terça-feira, 28 de março de 2023

 


A esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”

– Espinosa, Ética III, definição dos afetos

domingo, 26 de março de 2023

Claude Monet


 “Do it, or don't do it, but get on with it...”

~J. Krishnamurti

 


E se às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um fosso, na solidão triste do seu quarto, você acorda, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunte que horas são e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio lhe responderão: “É hora de embriagar-se!

Charles Baudelaire


 "É possível impor silêncio ao sentimento; não é, porém, possível marcar-lhe limites."

Suzanne Necker

 


“Eu gosto de delicadeza. Seja nos gestos, nas palavras, nas ações, no jeito de olhar, no dia-a-dia e até no que não é dito com palavras, mas fica no ar...” 

Manuel Bandeira




 “Everybody has a secret world inside of them. I mean everybody. All of the people in the whole world, I mean everybody — no matter how dull and boring they are on the outside. Inside them they've all got unimaginable, magnificent, wonderful, stupid, amazing worlds... Not just one world. Hundreds of them. Thousands, maybe.”

― Neil Gaiman, The Sandman Vol. 5: A Game of You

"Couple", de Aldo Balding


Ofereci-te tanta coisa. A mais preciosa, aquela que há muitos anos não dava a ninguém - a mais preciosa, repito, foi a minha absoluta disponibilidade para estar contigo, ouvir-te, ou estar em silêncio perto de ti.

Al Berto, no livro "Diários".


 


Beware of Destination Addiction—a preoccupation with the idea that happiness is in the next place, the next job, or with the next partner. Until you give up the idea that happiness is somewhere else, it will never be where you are. 

~Robert Holden

domingo, 12 de março de 2023

Invocação ao amor



Pedir-te a sensação

a água

o travo

aquele odor antigo

de uma parede

branca

Pedir-te da vertigem

a certeza

que tens nos olhos

quando me desejas

Pedir-te sobre a mão

a boca inchada

um rasto de saliva

na garganta

Pedir-te que me dispas

e me deites

de borco e os meus seios

na tua cara

Pedir-te que me olhes

e me aceites

me percorras

me invadas

me pressintas


Pedir-te que me peças

que te queira

no separar das horas

sobre a língua


Maria Teresa Horta 

A Montanha Mágica

Claude Monet

De que falava, afinal, o Dr. Krokowski? Que tema estava desenvolvendo? Hans Castor procurou concentrar seu espírito, a fim de apanhar o fio da palestra, porém não o conseguiu imediatamente, visto não ter ouvido o princípio e ter perdido ainda outras passagens, depois, ao refletir acerca das costas lassas de Mme Chauchat. Tratava-se de uma potência... daquela potência... Numa palavra, tratava-se da potência do amor, “Liebe”. Claro! O assunto estava indicado pelo título geral do ciclo de conferências, e de que mais poderia falar o Dr. Krokowski, desde que esta era a sua especialidade? Verdade é que parecia um tanto estranho a Hans Castorp assistir, assim subitamente, a uma preleção sobre o amor, já que os cursos que ele seguira antes haviam-se ocupado apenas de assuntos como a transmissão de rodas denteadas nas construções náuticas. Como se arranjava o conferencista para expor em pleno dia, a um público de cavalheiros e senhoras, um assunto de natureza tão confidencial e espinhosa? O Dr. Krokowski expunha-o num linguajar misto, entre poético e erudito, rigorosamente científico e, ao mesmo tempo, vibrante como um hino. Esse tom despertava no jovem Hans Castorp a impressão de uma certa falta de ordem, mas talvez fosse justamente ele o que esquentava as faces das damas e fazia os senhores cocarem as orelhas Em particular, o orador empregava o termo “Liebe” num sentido levemente ambíguo, de modo que nunca ficava claro o que se devia pensar das suas palavras, nem se elas se referiam a um sentimento piedoso ou a uma paixão carnal; vacilação que produzia uma espécie de enjoo. Nunca na vida ouvira Hans Castorp pronunciar esse vocábulo tantas vezes seguidas como nessa hora e nesse lugar, e ao refletir sobre esse fato, até achava que ele próprio jamais se servira dessa palavra e nem a ouvira de boca estranha. Talvez estivesse errado, mas, em todo caso, não lhe parecia que o vocábulo “Liebe” ganhasse com tanta repetição.

Pelo contrário, essa sílaba e meia, já em si um tanto escabrosa, com as consoantes lingual e labial, e com a vogal balante no meio, acabou por se lhe tornar bastante repelente. Ligava-se a ela uma representação parecida com leite aguado, qualquer coisa entre branco e azulado, tanto mais insípida em comparação com todas as ideias vigorosas que o Dr. Krokowski estava apresentando a seu respeito. Pois era evidente que, na forma que ele usava, podiam-se dizer coisas bem fortes sem que o público saísse da sala. Absolutamente não se limitava a discutir, com uma espécie de tato inebriante, assuntos comumente conhecidos, mas nos quais a maioria das pessoas prefere não tocar. Destruía ilusões; implacavelmente fazia prevalecer o conhecimento; não deixava espaço para a fé sentimental na dignidade dos cabelos prateados ou na pureza angélica da criança tenra. Trazia, aliás, com a sobrecasaca, o mesmo tipo de colarinho amplo e as sandálias por cima das meias cinzentas, o que dava uma impressão de idealismo e princípios firmes, se bem que Hans Castorp se assustasse um pouco com esse aspecto. Valendo-se de livros e folhas soltas, espalhadas sobre a mesa, documentava o Dr. Krokowski as suas exposições por meio de toda espécie de paradigmas e anedotas, chegando até, às vezes, a recitar versos. Discursava acerca das formas tenebrosas do amor e das variedades excêntricas, dolorosas e sinistras, da sua índole e da sua onipotência. Entre todos os instintos existentes na natureza – disse ele – era o amor o mais vacilante e o mais ameaçado, fundamentalmente propenso à aberração e à perversão fatal. Nesse fato não havia nada de surpreendente, uma vez que esse impulso poderoso não era uma coisa simples, senão que infinitamente composta por natureza. Por mais legítimo que ele parecesse no seu conjunto, o que o compunha era justamente uma série de perversões. Mas, desde que acertadamente – assim continuou o conferencista –, desde que com muita razão se negava que do absurdo das partes fosse deduzido o absurdo do todo, era inevitável a conclusão que atribuía parte daquela legitimidade do todo, senão toda ela, também à perversão que compunha esse todo.

Era isso uma exigência da lógica, da qual, segundo o orador, os ouvintes deviam compenetrar-se. Havia resistências íntimas e corretivos psíquicos, instintos decentes e coordenadores, de um caráter que o Dr. Krokowski quase se sentia tentado a qualificar de burguês, e sob o efeito compensador e restritivo desses instintos as partes perversas eram fundidas num todo útil e irrepreensível; processo frequente e simpático, cujo resultado, porém (como o orador acrescentou com certo desdém), não tinha nenhuma importância para o médico e o filósofo. Em outros casos, entretanto, malograva o referido processo; não havia jeito de levá-lo a bom termo. E quem – assim perguntou o Dr. Krokowski -seria capaz de dizer se esses últimos casos não eram os mais nobres, os psicologicamente mais valiosos? Existia então uma tensão extraordinária, uma paixão que ultrapassava as medidas habituais, burguesas, e essa tensão se fazia sentir entre os dois grupos de forças que eram a necessidade de amor e os impulsos contrários, dentre os quais cumpria mencionar a vergonha e o asco. Travada nos abismos da alma, essa luta impedia, nos ditos casos, que os instintos extraviados chegassem a ser abrigados, protegidos e moralizados, daquele modo que conduzia à harmonia usual e à vida erótica regular. E como terminava esse combate – pois tratava-se de um combate – entre as potências da castidade e do amor? Terminava, aparentemente, com a vitória da castidade. O medo, as conveniências, a repugnância pudica, o trêmulo desejo de pureza – todos eles oprimiam o amor, mantinham-no agriIhoado, nas trevas, davam acesso à consciência e à atividade, quando muito a uma parte, jamais, porém, ao todo múltiplo e vigoroso das suas reivindicações confusas. No entanto, essa vitória da castidade não era mais que aparente, não passava de uma vitória de Pirro, pois a potência do amor não se deixava reprimir nem violentar, o amor oprimido não estava morto, não; vivia, continuava, nas revas, no mais profundo segredo, a almejar a sua realização, rompia o círculo mágico da castidade e ressurgia, ainda que sob forma metamorfoseada, dificílima de reconhecer... E qual era, afinal, a forma e a máscara que usava o amor vedado e oprimido na sua reaparição? Assim perguntou o Dr. Krokowski, e deixou o seu olhar passar ao longo das filas, como se esperasse seriamente uma resposta dos seus ouvintes. Ora, essa resposta teria de ser dada por ele mesmo, que já dissera tantas outras coisas. Ninguém, exceto ele, sabia-a; mas ele não falharia, isso se notava na sua expressão. Com os seus olhos ardentes, sua palidez de cera, sua barba negra, e as sandálias de monge por cima das meias de lã cinzenta, parecia simbolizar, na sua própria pessoa, aquela luta entre a castidade e a paixão de que acabava de falar. Ao menos era essa a impressão de Hans Castorp, enquanto, como todos os demais, esperava com suma curiosidade ficar sabendo sob que forma voltava o amor rechaçado. As mulheres mal se atreviam a respirar. O Promotor Paravant mais uma vez coçou a orelha, para que, no instante decisivo, ela se tornasse aberta e acolhedora. Eis o que disse o Dr. Krokowski:

– Sob a forma de doença. O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado.

Agora sabiam o segredo, se bem que nem todos fossem capazes de apreciá-lo devidamente. Um suspiro percorreu a sala, e o Promotor Paravant meneou a cabeça num gesto significativo de aprovação, enquanto o Dr. Krokowski prosseguia desenvolvendo a sua tese.

Hans Castorp, por sua vez, baixou a cabeça, a fim de refletir sobre o que ouvira e de perguntar-se a si próprio se compreendera. Mas ele tinha pouca prática nesse tipo de exercícios mentais e, além disso, pouca presença de espírito, devido àquele passeio infeliz. Assim, sua atenção distraía-se facilmente, e de fato se concentrou logo nas costas de Mme.. Chauchat, que ele via à sua frente, bem como no braço que se elevava e inclinava para trás, para que a mão, diante dos olhos de Hans Castorp, sustentasse, de baixo, os cabelos em trança.

Era angustiante ter essa mão tão perto dos olhos. Quisesse ele ou não, tinha de olhá-la, estudá-la com todos os defeitos e particularidades humanas que lhe eram inerentes, como se ela estivesse sob uma lente. Não, não havia nada de aristocrático nessa curta mão de colegial, com as unhas aparadas de qualquer jeito. Nem sequer se tinha certeza de que estivesse perfeitamente limpa nos nós dos dedos, e a pele ao lado das unhas estava roída – a esse respeito não existia a menor dúvida. Hans Castorp fez uma careta, e todavia os seus olhos continuaram fixos na mão de Mme.. Chauchat. Passou-lhe pelo cérebro uma vaga e incompleta lembrança daquilo que dissera o Dr. Krokowski sobre as resistências burguesas que se opunham ao amor... O braço era  mais belo, esse braço suavemente dobrado atrás da cabeça, e quase desnudo, já que a fazenda das mangas, uma levíssima cambraia, era mais fina do que a da blusa, de maneira que apenas propiciava uma espécie de vaporosa auréola ao braço, que sem ela talvez fosse menos gracioso.

Era ele ao mesmo tempo delicado, gordo e -segundo todas as probabilidades – frio ao tato. No que lhe dizia respeito, absolutamente não entravam em ação as referidas resistências burguesas. Hans Castorp sonhava, os olhos fitos no braço de Mme.. Chauchat. Como se vestiam essas mulheres! Mostravam isso e aquilo da nuca e do peito; glorificavam os braços por meio de gaze transparente... Agiam assim em todo o mundo para excitar o desejo ansioso dos homens.

Deus do Céu, que bela era a vida! Era bela justamente pela naturalidade com que as mulheres se vestiam de um modo tão sedutor; pois isso era mesmo natural e de tal forma comum, tão geralmente admitido, que a gente mal o notava e o tolerava inconscientemente, sem fazer grande caso. Mas cumpria pensar nisso – ponderou Hans Castorp – para encontrar um genuíno prazer na vida e não se esquecer que tal modo de trajar era uma instituição deliciosa e, no fundo, quase feérica. Claro que havia uma finalidade definida no fato de as mulheres terem o direito de se vestir dessa forma maravilhosa e mágica, sem que, com isso, infringissem as regras da decência: tratava-se da próxima geração, da procriação da raça humana; sim, senhor! Mas quando a mulher estava interiormente enferma, quando não era, de maneira alguma, apta para a maternidade – que dizer então? Haveria ainda algum sentido no uso de mangas de gaze que despertassem a curiosidade dos homens quanto a um corpo interiormente carcomido? Era evidente que isso era absurdo e deveria ser considerado pouco correto e até mesmo proibido. Pois no interesse de um homem por uma mulher enferma havia tão pouco sentido quanto... bem, quanto houvera naquele interesse silencioso que Hans Castorp sentira por Pribislav Hippe. Essa comparação não deixava de ser estúpida, e a reminiscência, um tanto penosa. Mas elas se haviam apresentado espontaneamente, sem que ninguém as chamasse. De resto, os seus sonhos foram interrompidos nesse ponto, sobretudo porque a sua atenção se sentiu novamente atraída pelo Dr. Krokowski, cuja voz se elevara de forma impressionante. Realmente, lá atrás da mesinha estava ele, com os braços abertos e a cabeça obliquamente inclinada, e apesar da sobrecasaca parecia-se com um Cristo na cruz!

Patenteou-se que o Dr. Krokowski, pelo fim da sua conferência, fazia intensa propaganda a favor da dissecação das almas, e com os braços abertos convidava todo mundo para vir a ele. Vinde a mim todos os que estão aflitos e carregados de culpa, disse o orador, embora com outras palavras. E não deixou nenhuma dúvida quanto à sua convicção conforme a qual todos, sem exceção, estavam nessas condições. Falou ainda do sofrimento oculto, do pudor e da mágoa, e dos efeitos benfazejos da análise; celebrou a iluminação do inconsciente, preconizou a reconversão da doença em um sentimento consciente, exortou à confiança e prometeu a cura. A seguir deixou cair os braços, ergueu a cabeça, juntou a papelada de que se servira durante a conferência, apanhou a pilha com a mão esquerda, e apertando-a ao ombro direito, com um gesto tipicamente professoral, afastou-se pelo corredor.

Todos se levantaram, empurrando as cadeiras para trás, e começaram a dirigir-se lentamente para a mesma saída pela qual o doutor abandonara a sala. Era como se todos, num movimento concêntrico, convergissem para ele, de todos os lados, hesitantes, involuntariamente, e todavia numa unanimidade surda, como a multidão que seguia atrás do flautista de Hamelin.

Hans Castorp permaneceu parado no meio da torrente, agarrando com a mão o espaldar da sua cadeira. “Estou aqui só de visita”, pensou. “Ando bem de saúde e, graças a Deus, essas coisas não me dizem respeito. Quando se realizar a próxima conferência, já não estarei aqui...” Viu como Mme.. Chauchat saía a passo arrastado, com a cabeça caída para a frente. “Será que ela também se submete ao bisturi do analista?”, pensou, enquanto o seu coração se punha a martelar...


Thomas Mann, A Montanha Mágica 

O Livro do Desassossego [46]


Gustave caillebotte man-at-the-window

Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade…

“Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.”

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida.

Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

“Sou do tamanho do que vejo!” Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. “Sou do tamanho do que vejo!” Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se refletem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objetiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando.

“Sou do tamanho do que vejo!” E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade largal aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. “Sou do tamanho do que vejo!” E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O livro do desassossego

O Livro do Desassossego [49]

fabian perez

O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa — de uma só pessoa que seja — atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contato com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contato é um contraestímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho.

Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contato com outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A ideia de uma obrigação social qualquer — ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida —, só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.

“Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens”; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie — não poderei talvez dizer da minha raça.


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O Livro do Desassossego

O livro do desassossego [50]

 James Hart Dyke.

Espaçado, um vaga-lume vai sucedendo-se a si mesmo. Em torno, obscuro, o campo é uma grande falta de ruído que cheira quase bem. A paz de tudo dói e pesa. Um tédio informe afoga-me.

Poucas vezes vou ao campo, quase nenhumas ali passo um dia, ou de um dia para outro. Mas hoje, que este amigo, em cuja casa estou, me não deixou não aceitar o seu convite, vim para aqui cheio de constrangimento — como um tímido para uma festa grande —, cheguei aqui com alegria, gostei do ar e da paisagem ampla, almocei e jantei bem, e agora, noite funda, no meu quarto sem luz o lugar vago enche-me de angústia.

A janela do quarto onde dormirei deita para o campo aberto, para um campo indefinido, que é todos os campos, para a grande noite vagamente constelada onde uma aragem que se não ouve se sente. Sentado à janela, contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal que está lá fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta, desde a invisibilidade visível de tudo até à madeira vagamente rugosa de ter estalado a tinta velha do parapeito branquejante, onde está estendidamente apoiada de lado a minha mão esquerda.

Quantas vezes, contudo, não anseio visualmente por esta paz de onde quase fugiria agora, se fosse fácil ou decente! Quantas vezes julgo crer — lá em baixo, entre as ruas estreitas de casas altas — que a paz, a prosa, o definitivo estariam antes aqui, entre as coisas naturais, que ali onde o pano de mesa da civilização faz esquecer o pinho já pintado em que assenta! E, agora, aqui, sentindo-me saudável, cansado a bem, estou intranquilo, estou preso, estou saudoso.

Não sei se é a mim que acontece, se a todos os que a civilização fez nascer segunda vez. Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho. Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente. Dispenso e detesto veículos, dispenso e detesto os produtos da ciência — telefones, telégrafos — que tornam a vida fácil, ou os subprodutos da fantasia — gramofonógrafos, receptores hertzianos — que, aos a quem divertem, a tornam divertida.

Nada disso me interessa, nada disso desejo. Mas amo o Tejo porque há uma cidade grande à beira dele. Gozo o céu porque o vejo de um quarto andar de rua da Baixa. Nada o campo ou a natureza me pode dar que valha a majestade irregular da cidade tranquila, sob o luar, vista da Graça ou de São Pedro de Alcântara. Não há para mim flores como, sob o sol, o colorido variadíssimo de Lisboa.

A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia.

A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. O que gozei destes campos vastos, gozei-o porque aqui não vivo. Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido.

A civilização é uma educação de natureza. O artificial é o caminho para uma apreciação do natural.

O que é preciso, porém, é que nunca tomemos o artificial por natural.

É na harmonia entre o natural e o artificial que consiste a naturalidade da alma humana superior.


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O Livro do Desassossego

 Christian Schloe

Filósofos e estudiosos do ser humano já nos ensinaram há muito que nos equivocamos em tomar nossa inteligência como um poder autônomo e ignorar sua dependência da vida afetiva. Nosso intelecto, segundo eles, só pode trabalhar confiavelmente se estiver a salvo das ingerências de poderosos impulsos afetivos; caso contrário ele se comporta como um simples instrumento nas mãos de uma vontade, fornecendo o resultado que esta o incumbiu de obter. Portanto, argumentos lógicos são impotentes em face de interesses afetivos, e por isso a disputa com argumentos, que na frase de Falstaff são abundantes como as amoras, é tão infrutífera no mundo dos interesses. A experiência psicanalítica enfatizou ainda mais, se é possível, tal afirmação. Ela pode demonstrar diariamente que as pessoas mais argutas subitamente se comportam como imbecis, tão logo o discernimento buscado se defronta com uma resistência emocional, mas também voltam a compreender tudo quando essa resistência é superada. A cegueira lógica que essa guerra, como que por magia, produziu justamente em muitos de nossos melhores cidadãos, é portanto um fenômeno secundário, uma consequência da excitação de afetos, destinada, assim esperamos, a desaparecer com ela.

Sigmund Freud

sábado, 11 de março de 2023

Escuta, Zé Ninguém

 



 Para que o estimasses e te caísse em graça, o grande homem teria de se adaptar ao teu modo de ser, Zé Ninguém, falar como tu e gabar-se das mesmas virtudes. A verdade é que se ostentasse as tuas virtudes, falasse a tua linguagem e gozasse da tua amizade não mais seria grande, autêntico ou simples. Prova é que os teus amigos que dizem exatamente o que esperas que eles digam nunca foram grandes homens. Tu não acreditas que qualquer amigo teu possa conseguir o que quer que seja de grande. No mais intimo de ti próprio, desprezas-te, mesmo quando – ou particularmente quando – gabas mais da tua dignidade; e se te desprezas, como poderias respeitar os teus amigos? Nunca poderias acreditar que quem quer fosse que se sentasse à tua mesa ou vivesse na mesma casa contigo pudesse realizar o que quer que fosse de grandioso. Perto de ti é difícil pensar, Zé Ninguém. É apenas possível pensar acerca de ti, nunca contigo. Porque tu sufocas qualquer pensamento original. Tal como uma mãe, tu dizes às crianças que exploram o seu mundo: “Isso não é próprio para crianças”. Como um professor de biologia, dizes: “Isso não é coisa para bons alunos. O quê, duvidar da teoria dos germes do ar?” Como um professor primário, dizes: “As crianças são para ser vistas, e não para se ouvirem”. Como uma mulher casada, dizes: “Há! A investigação! Eu e a tua investigação! Porque é que não vais para um escritório, como toda a gente, ganhar decentemente a tua vida?” Mas sobre o que se escreve nos jornais tu acreditas, quer percebas quer não. Garanto-te, Zé Ninguém, que perdeste o sentido do que mais vale em ti mesmo. Morre de sufocação às tuas mãos, em ti e onde quer que o encontres nos outros, nos teus filhos, na tua mulher, no teu marido, no teu pai e na tua mãe. Tu és medíocre e queres continuar a sê-lo. Perguntas-me como sei eu tudo isto? Eu digo-te: Conheço-te. Experimentei-te e experimentei-me contigo. Como terapeuta libertei-te da tua mesquinhez, como educador orientei-te no sentido da espontaneidade, da confiança. Sei como te defendes da espontaneidade, sei o terror que te toma quando te pedem que sejas tu próprio, autêntico e genuíno.

Wilhelm Reich , Escuta, Zé Ninguém! 

Um sopro de vida

Zoltan-Hornyik

A diferença entre mim e Ângela se pode sentir. Eu enclausurado no meu pequeno mundo estreito e angustiante, sem saber como sair para respirar a beleza do que está fora de mim. Ângela, ágil, graciosa, cheia do badalar de sinos. Eu, parece que amarrado a um destino. Ângela com a leveza de quem não tem um fim.

Ângela está continuamente sendo feita e não tem nenhum compromisso com a própria vida nem com a literatura nem com qualquer arte, ela é desproposital.

Ângela se consola de existir pensando: "eu pelo menos tenho a vantagem de ser eu, e não uma outra pessoa estranha qualquer".

Eu desbravo Ângela. Tenho que transpor montanhas e áreas desoladas, batidas por ciclônicas tempestades, inundadas por chuvas torrenciais e crestadas sob um alto e voraz sol inclemente como a justiça ideal. Eu percorro essa mulher como um trem fantasma, por colinas e vales, através de cidades adormecidas. Minha esperança é encontrar o esboço de uma resposta. Avanço com cuidado.


Um sopro de vida, Clarice Lispector

A sociedade do espetáculo

 

Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em torno de uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efetiva condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem identificada com a concretização integral do movimento. Bakunin podia pois escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: "Nos últimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar o mundo, se só por si as ideias pudessem salvá-lo, e desafio quem quer que seja a inventar uma nova. O tempo já não está para ideias, mas para fatos e atos". Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não variarão mais.

Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica, vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, dos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, em regra geral, tanto mais medíocres quanto a sua atividade intelectual se reduz principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes a autoridade incontrolada, na própria organização, de especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo libertado o mesmo gênero de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das condições entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente separarão dos anarquistas no momento da decisão comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha, limitadas e esmagadas num plano local.

A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente.

O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de sempre, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não tinha sido concluída nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou de outros partidos operários estatalistas no campo da República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e até mesmo de as defender. Os seus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para perder a guerra civil.

Guy Debord, a Sociedade do Espetáculo