quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024


 […] escrever é essa explosão de dizer as coisas como eu acho que elas têm que ser ditas, completamente, para passar para o outro a intensidade, a perplexidade do ser humano completamente incendiado de emoções, de procuras, perguntas e buscas.

Tenho muito medo, tenho pânico das situações-limite. Acho que eu escrevo sobre elas para me exorcizar. A paixão, a morte, o perguntar-se. Tenho muito medo de mim também, por isso escrevo. Escrever é ir em direção a muitas vidas e muitas mortes.

Sou alguém sobre quem as pessoas falam, mas meus livros não são lidos. As pessoas me diziam: “Escuta, você não é conhecida porque ninguém te vê. Você não está fazendo como devia ser feito”. Eu não tenho nenhuma vontade de me colocar nestas situações: ser poeta e dar conferências, falar sobre si mesmo, sobre o trabalho que fazemos, não! Isso me enche o saco. As pessoas manipulam, pedem para você se produzir, porque você é um escritor, e eu me recuso a fazer isso, me recuso. Posso parecer uma estúpida, mas meu trabalho é sagrado. Eu escrevo. Que me deixem escrever, então. Ao mesmo tempo, a poesia me proporcionou grandes alegrias nesses momentos em que eu parecia ter encontrado a forma exata de traduzir esse resíduo, a essência da emoção. Mas é verdade que isso teve muito pouco eco.

Você fica mesmo com febre quando a poesia acontece. Durante alguns dias você fica tomado por alguma coisa que você não sabe o que é, com uma espécie de febre interior. […] O primeiro verso é base para mim. Me vem o primeiro verso e depois, durante dias, vêm os outros, difíceis de trabalhar. Eu fico vermelha, passo mal. Acontece esse milagre.

Tive a felicidade de ter um pai louco completamente. Talvez, por isso até, eu tenha me tornado uma escritora. […] Esse homem, muito inteligente, ficou louco, quando eu era pequenina, com três anos de idade. Minha mãe já havia se separado dele e eu pude, então, reinventar um pai. Pude, também, ter coisas que ele escrevia. Ele foi um crítico, um poeta. Uma pessoa rara e fascinante. Com suas fotografias todas, com tudo o que eu lia do que ele havia escrito, fiquei uma edipiana furiosa. E foi uma maravilha. […] A loucura sempre me fascinou muito. Não a loucura terrível, onde existe um sofrimento definitivo como foi o caso dele, que passou a vida toda louco, morrendo com quase setenta anos. Mas me fascinaram sempre as pessoas que, de repente, começam a pensar coisas que nunca ninguém pensou.

Eu fico besta. Ninguém me lê, nesses quase cinquenta anos foi assim, e me descobriram só agora, que estou quase morrendo. Eu ouço dizer muito que as pessoas não me entendem, e quando alguém me entende eu fico besta, porque não sei como é que é escrever compreensivelmente.

Meus poemas nascem porque precisam nascer. Nascem do inconformismo. Do desejo de ultrapassar o Nada. As emoções sentimentais raramente inspiram a minha poesia, que quase sempre surge de um problema maior – o problema da morte, morte não no sentido metafísico de tudo quanto possa advir depois de acontecida. O que faz nascer a minha poesia é a não aceitação de que um dia a vida se diluirá e, com ela, o amor, as emoções do sonho e toda essa força em potencial que vive dentro de nós.

Cada escritor tem um processo de criação. “Para você ser poeta, você precisa estudar?” É uma coisa que perguntam muito. Porque há toda uma teoria de que a espontaneidade é muito importante. Eu me lembro – e repito isto porque gosto muito – de uma frase que escreveram numa universidade americana: “Qualquer cretino pode ser espontâneo”. Na verdade, para fazer uma literatura que seja considerada essencial, você precisa ler muitíssimo, estudar muitíssimo e, só depois de muitos anos, é que você fica mesmo apta a trabalhar. […] O processo demora muitos anos; quinze, vinte anos, para de repente se poder dizer: “Agora acho que está bem, que eu consegui o melhor de mim”. E tem muito a ver também com o processo intuitivo. É a logicidade, sua escolaridade e o processo intuitivo também.


Hilda Hilst

Elogio da transitoriedade

Os senhores ficarão surpresos ao ouvir minha resposta à sua pergunta sobre aquilo em que acredito ou o que estimo estar acima de tudo: é a transitoriedade.

Mas a transitoriedade é muito triste, dirão os senhores. Não, replico eu, ela é a alma do ser, é o que confere valor, dignidade e interesse à vida, pois a transitoriedade produz o tempo – e o tempo é, ao menos potencialmente, a maior e a mais útil das dádivas, aparentada em sua essência ou, melhor, idêntica a tudo que é criador e ativo e vivaz, a toda vontade e esforço, a todo aperfeiçoamento, a todo progresso rumo ao melhor e ao mais elevado. Onde não há passado, começo e fim, nascimento e morte, ali não há tempo – e a atemporalidade é o nada estático, tão boa e tão ruim quanto este, quanto o absolutamente desinteressante.

Os biólogos estimam a idade da vida orgânica sobre a Terra em cerca de 550 milhões de anos. Ao longo desse tempo, a vida desenvolveu suas formas em inúmeras mutações até chegar ao homem, seu filho mais jovem e mais irrequieto. Ninguém saberia dizer se ainda está reservado à vida tanto tempo quanto já se passou desde o seu surgimento. Ela é muito tenaz, mas está presa a condições determinadas e, assim como teve um começo, também terá um fim. A habitabilidade de um corpo celeste é um episódio de sua existência cósmica. E se a vida completasse mais 550 milhões de anos – ainda assim, medido pelo metro dos éons, isso não seria mais que um interlúdio passageiro.

Ela perde por isso o seu valor? Ao contrário, penso eu, a vida ganha enormemente em valor e alma e interesse, torna-se propriamente cativante e desperta nossa simpatia por sua própria condição episódica – e, mais que tudo, por obra da condição misteriosa e indefinível que é a sua. Por seus componentes, não se distingue em nada de uma outra existência material qualquer. Quando se desligou do inorgânico, foi necessário que a ela se acrescentasse algo que nenhum laboratório até agora pôde fixar e compreender. E não parou aí. O homem destacou-se mais uma vez, desta feita do domínio animal – por obra da evolução, como se pretende, mas, na verdade, novamente por obra de um acréscimo que só se deixa capturar de modo deficiente com termos como “razão” e “cultura”. A elevação do homem acima do domínio animal, do qual muito ainda resta nele, é da escala e da importância de uma geração espontânea – a terceira, depois da criação do cosmo a partir do nada e do despertar da vida no seio da existência inorgânica.

Entre as características mais essenciais que distinguem o homem do resto da natureza está a consciência da transitoriedade, do começo e do fim e, portanto, da dádiva do tempo – desse elemento tão subjetivo, tão singularmente variável, tão inteiramente sujeito em seu uso à influência do elemento ético que uma partícula sua pode transformar-se em muita, muita coisa. Há corpos celestes de densidade tão incrível que uma polegada cúbica de sua matéria pesaria uma tonelada na Terra. Assim é o tempo do homem que cria: tem outra estrutura, densidade, fertilidade que o tempo da maioria, feito de trama mais frouxa e frágil; admirado com o muito que se acomoda nesse outro tempo, o mais dos homens pergunta: “Mas quando você faz tudo isso?”

A transitoriedade insufla alma ao ser, e isso se dá em grau máximo no homem. Não que ele seja o único a ter alma. Tudo tem alma. Mas a sua é a mais desperta, por conhecer a equivalência dos conceitos de “ser” e “transitoriedade”, por conhecer a dádiva do tempo. Ao ser humano é dado santificar o tempo, ver nele um campo fértil que clama por cultivo constante, concebê-lo como espaço da atividade, do esforço incessante, da autorrealização, do progresso rumo às suas mais altas possibilidades – ao homem é dado, com o auxílio do tempo, extrair o imperecível do transitório.

A astronomia, ciência grandiosa, ensinou-nos a considerar a Terra como uma estrela insignificante no gigantesco turbilhão do cosmo, uma estrelazinha secundária a vagar na periferia da própria Via Láctea. Tudo isso é sem dúvida correto em termos científicos – mas, ainda assim, duvido que a verdade se esgote nessa correção. No fundo da alma, acredito – e julgo que essa crença seja natural para toda alma humana – que cabe à Terra uma significação central na ordem do universo. No fundo da alma, guardo a suposição de que o “Faça-se” que criou o cosmo a partir do nada anorgânico e gerou a vida já mirava o homem, e de que com o homem teve início um grande ensaio. Um fracasso pelas mãos do homem equivaleria ao fracasso, à revogação de toda a criação.

Sendo ou não assim – seria bom que o homem se portasse como se assim fosse.

Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024



Vento, chuva, charco, tempo que cansa. Descanso,

cama, corpo, asa, leveza que voa. Encanto, lábios,

língua, excesso, beleza que inebria. Olhos, sonho,

sedução, perdição, luas que nos abraçam.

Outro dia.


JORGE C. FERREIRA

vicente romero

Até onde conseguimos discernir, o único propósito da existência humana é acender uma luz na escuridão da mera existência.

Carl Jung

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

 


Cá está ela, sim, íngreme

e sedenta

A poesia.


Ruy Pires Cabral, Morada

 


Quanto mais perco o meu nome mais me chamam, minha única missão secreta é a minha condição, desisto e quanto mais ignoro a senha mais cumpro o segredo.


Clarice Lispector

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

 


Com as palavras se podem multiplicar o silêncio.

Manoel de Barros 

 


'Creo que la melancolía es, en suma, un problema musical: una disonancia, un ritmo trastornado. Mientras afuera todo sucede con un ritmo vertiginoso de cascada, adentro hay una lentitud exhausta de gota de agua cayendo de tanto en tanto.'

Alejandra Pizarnik


 "Acho que a missão da mulher é assombrar, espantar. Se a mulher não espanta... De resto, não é só a mulher, todos os seres humanos têm que deslumbrar os seus semelhantes para serem um acontecimento. Temos que ser um acontecimento uns para os outros. Então a pessoa tem que fazer o possível para deslumbrar o seu semelhante, para que a vida seja um motivo de deslumbramento. Se chama a isso sedução, cumpri aquilo que me era forçoso fazer."

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Natália Correia 

Dizer, fazer


 Entre o que vejo e digo,

Entre o que eu digo e calo,

Entre o que eu calo e sonho.

Entre aqueles que sonho e esqueço.

Poesia.

Desliza entre o sim e o não:

diz o que eu calo, cala-te.

o que eu digo, sonhe.

o que eu esqueço.

Não é um dizer:

é um fazer.

É um fazer

O que é um ditado.

A poesia

Diz-se, ouve-se:

é real.

E quando digo que é real, dissipa.

Assim é mais real?

Ideia palpável, palavra.

impalpável:

poesia vai e vem

entre o que é e o que não é.

Tece reflexos e desmame-os.

A poesia

semeie olhos nas páginas

semeie palavras nos olhos.

Os olhos falam

as palavras olham,

os olhares pensam.

Ouvir pensamentos

ver o que dizemos

tocar o corpo

da ideia.

Os olhos estão se fechando

Palavras se abrem.


Octavio Paz, 

Dizer, fazer

omar ortiz

 

"Não há nada fixo na vida fugitiva, nem dor infinita, nem alegria eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resolução elevada que subsista ao longo da vida.

Tudo se dissolve com a corrente dos anos. Os minutos, os inúmeros átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes roedores que devastam tudo o que há de grande e ousado

Na vida humana nada é levado a sério. A poeira não vale a pena que algo assim seja feito com ele. "


As Dores do Mundo, Arthur Schopenhauer

 


Eu soube que ser amado não é nada, que amar, no entanto, é tudo. E eu pensei ver cada vez mais claro que o que torna a existência valiosa e 

agradável é o nosso sentimento e a nossa sensibilidade. Onde quer que eu visse na terra algo que pudesse ser chamado de "felicidade", esta era composta de sentimentos. O dinheiro não era nada, nem o poder. Via muitos que possuíam ambos e eram infelizes. A beleza não era nada; via homens e mulheres bonitos, que apesar de toda a sua beleza eram infelizes. A saúde também não contava muito. Cada um era tão saudável quanto se sentia; havia doentes que transbordavam de vitalidade até pouco antes do seu fim, e pessoas saudáveis que murchavam, angustiadas pelo medo de sofrer. A alegria, no entanto, estava sempre lá onde um homem tinha sentimentos fortes e vivia para eles, sem reprimi-los nem violá-los, mas cuidando e desfrutando deles. A beleza não fazia feliz aquele que a tinha, mas aquele que sabia amá-la e venerar.

Aparentemente havia sentimentos muito diferentes, mas no fundo todos eram um. Qualquer um deles pode ser chamado de vontade ou qualquer outra coisa. Eu chamo de amor. Alegria é amor e nada mais. Quem é capaz de amar é feliz. Todo movimento da nossa alma em que ela se senta e sente a vida é amor. Portanto, é feliz aquele que ama muito. No entanto, amar e desejar não é exatamente a mesma coisa. Amor é desejo feito sabedoria; amor não quer possuir, só quer amar. Por isso também era feliz o filósofo que mechava em uma rede de pensamentos o seu amor ao mundo e que o envolvia repetidamente com a sua rede amorosa. Mas eu não era filósofo.

Herman Hesse, Obstinação


 Se a linguagem não for usada com correção, então o que é dito não é o que se quer dizer, então aquilo que devia ser feito, deixa de sê-lo, se fica por fazer, a moral e a arte ficam corrompidas, a justiça age mal e, se a justiça age mal, o povo é reduzido a uma irremediável confusão. 

K'ung-fu-tzŭ (Confúcio), Os analectos


 


Tenha paciência com tudo o que fica por resolver no seu coração. Tente amar as perguntas em si, como quartos trancados e livros escritos em língua estrangeira. Não procure agora as respostas. Eles não podem ser dados agora porque você não podia vivê-los. É uma questão de viver tudo. De momento você precisa viver a questão. Talvez você gradualmente, sem sequer notar, se encontre experimentando a resposta, algum dia distante.

Rainer Maria Rilke, Cartas para um Jovem Poeta 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Michael and Inessa Garmash


 "A wonderful fact to reflect upon, that every human creature is constituted to be that profound secret and mystery to every other." 


Charles Dickens, A TALE OF TWO CITIES

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Um sopro de vida

 

ÂNGELA.- Viver me deixa trêmula. 


AUTOR.- A mim também a vida me faz estremecer. 

ÂNGELA.- Estou ansiosa e aflita. 

AUTOR.- Vejo que Ângela não sabe como começar. Nascer é difícil. Aconselho-a a falar mais facilmente sobre fatos? Vou ensiná-la a começar pelo meio. Ela tem que deixar de ser tão hesitante porque senão vai ser um livro todo trêmulo, uma gota d'água pendurada quase a cair e quando cai divide-se em estilhaços de pequenas gotas espalhadas. Coragem, Ângela, comece sem ligar para nada.

 ÂNGELA.- ...e me indago a mim mesma se estou perto de morrer. Porque escrevo quase em estertor e sinto-me dilacerada como numa despedida de adeus. 

AUTOR.- Isto afinal é um diálogo ou um duplo diário? Só sei uma coisa: neste momento estou escrevendo: "neste momento" é coisa rara porque só às vezes piso com os dois pés na terra do presente: em geral um pé resvala para o passado, outro pé resvala para o futuro. E fico sem nada. Ângela é a minha tentativa de ser dois. Infelizmente, porém, nós, por força das circunstâncias, nos parecemos e ela também escreve porque só conheço alguma coisa do ato de escrever. (Apesar de que eu não escrevo: eu falo.) Fiz uma breve avaliação de posses e cheguei à conclusão espantada de que a única coisa que temos que ainda não nos foi tirada: o próprio nome. Ângela Pralini, nome tão gratuito quanto o teu e que se tornou título de minha trêmula identidade. Essa identidade me leva a algum caminho? Que faço de mim? Pois nenhum ato me simboliza. 

ÂNGELA.- Astronomia me leva a uma estrela de Deus. Se evola em incenso puro que se quebra em palavras de vidro. 

AUTOR.- Meu não-eu é magnífico e me ultrapassa. No entanto ela me é eu. 

ÂNGELA.- Eu nasci amalgamada com a solidão deste exato instante e que se prolonga tanto, e tão funda é, que já não é minha solidão mas a Solidão de Deus. Alcancei afinal o momento em que nada existe. Nem um carinho de mim para mim: a solidão é esta a do deserto. O vento como companhia. Ah mas que frio escuro está fazendo. Cubro-me com a melancolia suave, e balanço-me daqui para lá, daqui para lá, daqui para lá. Assim. É! É assim mesmo. 

AUTOR.- AS palavras de Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar nela onde não se pensa, esse lugar escuro, amorfo e gotejante como uma primitiva caverna. Ângela, ao contrário de mim, raramente raciocina: ela só acredita. Agora, por medo de escrever, deixo-te falar, mesmo inconsequentemente como te criei. Eis-te, no teu doido ininteligível diálogo comigo: 

ÂNGELA.- Eu, gazela espavorida e borboleta amarela. Eu não passo de uma vírgula na vida. Eu que sou dois pontos. Tu, és a minha exclamação. Eu te respiro-me. Eu sou oblíqua como o voo dos pássaros. Intimidada, sem forças, sem esperança, sem avisos, sem notícias — tremo — toda trêmula. Me espio de viés. Que esforço eu faço para ser eu mesma. Luto contra uma maré em nau onde só cabem meus dois pés em frágil equilíbrio ameaçado. Viver é um ato que não premeditei. Brotei das trevas. Eu só sou válida para mim mesma. Tenho que viver aos poucos, não dá para viver tudo de uma vez. Nos braços de alguém eu morro toda. Eu me transfiguro em energia que tem dentro dela o atômico nuclear. Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no passado e de ter descido do trem quase antes dele parar — a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade perdendo logo a estação e a nova partida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus. 

AUTOR.- Ei-la falando como se fosse comigo mas fala para o ar e nem sequer para si mesma e só eu aproveito do que ela fala porque ela é de mim para mim. Ângela é o meu personagem mais quebradiço. Se é que chega a ser personagem: é mais uma demonstração de vida além-escritura como além-vida e além-palavra. Amo Ângela, porque ela diz o que não tenho coragem de dizer porque temo a mim mesmo? ou porque acho inútil falar? Porque o que se fala se perde como o hálito que sai da boca quando se fala e se perde aquela porção de hálito para sempre. 

ÂNGELA.- Eu te amo tanto como se sempre estivesse te dizendo adeus. Quando estou só demais, uso guisos ao redor dos tornozelos e dos pulsos. Então quase cada um de meus pensamentos se externam e voltam para mim como respostas. Minha mais tênue energia faz com que eles logo vibrem estremecendo em luz e som. Eu tenho que ser minha amiga, senão não aguento a solidão. Quando estou sozinha procuro não pensar porque tenho medo de de repente pensar uma coisa nova demais para mim mesma. Falar alto sozinha e para "o quê" é dirigir-se ao mundo, é criar uma voz potente que consegue — consegue o quê? A resposta: consegue o "o quê". "O quê" é o sagrado sacro do universo. 

AUTOR.- EU também não sei não-pensar. Acontece sem esforço. Só é difícil quando procuro obter essa escuridão silenciosa. Quando estou distraído, caio na sombra e no oco e no doce e no macio nada-de-mim. Me refresco. E creio. Creio na magia, então. Sei fazer em mim uma atmosfera de milagre. Concentro-me sem visar nenhum objeto — e sinto-me tomado por uma luz. É um milagre gratuito, sem forma e sem sentido — como o ar que profundamente respiro a ponto de ficar tonto por uns instantes. Milagre é o ponto vivo do viver. Quando eu penso, estrago tudo. É por isso que evito pensar: só vou mesmo é indo. E sem perguntas por que e para quê. Se eu penso, uma coisa não se faz, não aconteço. Uma coisa que na certa é livre de ir enquanto não for aprisionada pelo pensamento. 

ÂNGELA.- Tenho profundo prazer em rezar — e entrar em contato íntimo e intenso com a vida misteriosa de Deus. Não há nada no mundo que substitua a alegria de rezar. Hoje varri o terraço das plantas. Como é bom mexer nas coisas deste mundo: nas folhas secas, no pólen das coisas (a poeira é filha das coisas) Meu cotidiano é muito enfeitado. Estou sendo profundamente feliz. 

AUTOR.- Fale, Ângela, fale mesmo sem fazer sentido, fale para que eu não morra completamente.

 ÂNGELA.- Estou em agonia: quero a mistura colorida, confusa e misteriosa da natureza. Que unidos vegetais e algas, bactérias, invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos concluindo o homem com os seus segredos. 

AUTOR.- VOU tirar férias de mim e deixar Ângela falar. Se eu um dia for ler essas coisas que estou escrevendo, quero que no buraco negro da noite eu encontre milhares de fogos-de-artifício mudos mas acompanhados pelos estilhaços de milhares de cristais cantantes. É esta a noite escura que quero um dia encontrar fora de mim e de dentro. Ângela me deu agora um repente de mim e me senti feliz. Felicíssimo, não sei por quê. Aceito? Não, por algum motivo secreto sinto uma grande carga de mal-estar e ansiedade quando atinjo o cume nevado de uma felicidade-luz. Dói no corpo o ar purificado demais. Ângela tem asas. 

ÂNGELA.- Eu gosto tanto do que não entendo: quando leio uma coisa que não entendo sinto uma vertigem doce e abismal. 

AUTOR.- Quando eu era uma pessoa, e ainda não um rigoroso pleno de palavras, eu era mais incompreendido por mim. Mas era-me aceito na totalidade. Mas a palavra foi aos poucos me desmistificando e me obrigando a não mentir. Eu posso ainda às vezes mentir para os outros. Mas para mim mesmo acabou-se a minha inocência e estou mais em face de uma obscura realidade que eu quase, quase, pego na mão. É uma verdade secreta, sigilosa, e eu às vezes me perco no que ela tem de fugidia. Só valho como descoberta. 

ÂNGELA.- Eu sou uma atriz para mim. Eu finjo que sou uma determinada pessoa mas na realidade não sou nada. 

AUTOR.- EU pensava que um polídrico de sete pontas se dividisse em sete partes iguais dentro de um círculo. Mas não caibo. Sou de fora. É culpa minha se não tenho acesso a mim mesmo? 

ÂNGELA.- Não caio na tolice de ser sincera. 

AUTOR.- Afinal, Ângela, o que é que você faz? 

ÂNGELA.- Cuido da vida. A grande noite do mundo quando não havia vida. 

AUTOR.- Ângela significa o único ser que ela é: só existe uma Ângela. Nenhum ato meu sou eu. Ângela será o ato que me representará. Eu perdi de vista o meu destino. Meu pedido nunca se esgota. Eu peço. O que peço? Isto: a possibilidade de eternamente pedir. Eu não tenho nenhuma missão: vivo porque nasci. E morrerei sem que a morte me simbolize. Fora de mim sou Ângela. Dentro de mim sou anônimo. Viver exige tal audácia. Me sinto perdido como se estivesse dormindo no deserto do Ministério da Fazenda. — Ângela, agora estou me dirigindo diretamente a você e peço-lhe pelo amor de Deus para você enfim chorar. Queira, por favor, consentir e chore. Porque, quanto a mim, não aguento mais a espera. Dê um grito de dor! Um grito vermelho! E as lágrimas rebentam a comporta e lavam um rosto cansado. Lavam como se fossem orvalho. 

ÂNGELA.- Sou pura? 

AUTOR.- A pureza seria tão violenta quanto a cor branca. Ângela é cor de avelã. Tenho grande necessidade de viver de muita pobreza de espírito e de não ter luxo de alma. Ângela é luxo e me incomoda. Vou me afastar dela e entrar em mosteiro, isto é, empobrecer. Escolhi hoje para me vestir umas calças muito velhas e uma camisa rasgada. Sinto-me bem em molambos, tenho nostalgia de pobreza. Comi só frutas e ovos, recusei o sangue rico da carne, eu quis comer apenas o que era de nascedouros e provindo sem dor, só brotando nu como o ovo, como a uva. Essa noite não dormi com minha mulher porque mulher é luxo e luxúria, e faz dois de mim, e eu quero ser um apenas para não ser um número divisível por nenhum outro. Bebi água em jejum. E entrei devagar no meu próprio e inestimável e infinito deserto. Quando nesse deserto a penúria fica insuportável — crio Ângela como miragem, ilusão de ótica e de espírito, mas tenho que me abster de Ângela porque ela é riqueza de alma. Agora me deu vontade de fazer Ângela pintar. 

ÂNGELA.- Estou pintando um quadro com o nome de "Sem Sentido". São coisas soltas — objetos e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de costura. [Autor narrando os fatos da vida de Ângela] Eu PASSO PELOS FATOS o mais rapidamente possível porque tenho pressa. A meditação secretíssima me espera. Para escrever eu antes me despojo das palavras. Prefiro palavras pobres que restam. Rapidamente dou os traços biográficos de Ângela Pralini: rapidamente porque dados e fatos me chateiam. Vejamos, pois: nasceu no Rio de Janeiro, tem 34 anos, um metro e setenta de altura e é bem nascida, embora filha de pais pobres. Uniu-se a um industrial, etc. 

ÂNGELA.- Eu sou individual como um passaporte. Eu sou fichada no Félix Pacheco. Devo me orgulhar de pertencer ao mundo ou devo me desconsiderar por? 

AUTOR.- Ângela tem um doce olhar adoidado, veludo úmido, pérolas mornas mas castanhas e às vezes duras como duas nozes castanhas. Às vezes tem olhos como os de vaca que está sendo ordenhada. Olhos suados. Abelha coruscante e melíflua que me sobrevoa em busca do meu mel para ocultá-lo em casulo como estava ocultado em mim. Ângela é ainda um casulo fechado, como se eu ainda não tivesse nascido, enquanto eu não abrir em metamorfose, Ângela será minha. Quando eu tiver forças de ficar sozinho e mudo — então soltarei para sempre a borboleta do casulo. E mesmo que só viva um dia, essa borboleta, já me serve: que esvoe suas cores brilhantes sobre o brilho verde das plantas num jardim de manhã de verão. Quando a manhã ainda é cedo, se parece igual a uma borboleta leve. O que há de mais leve que uma borboleta. Borboleta é uma pétala que voa. 

ÂNGELA.- A dança dos convidados. Irlanda, tu nunca me verás. Malta, de Malta, tu és a prisão. Um dedo sangrento aponta para cima. E eu me lembro do futuro. Neerlandesa — é o que sou. E sou setembro também. A quantidade de frutas que a madame tem. O cachorro à procura do próprio rabo. Acudam! incêndio! E eu sou música de câmara. 

AUTOR.- Ângela é uma curva em interminável sinuosa espiral. Eu sou reto, escrevo triangularmente e piramidalmente. Mas o que está dentro da pirâmide — o segredo intocável o perigoso e inviolável — esse é Ângela. O que Ângela escreve pode ser lido em voz alta: suas palavras são voluptuosas e dão prazer físico. Eu sou geométrico, Ângela é espiral de finesse. Ela é intuitiva, eu sou lógico. Ela não tem medo de errar no emprego das palavras. E eu não erro. Bem sei que ela é uva sumarenta e eu sou a passa. Eu sou equilibrado e sensato. Ela está liberta do equilíbrio que para ela é desnecessário. Eu sou controlado, ela não se reprime — eu sofro mais do que ela porque estou preso dentro de uma estreita gaiola de forçada higiene mental. Sofro mais porque não digo porque sofro. 

ÂNGELA.- E eu não passo de uma promessa. Mas sou estrela. Sinto que sou estrela. Espatifada. Sou caco de vidro no chão. 

AUTOR.- Essa mulher é contundente para si própria ela é as pontas agudas de uma estrela. Essas pontas faiscantes me ferem também. Você não sabe viver a partir de um instanteclímax: você o sente mas não é capaz de prolongá-lo em atitude permanente. Você não aprende com ninguém, nem aprende consigo mesma. Respeito você embora você não seja meu igual. E eu sou o meu igual? Eu sou eu? Essa indagação vem do que observo que você não parece saber a si mesma. Você talvez desconheça que tem um centro de si mesma e que é duro como uma noz de onde se irradiam tuas palavras fosforescentes.

 ÂNGELA.- Falando sério: o que é que eu sou? Sem resposta. Então tiro o corpo fora. Sou Strauss ou só Beethoven? Rio ou choro? Eu sou nome. Eis a resposta. É pouco. De repente eu me vi e vi o mundo. E entendi: o mundo é sempre dos outros. Nunca meu. Sou o pária dos ricos. Os pobres de alma nada armazenam. A vertigem que se tem quando num súbito relâmpago-trovoada se vê o clarão do não entender. Eu NÃO ENTENDO! Por medo da loucura, renunciei à verdade. Minhas ideias são inventadas. Eu não me responsabilizo por elas. O mais engraçado é que nunca aprendi a viver. Eu não sei nada. Só sei ir vivendo. Como o meu cachorro. Eu tenho medo do ótimo e do superlativo. Quando começa a ficar muito bom eu ou desconfio ou dou um passo para trás. Se eu desse um passo para a frente eu seria enfocada pelo amarelado de esplendor que quase cega. 

AUTOR.- Ângela é o tremor vibrante de uma corda tensa de harpa depois que é tocada: ela fica no ar ainda se dizendo, dizendo — até que a vibração morra espraiando-se em espumas pelas areias. Depois — silêncio e estrelas. Conheço de cor o corpo de Ângela.Só não entendi o que ela quer. Mas dei-lhe tal forma à minha vida que ela me parece mais real do que eu. ÂNGELA.- Minha vida é um grande desastre. É um desencontro cruel, é uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu — só me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. É lá que eu encontro uma menina morta sem pecúlio. Mas uma noite vou à Secção de Cadastro e ponho fogo em tudo e nas identidades das pessoas sem pecúlio. E só então fico tão autônoma que só pararei de escrever depois de morrer. Mas é inútil, o lago azul da eternidade não pega fogo. Eu é que me incineraria até meus ossos. Virarei número e pó. Que assim seja. Amém. Mas protesto. Protesto à toa como um cão na eternidade da Secção de Cadastro.

 AUTOR.- Ângela é muito parecida com o meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência imprescindível: não abro mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso — pois sou um grande fracassado — o fracasso me serve de base para eu existir. Se eu fosse um vencedor? morreria de tédio. "Conseguir" não é o meu forte. Alimento-me do que sobra de mim e é pouco. Sobra porém um certo secreto silêncio. 

ÂNGELA.- Eu só uso o raciocínio como anestésico. Mas para a vida sou diretamente uma perene promessa de entendimento do meu mundo submerso. Agora que existem computadores para quase todo o tipo de procura de soluções intelectuais — volto-me então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu enigma me interessa. Mais que tudo, me busco no meu grande vazio. Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pede me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.

Clarice Lispector, Um sopro de vida 

 

Lauri Blank


O poema é um arbusto que não cessa de tremer

António Ramos Rosa 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

 

lady in the lily pond ,by Paul  Chabas.

Sou extremamente tátil. Grandes aspirações postas em perigo, nas grandes aspirações é inerente o grande risco. Eis um momento de extravagante beleza: bebo-a líquida nas conchas das mãos e quase toda escorre brilhante por entre meus dedos: mas beleza é assim mesmo, ela é um átimo de segundo, rapidez de um clarão e depois logo escapa.

Clarice Lispector, Um sopro de vida 

A Solidão das Montanhas


O conjunto de meu trabalho é sustentado e conduzido pelo universo dessas montanhas e seus camponeses. Ultimamente, de tempo em tempo, meu trabalho lá em cima é interrompido por longos períodos por causa de negociações, viagens para conferências, reuniões e pelo meu trabalho docente aqui embaixo. Mas assim que subo novamente para lá, já nas primeiras horas de estada na cabana, todo o mundo de questões anteriores se aproxima de mim, inclusive, exatamente como o havia gravado quando o deixei. Eu sou simplesmente deslocado para dentro da própria vibração do trabalho e, na realidade, não tenho nenhum poder sobre suas leis ocultas. Frequentemente os habitantes da cidade ficam admirados com o longo e monótono isolamento dos camponeses entre as montanhas. Mas não é isolamento, é solidão. Nas grandes cidades, o Homem pode com facilidade ser tão só como dificilmente estaria em qualquer outro lugar. Mas lá ele nunca é solitário. Pois, a solidão tem o poder específico não de nos isolar, mas o de projetar todo ser-aí [Dasein] na proximidade da ampla essência de todas as coisas.

Martin Heidegger,  “Paisagem Criativa: por que permanecemos na província?”

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

 

Jose Royo


“what we have been, or now are, we shall not be tomorrow”

Ovid, Metamorphoses

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

 


Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.

É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus. Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.

Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objeto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém.

Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida.

Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.

Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…

Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada…

Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O livro do desassossego

domingo, 4 de fevereiro de 2024


 How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself. 

Virginia Woolf, The waves

 


AUTOR.- EU SOU O autor de uma mulher que inventei e a quem dei o nome de Ângela Pralini. Eu vivia bem com ela. Mas ela começou a me inquietar e vi que eu tinha de novo que assumir o papel de escritor para colocar Ângela em palavras porque só então posso me comunicar com ela. Eu escrevo um livro e Ângela outro: tirei de ambos o supérfluo. Eu escrevo à meia-noite porque sou escuro. Ângela escreve de dia porque é quase sempre luz alegre. Este é um livro de não memórias. Passa-se agora mesmo, não importa quando foi ou é ou será esse agora mesmo. É um livro como quando se dorme profundo e se sonha intensamente — mas tem um instante em que se acorda, se desvanece o sono, e do sonho fica apenas um gosto de sonho na boca e no corpo, fica apenas a certeza de que se dormiu e se sonhou Faço o possível para escrever por acaso. Eu quero que a frase aconteça. Não sei expressar-me por palavras. O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio. Mas não correspondo à altura do desafio. Saem pobres palavras. E qual é mesmo a palavra secreta? Não sei e por que a ouso? Só não sei porque não ouso dizê-la? Bem sei que estou no escuro e eu me alimento com a própria e vital escuridão. Minha escuridão é uma larva que tem dentro de si talvez a borboleta? Está tão escuro que estou cego. Eu simplesmente não posso mais escrever. Vou deixar por uns dias Ângela falar. Quanto a mim acho... 


Clarice Lispector, Um sopro de vida 

CONSCIÊNCIA E INCONSCIENTE


A diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente é a premissa básica da psicanálise e o que a ela permite compreender e inscrever na ciência os processos patológicos da vida psíquica, tão frequentes e importantes. Dizendo-o mais uma vez e de outra forma: a psicanálise não pode pôr a essência do psíquico na consciência, mas é obrigada a ver a consciência como uma qualidade do psíquico, que pode juntar-se a outras qualidades ou estar ausente. (...) Para a maioria daqueles que têm cultura filosófica, é tão inapreensível a ideia de algo psíquico que não seja também consciente, que lhes parece absurda e refutável pela simples lógica. Acho que isto se deve ao fato de não terem jamais estudado os pertinentes fenômenos da hipnose e do sonho, que — sem considerar o dado patológico — obrigam a tal concepção. A sua psicologia da consciência é incapaz de resolver os problemas do sonho e da hipnose. 

“Estar consciente” é, em primeiro lugar, uma expressão puramente descritiva, que invoca a percepção imediata e segura. A experiência nos mostra, em seguida, que um elemento psíquico

— por exemplo, uma ideia — normalmente não é consciente de forma duradoura. É típico, isto sim, que o estado de consciência passe com rapidez; uma ideia agora consciente não o é mais no instante seguinte, mas pode voltar a sê-lo em determinadas condições fáceis de se produzirem. Nesse intervalo ela era ou estava — não sabemos o quê. Podemos dizer que era latente, com isso querendo dizer que a todo momento era capaz de tornar-se consciente. Ou, se dissermos que era inconsciente, também forneceremos uma descrição correta. Este “inconsciente” coincide com “latente, capaz de consciência”. É certo que os filósofos objetariam: “Não, o termo ‘inconsciente’ não pode ser usado aqui; enquanto a ideia estava em estado de latência não era nada psíquico”. Se já os contradisséssemos neste ponto, cairíamos numa disputa puramente verbal, que a nada levaria. 

Mas nós chegamos ao termo ou conceito de inconsciente por um outro caminho, elaborando experiências em que a dinâmica psíquica desempenha um papel. Aprendemos — isto é, tivemos de supor — que existem poderosos processos ou ideias psíquicas (e aqui entra em consideração, pela primeira vez, um fator quantitativo, e portanto econômico) que podem ter, na vida psíquica, todos os efeitos que têm as demais ideias, incluindo efeitos tais que por sua vez podem tornar-se conscientes como ideias, embora eles mesmos não se tornem conscientes. Não é necessário repetirmos em detalhes o que já foi exposto com alguma frequência. Basta dizer que aqui aparece a teoria psicanalítica, afirmando que tais ideias não podem ser conscientes porque uma certa força se opõe a isto, que de outro modo elas poderiam tornar-se conscientes, e então se veria como elas se diferenciam pouco de outros elementos psíquicos reconhecidos. Essa teoria torna-se irrefutável por terem sido encontrados, na técnica psicanalítica, meios com cujo auxílio pode-se cancelar a força opositora e tornar conscientes as ideias em questão. Ao estado em que se achavam estas, antes de tornarem-se conscientes, denominamos repressão, e dizemos que durante o trabalho analítico sentimos como resistência a força que provocou e manteve a repressão. 

Portanto, adquirimos nosso conceito de inconsciente a partir da teoria da repressão. O reprimido é, para nós, o protótipo do que é inconsciente. Mas vemos que possuímos dois tipos de inconsciente: o que é latente, mas capaz de consciência, e o reprimido, que em si e sem dificuldades não é capaz de consciência. 

(...)  a diferenciação entre consciente e inconsciente é, afinal, uma questão de percepção, a que se deve responder com “sim” ou “não”, e o ato da percepção mesmo não informa por qual razão algo é percebido ou não. Não podemos nos queixar porque o dinâmico acha expressão apenas ambígua no fenômeno.

Sigmund Freud 

[73] - Livro do desassossego


No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.

Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.

Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.

Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que o diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.

Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.

Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Livro do desassossego

 


Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trêmula. Como o que acontece com a água quando se mergulha a mão na água. Sou um palidíssimo reflexo de erudição. Minha receptividade se afina registrando sem parar as concepções de outros, refletindo no meu espelho os matizes sutis das distinções entre as coisas da vida. Eu que sou um resultado do verdadeiro milagre dos instintos. Eu sou um terreno pantanoso. Em mim nasce musgo molhado cobrindo pedras escorregadias. Pântano com seus sufocantes miasmas intoleravelmente doces. Pântano borbulhante.


Clarice Lispector, Um sopro de vida


Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que talvez te espante, a vida toda é um aprender a morrer.

Sêneca


Há muito tempo que se sabe que o papel da filosofia não é descobrir o que está escondido, mas de tornar legível o que precisamente é visível, isto é, o de fazer aparecer o que está próximo, o que é imediato, o que é tão iminentemente ligado a nós mesmos que não o percebemos.

Blandine Kriegel


Talvez seja preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semiabertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.


Michel Foucault, O corpo utópico


Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Heitor e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.


Michel Foucault, Corpo Utópico


 Ὁ βίος ἐν τῆ κινήσει ἐστί (vita motu constat) [a vida está no movimento], disse Aristóteles, com razão. Do mesmo modo que nossa vida física consiste em um movimento incessante, assim também nossa vida interior e intelectual exige uma ocupação constante, uma ocupação em qualquer coisa, pela ação ou pelo pensamento.


Arthur Schopenhauer

 Aforismos para a Sabedoria de Vida

 


Como contacto praticamente permanente com a lógica surgiu-me um sentimento que nunca antes eu experimentara: o medo de viver, o medo de respirar. Com urgência preciso lutar porque esse medo me amarra mais do que o medo da morte, é um crime contra mim mesmo. Estou com saudade de meu anterior clima de aventura e minha estimulante inquietação. Acho que ainda não caí na monotonia de viver. Dei ultimamente para suspirar de repente, suspiros fundos e prolongados.

Clarice Lispector, Um sopro de vida 






Filósofos e estudiosos do ser humano já nos ensinaram há muito que nos equivocamos em tomar nossa inteligência como um poder autônomo e ignorar sua dependência da vida afetiva. Nosso intelecto, segundo eles, só pode trabalhar confiavelmente se estiver a salvo das ingerências de poderosos impulsos afetivos; caso contrário ele se comporta como um simples instrumento nas mãos de uma vontade, fornecendo o resultado que esta o incumbiu de obter. Portanto, argumentos lógicos são impotentes em face de interesses afetivos, e por isso a disputa com argumentos, que na frase de Falstaff são abundantes como as amoras, é tão infrutífera no mundo dos interesses. A experiência psicanalítica enfatizou ainda mais, se é possível, tal afirmação. Ela pode demonstrar diariamente que as pessoas mais argutas subitamente se comportam como imbecis, tão logo o discernimento buscado se defronta com uma resistência emocional, mas também voltam a compreender tudo quando essa resistência é superada. A cegueira lógica que essa guerra, como que por magia, produziu justamente em muitos de nossos melhores cidadãos, é portanto um fenômeno secundário, uma consequência da excitação de afetos, destinada, assim esperamos, a desaparecer com ela. 


 Sigmund Freud 

Obras completas - volume 12

O Livro do desassossego [71]

 


Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento.

Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

É curioso que, sendo escassa a minha capacidade de entusiasmo, ela é naturalmente mais solicitada pelos que se me opõem em temperamento do que pelos que são da minha espécie espiritual. A ninguém admiro, na literatura, mais que aos clássicos, que são a quem menos me assemelho. A ter que escolher, para leitura única, entre Chateaubriand e Vieira, escolheria Vieira sem necessidade de meditar.

Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade. E é por isso que o meu estudo atento e constante é essa mesma humanidade vulgar que repugno e de quem disto. Amo-a porque a odeio. Gosto de vê-la porque detesto senti-la. A paisagem, tão admirável como quadro, é em geral incômoda como leito.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O livro do desassossego

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024


 'Las palabras nunca alcanzan cuando lo que hay que decir desborda el alma'

 ― Julio Cortázar


Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

 O Corpo Utópico, Michel Foucault

 


Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida.

Sêneca