da voz que supões.
Estou farta de emoções sussurradas
Pronunciadas no peito como cristal
Quero-te antes de qualquer palavra
Na entonação que apenas tu adivinhas


Não me digas de qualquer alvorecer
Onde não me trazes o sol, a ternura.
São teus olhos que me despertam
E me oferecem o aroma da vida.
É a doçura inquieta das tuas mãos
Néctar que veste os meus sonhos.
O dia que vejo é este em que me tomas
Quando vens antes de mim e dos sentidos
Quando me confidencias tuas saudades
E os caminhos em que me levaste
Em tuas ausências consentidas.


Não me fales de aritméticas
Dessa memória incisiva do tempo.
Meu coração desconhece algarismos
E contagens que afastam e distanciam.
Prefere-se a juntar passos, estradas
Desaprendeu dos números, da lógica
Entende-se somente em interseções
Compreende que pontos podem ser ligados
E assim, abraça-se descobrindo retas
Somando urgentes encantos e afinidades.


Não pressuponhas as rasuras de minhas dores.
Nada sabes dos abismos dos meus silêncios,
Quando o sentir é açoite pelo não expresso.
Tenho marcas palpáveis, cuja agonia e soluço
Só me sabe o escuro em que mergulho.
Apenas adentra as portas que te abro.
Anda devagar, como se deitasses em pétalas.
Não me peças para diluir na taça do impossível
Os sonhos, os desejos, os tolos tremores
Que transbordam insones em luas prateadas.
Não me ofereças o véu do comedimento
Para cobrir a alma, a carne, os sentidos


Sim, continuarei a te fazer versos,
Ainda que te conjugue imperfeitamente
Neste meu desassossego de letras,
Tropeçando em rimas, ébria de metáforas.
Mesmo que não alcance o lume dos teus sonhos,
A profundidade do que tua alma abriga,
Deixarei o eco deste amor que me guia
Na fragrância do dizer da minha poesia.
Bebo-te nesta taça até o último trago
Onde vezes te derramas quase meu...


Fernanda Guimarães
imagens: Jon PAUL  

enxuga aí


enxuga aí


vê se enxerga


essa lágrima
eu deixei cair


examina


examina bem


vê se não é
água de pedra
ouro da mina
essa gotadágua


minha
obra-prima


Paulo Leminski
Lauri Blank


O amor às vezes ganha a terra
E finca suas raízes no chão

O amor aos poucos ganha pés e mãos
Ganha voz
Quando por fim chega sua vez

O amor se espraia e geme
Quando sobre ele derrama
O sol da manhã

E tudo ao redor floresce
Crianças crescendo diante dos olhos

O amor quando finca seus pés na terra
Descansa
Mesmo que a gente nunca não

O amor quando se fixa
Exala cheiro de café
Exala maio com suas meias de lã

E palavras macias como os lençóis
Da cama quase sempre desfeita

O amor tem seus segredos 
Que desvendamos enquanto a vida 
Passa

O amor suaviza a vista cansada
O amor modela o corpo
O amor precisa falar

O amor precisa dizer a que veio
O amor fornece mapas e senhas
O amor nos indica o caminho


Viviane Mosé

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Canção do Recomeço



A casa que voltei depois de tantos anos
bóia como uma ilha de aguapés na noite
presa por uma raiz a um tempo doce e dolorosa,
que me define.

Na madrugada, caminho pela casa como no fundo do mar
onde essa raiz se finca.
Pelas vidraças, o jardim são algas;
meus filhos dormem em seus quartos como quando
eram meninos:
nossas respirações, como sentimento, fundem-se
neste bojo.

Este é meu lugar aonde voltei depois de tantos anos
como quem, misturando peças dos enigmas mais
arcaicos, montasse laboriosamente o seu quebra-cabeça.


Lya Luft, In Mulher no palco, 1984

Despedida



Por mim, e por vós, e por mais aquilo 
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranquilo: 
quero solidão. 

Meu caminho é sem marcos nem paisagens. 
E como o conheces ? - me perguntarão. - 
Por não Ter palavras, por não ter imagem. 
Nenhum inimigo e nenhum irmão. 

Que procuras? 
Tudo. 
Que desejas? 
Nada. 
Viajo sozinha com o meu coração. 
Não ando perdida, mas desencontrada. 
Levo o meu rumo na minha mão. 

A memória voou da minha fronte. 
Voou meu amor, minha imaginação... 
Talvez eu morra antes do horizonte. 
Memória, amor e o resto onde estarão? 

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. 
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! 
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão. 


Cecília Meireles

Retrato paradoxal



Era um retrato na parede. Era
uma parede num retrato. Pus
o retrato na parede. Pus a parede
no retrato. Para o retrato não
ficar sem parede, tirei o retrato
na parede. Para a parede não ficar
sem retrato, dei um retrato
à parede. E com o retrato na parede,
a parede ficou sem retrato.

 Nuno Júdice 


"Nasci dura, heróica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiúra é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu – eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite."

Clarice Lispector, in Água viva

Amor



Amor, se houve, eu tive.
De lembrar o amor
em poesia,
minha alma
sobrevive.


Yêda Schmaltz, do livro A forma do coração (1990)




Je me tourne de ton côté,
au lit ou dans la vie,
et je découvre que tu es faite d’impossible.


Je me tourne alors vers moi
et je trouve la même chose.


C’est pourquoi 
même si nous aimons le possible,
nous finirons par l’enfermer dans une boîte,
pour qu’il ne gêne plus cet impossible
Sans quoi nous ne pouvons continuer à vivre ensemble.


Roberto Juarroz, Dixième poésie

Delírio




O desejo revolvido
A chama arrebatada
O prazer entreaberto
                    O delírio da palavra

Dou voz liberta aos sentidos
Tiro vendas, ponho o grito
Escrevo o corpo, mostro o gosto
                 Dou a ver o infinito


Maria Teresa Horta, in As palavras do corpo

Aos fazedores de poemas rápidos e modernos



é muito fácil parecer moderno
enquanto se é o maior idiota jamais nascido;
eu sei; eu joguei fora um material horrível
mas não tão horrível como o que leio nas revistas;
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais
que não me deixará fingir que sou
uma coisa que não sou-
o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesia e o fracasso de uma pessoa
na vida.
e quando você falha na poesia
você erra a vida,
e quando você falha na vida
você nunca nasceu
não importa o nome que sua mãe lhe deu.
as arquibancadas estão cheias de mortos
aclamando um vencedor
esperando um número que os carregue de volta
para a vida,
mas não é tão fácil assim-
tal como no poema
se você está morto
você podia também ser enterrado
e jogar fora a máquina de escrever
e parar de se enganar com
poemas cavalos mulheres a vida:
você está entulhando a saída- portanto saia logo
e desista das
poucas preciosas
páginas.


Charles Bukowski

Lou Dahua






quarta-feira, 24 de julho de 2013

Necessidade do corpo



Nenhum pecado desertou de mim. 
Ainda assim eu devo estar nimbada, 
porque um amor me expande. 
Como quando na infância 
eu contava até cinco para enxotar fantasmas, 
beijo por cinco vezes minha mão. 
Este é meu corpo, corpo que me foi dado 
para Deus saciar sua natureza onívora. 
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco 
meu pobre corpo 
é feito corpo de Deus.


Adélia Prado 

Mas vens

© Rob Hefferan


como se todo o tempo já tivesse transcorrido 
— porque tudo passa, se tocamos, 
vens com o teu bafio, o teu hálito, tua aura e teu roçar, 
nessa tua onipresença, ora dentro, ora fora, tanto e toda em mim.
(a medida do tempo é bem mais clara na ausência.)
à margem de ti, me vejo rude. tosco. incompleto. 
êxul de mim, naquilo em que mais me vejo. 
e tão poucas são as coisas em que me percebo.
mas vens. 
como a dizer de um capricho urdido adredemente, 
um experimento, uma cilada, 
aferindo-me com o teu esperômetro, 
a medir meu quantum de permanência.
(tola... como se coubesse a mim traçar novos rumos, trair-te, abandonar-te.)
adentrar nos teus domínios — a mesma sensação sempre renovada, 
é como se chegar em país estrangeiro e lá encontrar pedaço de seu. 
tudo compreender, nas múltiplas linguagens que me trazes à mesa.
mágico momento, singular instante o desse encontro, 
em ti, eterna estrangeira e eterna cúmplice, conheço-te cada rua,
                                     [cada rincão, qualquer espaço, à vista 
primeira, como se antigos fossem os nossos abraços.
(e tão antigos são os nossos abraços.)
de verdade, não sei se sou eu que te esqueço, ou se és tu que me abandonas. 
                                                               [mas sei que todo esquecimento 
e abandono são efêmeros. 
sei também que deve ser assim 
porque, às vezes, me sufocas, não dás trégua, e eu, bem o sei, por vezes faço igual.
(o que seria dos encontros sem a saudade?)
mas vens. 
e sabes como chegar. 
em vão disfarças, porque é do teu querer que todo disfarce seja em vão. 
pões uma venda na face, à guisa de ocultar-se. 
e ris. 
e ris porque sabes que a mesma venda te serve por bandana, inútil cendal, 
                                                       [máscara fugaz em que estampas: 
sou eu. 
na linearidade em que te mostras, percebo-te em ondas. 
nas ondulações, o teu linheiro percurso. 
e caminho no teu seguro caminho.
e os antigos abraços se renovam.
e vens.
e ficas.


Antoniel Campos
Birds -  Denis Oktyabr


Desde sempre parece que ele fora proposto a pássaro.
Mas não tinha preparatórios de uma árvore 
Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios.
Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte. 
Ninguém era início de nada. 
A gente pintava nas pedras a voz. 
E o que dava santidade às nossas palavras era a canção do ver! 
Trabalho nobre aliás mas sem explicação 
Tal como costurar sem agulha e sem pano. 
Na verdade na verdade 
Os passarinhos que botavam primavera nas palavras.


Manoel de Barros

Papo poético - a Poesia é necessária

Residual

Marcus Ohlsson


Você pode ficar com tudo que eu tenho
pode ficar com a nossa história
com meu passado
pode escolher qualquer pedaço da minha vida
é teu, tá dado

pode guardar, quebrar, fazer de conta que não houve
que nunca aconteceu, que eu nem existo
pode duvidar se valeu, ou relembrar
revisitar, a tua memória é um misto
do que não foi e do que podia ter sido

e por isso ainda fica nessa casa
um resto de esperança, um colorido
a lembrança arranhando as paredes, a alma
ainda um pouco carregada
Por isso resolvi ir. Você
pode ficar com tudo isso
que eu não posso, não quero levar nada.


Bruna Lombardi, in "Gaia"


Como a noite descesse...

Ron Jones


Como a noite descesse e eu me sentisse só, só e desesperado diante dos horizontes que se fechavam 
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora! e vi logo 
só as estrelas é que me entenderiam. 

Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse, 
ou então voltar à infância. 
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo: 
- É por aqui! 

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego: 
- Renasceste: liberta-te! 

Se eu estava só, só e desesperado, 
por que gritar tão alto? 
Por que não dizer baixinho, como quem reza: 
- Ó doce e incorruptível Aurora... 

se só as estrelas é que me entenderiam? 


Emílio Moura 

Canção do amor sereno

Christian Schloe 

Vem sem receio: eu te recebo 
Como um dom dos deuses do deserto 
Que decretaram minha trégua, e permitiram 
Que o mel de teus olhos me invadisse. 

Quero que o meu amor te faça livre, 
Que meus dedos não te prendam 
Mas contornem teu raro perfil 
Como lábios tocam um anel sagrado. 

Quero que o meu amor te seja enfeite 
E conforto, porto de partida para a fundação 
Do teu reino, em que a sombra 
Seja abrigo e ilha. 

Quero que o meu amor te seja leve 
Como se dançasse numa praia uma menina.


Lya Luft

M. de memória




Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.


Paulo Leminski

domingo, 21 de julho de 2013

Prayer Before Birth




I am not yet born; O hear me.
Let not the bloodsucking bat or the rat or the stoat or the
club-footed ghoul come near me.

I am not yet born, console me.
I fear that the human race may with tall walls wall me,
with strong drugs dope me, with wise lies lure me,
on black racks rack me, in blood-baths roll me.

I am not yet born; provide me
With water to dandle me, grass to grow for me, trees to talk
to me, sky to sing to me, birds and a white light
in the back of my mind to guide me.

I am not yet born; forgive me
For the sins that in me the world shall commit, my words
when they speak me, my thoughts when they think me,
my treason engendered by traitors beyond me,
my life when they murder by means of my
hands, my death when they live me.

I am not yet born; rehearse me
In the parts I must play and the cues I must take when
old men lecture me, bureaucrats hector me, mountains
frown at me, lovers laugh at me, the white
waves call me to folly and the desert calls
me to doom and the beggar refuses
my gift and my children curse me.

I am not yet born; O hear me,
Let not the man who is beast or who thinks he is God
come near me.

I am not yet born; O fill me
With strength against those who would freeze my
humanity, would dragoon me into a lethal automaton,
would make me a cog in a machine, a thing with
one face, a thing, and against all those
who would dissipate my entirety, would
blow me like thistledown hither and
thither or hither and thither
like water held in the
hands would spill me.

Let them not make me a stone and let them not spill me.
Otherwise kill me.


 Louis MacNeice 

Insubmissão

taras loboda

Somos corsárias
febris
… por areias dos desertos
Seguimos estrelas cadentes
e montando os nossos sonhos
cumprimos roteiros incertos
Vamos atrás das paixões
com o faim à cintura
e a pena no coração
Para escrevermos poesia
invertendo o cantochão
Com a arte da insídia
olhamos o horizonte alucinando
os oásis, abismando sortilégios
Escutamos os clamores
os oceanos celestes
nos silêncios dos desertos
Buscamos os infiéis
com olhos de expiação
Somos hábeis e seguras
ambíguas, doces, cruéis
nós partimos sem regresso
Ora flibusteiras
em horas de cerração
entre a paixão e o inverso
Ora piratas do limbo
abandonando os arquétipos
A cimitarra à cintura
e o júbilo no coração
pelo avesso dos versos
Somos a rosa e o espinho
a sombra no seu desvão
Entre o fuso e o enigma
a navalha entreaberta
e os nevoeiros secretos
Somos corsárias
sonhando
nas areias dos desertos


Maria Teresa Horta

Eu nunca fiz senão sonhar



Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim pude esquecer-me na visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam — quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes de paisagem — uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez — com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo — mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no Inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boêmia, pitoresca e humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes. (Poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições — irrealizada infelizmente!) Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, numa atração... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.
Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado, que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida..., isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trêmulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.
A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus, que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente, independente da minha consciência deles!
Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está guardado em minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida real morta que fito, solene, no seu caixão.
Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas — passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais, desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado com a direção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço íntimo que entretém essas pobres realidades...
Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... É cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de antes, para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo fato de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum exceto Deus.


Bernardo Soares, Livro do Desassossego - Vol.I. Fernando Pessoa

Gazel do Amor Desesperado

Rob Hefferan


A noite não quer vir 
para que tu não venhas, 
nem eu possa ir. 

Mas eu irei, 
inda que um sol de lacraus me coma a fronte. 

Mas tu virás 
com a língua queimada pela chuva de sal. 

O dia não quer vir 
para que tu não venhas, 
nem eu possa ir. 

Mas eu irei 
entregando aos sapos meu mordido cravo. 

Mas tu virás 
pelas turvas cloacas da escuridade. 

Nem a noite nem o dia querem vir 
para que por ti morra 
e tu morras por mim. 


Federico García Lorca

Lago



No lago dos desejos
teu corpo flutua.
Entrelaço teu nome no meu,
trança mágica
com que me alimento.

Roseana Murray
Shaun Stubley


Todo dia arranco 
o véu do rosto 

A roupa de baixo, 
a pele das coisas 

Olho os cantos 
e varro os quartos 

Morro um pouco 
e enterro pedaços


Viviane Mosé

Canção

Radmila Dimitrovska



Viver não dói. O que dói 
é a vida que se não vive. 
Tanto mais bela sonhada, 
quanto mais triste perdida. 

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora. 

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez, 
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos. 

Viver não dói. O que dói, 
ferindo fundo, ferindo, 
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido. 

Que tudo o mais é perdido. 


Emílio Moura

No teu rosto

Joseph McSween

No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego


Mia Couto

Solombra

pino-daeni


Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.

Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza.
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.

Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.

Pelos mundos do vento, em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:

“Agora és livre, se ainda recordas.”


Cecília Meireles

Não se de amor senão

Henri Rondel


Não sei de amor senão o amor perdido
O amor que só se tem de nunca o ter
procuro em cada corpo o nunca tido
e é esse que não para de doer.
Não sei de amor senão o amor ferido
de tanto te encontrar e te perder.

Não sei de amor senão o não ter tido
teu corpo que não cesso de perder
nem de outro modo sei se tem sentido
este amor que só vive de não ter
o teu corpo que é meu porque perdido
não sei de amor senão esse doer.

Não sei de amor senão esse perder
teu corpo tão sem ti e nunca tido
para sempre só meu de nunca o ter
teu corpo que me dóis no corpo ferido
onde não deixou nunca de doer
não sei de amor senão o amor perdido.

Não sei de amor senão o sem sentido
deste amor que não morre por morrer
o teu corpo tão nu nunca despido
o teu corpo tão vivo de o perder
neste amor que só é de não ter sido
não sei de amor senão esse não ter.

Não sei de amnor senão o não haver
amor que dure mais que o nunca tido.
Há um corpo que não pára de doer
só esse é sempre meu de nunca o ser
não sei vde amor senão o amor ferido.

Não sei de amor senão o tempo ido
em que amor era amor de puro arder
tudo passa mas não o não ter tido
o teu corpo de ser e de não ser
só esse é meu por nunca ter ardido
não se de amor senão esse perder.

Cintilante na noite um corpo ferido
só nele de o não ter tido eu hei-de arder
não sei de amor senão amor perdido.


Manuel Alegre 

Razão de ser






Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,






Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?


Paulo Leminski
imagens:  Samuel Luke Fildes

sexta-feira, 19 de julho de 2013

 Lauri Blank


Hoje de manhã saí muito cedo, 
Por ter acordado ainda mais cedo 
E não ter nada que quisesse fazer... 

Não sabia por caminho tomar 
Mas o vento soprava forte, varria para um lado, 
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas. 

Assim tem sido sempre a minha vida, e 
assim quero que possa ser sempre — 
Vou onde o vento me leva e não me 
Sinto pensar. 


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 


Canção em campo vasto

Eric Montoya 


Deixa-me amar-te com ternura, tanto 
que nossas solidões se unam, 
e cada um falando em sua margem 
possa escutar o próprio canto. 

Deixa-me amar-te com loucura, ambos 
cavalgando mares impossíveis 
em frágeis barcos e insuficientes velas, 
pois disso se fará a nossa voz. 

Ajuda-me a amar-te sem receio: 
a solidão é um campo muito vasto 
que não se deve atravessar a sós.


Lya Luft
In Secreta Mirada, 1997

Samba-Canção

Ennio Montariello


Tantos poemas que perdi. 
Tantos que ouvi, de graça, 
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar, 
fui mulher vulgar, 
meia-bruxa, meia-fera, 
risinho modernista 
arranhando na garganta, 
malandra, 
vândala, 
talvez maquiavélica, 
e um dia emburrei-me, 
vali-me de mesuras 
era uma estratégia
(fiz comércio, avara, 
embora um pouco burra, 
porque inteligente me punha 
logo rubra, ou ao contrário, cara 
pálida que desconhece 
o próprio cor-de-rosa, 
e tantas fiz, talvez 
querendo a glória, a outra 
cena à luz de spots, 
talvez apenas teu carinho, 
mas tantas, tantas fiz...

Ana Cristina César

Educação na Sociedade do Conhecimento

Para uma mulher independente



Deixe que eu seja gentil. Deixe que puxe a cadeira, espere um pouco, minhas mãos estão chegando ao espaldar, deixe que abra a porta, me dê tempo, minhas mãos estão pousando na maçaneta. Deixe que eu seja gentil, que eu me antecipe a seus incômodos, que procure facilitar suas palavras, que ajude a expressar sua vontade, que concorde com seu silêncio. Deixe que eu seja gentil, meu amor. Minha gentileza não é ditadura. Minha gentileza não é imposição.

Não desejo mandar em você, e sim mostro que não há meu medo de ser dominado.

Deixe que eu dê colo, faça cafuné, massagem nos pés, me mantenha acordado até que durma.

Deixe que eu seja gentil, que tenha a capacidade de adivinhar quando se emocionou ou não, que responda ataques e indelicadezas. Sei que pode se defender sozinha. Não estou lhe chamando de frágil.

Deixe que eu seja gentil, que aceite meu casaco nos ombros no fim da noite, que aceite meu elogio no início do dia.

Deixe que seja gentil, que eu cozinhe seu prato predileto, que arrume a cama, lave a louça e que você não tema a mesura, não pense em conspiração.

Gentileza não é favor. Gentileza não guarda recibo.

Não peço nada em troca, não protesto recompensa. A gentileza é de graça. A gentileza não tem caminho de volta.

Deixe que eu seja gentil, que pague a conta do restaurante, adquira um vestido. Não estou lhe corrompendo, não estou lhe comprando.

Gentileza não é suborno, gentileza não é chantagem.

Não me culpe por ser gentil. Não me entenda errado. Não pretendo controlá-la, logo eu que mal me domino.

Deixe que seja gentil, mimar não é estragar, a grosseria é que destrói.

Deixe que eu seja gentil. Que eu possa tirar seus sapatos, e guardá-los nas gavetas.

Não é machismo, amor, não é machismo cuidar de você. Sei que se vira sozinha desde adolescência, que não precisa de ninguém, nem de meus olhos assustados por um sim.

Mas deixe que eu seja gentil. Que eu possa acompanhá-la até o toalete durante a festa, que possa aguardá-la na saída. Gentileza é se preocupar antes de qualquer problema.

Deixe que eu seja gentil, deixe que seja sua sombra mais frondosa.

Respeitar é jamais esquecer que você está ao meu lado. Sou gentil por saudade antecipada.

Deixe que pego mais coberta, que fecho a janela, que atendo ao interfone e telefone.

Deixe ser sua audição mais apurada: a luz se acende inclusive para os ouvidos.

Não elimine o que recebi de meus pais. A paciência das pequenas urgências.

Deixe que eu seja gentil, não ofereço porque pedia, não irei cobrar.

Gentileza é escolha. Gentileza é destino.

Deixe que eu seja gentil, vou perguntar muitas vezes ao dia como está, não canse de me responder.

Deixe que eu seja gentil, que eu segure seu guarda-chuva, que eu busque um copo de água de madrugada, que eu dobre suas roupas e lembre qual o momento de acordar. Não apague minha educação. Não estou dizendo que você é inútil, só quero ser gentil.

Não estou dizendo que depende de mim, amor, que não valorizo sua liberdade,

Deixe eu ser também você.


Fabrício Carpinejar
Publicado na Revista IstoÉ Gente
Maio 2013 Ano 13 Número 697 Página 80

Particularidades

Maria Jolanta Gruza 

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão, torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... os pelos...

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, aos boás, à pelica...

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

Gilka Machado

Sung Kim