segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Francesca Strino


Era um dia qualquer para se viver ou para morrer... Posicionou-se na beira do precipício e lançou-se, sem medo! Mergulhou para dentro do próprio abismo sem paraquedas ou salva-vidas e renasceu! Já não caía, mas levitava! Já não era mais um corpo à deriva cercado por tubarões. Era a própria bússola de sua alma a conduzir a vida para outras nascentes e novas manhãs.

Adeilton Lima
2

Arthur Braginsky


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu impercetível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos
E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio


Mia Couto

Distância

Alex Alemany


Entro no teu quarto como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. "Não te levantes, digo,
e deixe que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada". Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

Nuno Júdice 

Personagem

emile vernon

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exatamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Cecília Meireles

Maturescente

Jeremy Lipking detail


Vieste, após ser tantas, enfim, ser tu somente. 
E me presenteaste, assim, tão de surpresa, 
que eu não percebi 
tu sempre em mim presente. 

(Nem sequer eu poderia.) 

Chegaste em minha vida 
quando eu pouco a possuía, 
e tu adolescias 
e eu adolescendo, 
e éramos, nós dois, em tantos eus, 
que nos víamos em muitos, 
mas quase nunca em nós. 

(E me surges, assim, tão de repente, 
assim, tão diferente.) 

Foste, sempre, a única de mim 
e eu de ti apenas, 
mas como se não fôssemos de nós, 
dois elos que unidos se deixaram 
e pouco se tocaram. 

(E me tomas, assim, tão entranhada, 
assim, amalgamada.) 

Tu sempre me amaste e pouco me disseste, 
pois amor também precisa ser falado, 
mormente quando início, 
nos mínimos indícios, 
em tudo registrado. 

(E hoje, que me amas, assim, tudo te atesta, 
calada e, assim mesmo, manifesta.) 

Nos primeiros dias, noites, madrugadas, 
teu corpo era teu verbo. 
E tu te retorcias. 
E tu te insinuavas. 
E eu, senhor de ti, me comprazia 
e te retribuía 
nas vezes que te amava. 

(E me vens, assim, o amor em cada gesto, 
e eu te amando, assim, em todo e resto.) 

Ai, que só nos bastam um e outro... 
Um no outro, um no um, unos, completos. 

Cuidavas do teu rosto e com tal zelo, 
que te ver além do rosto eu não podia 
- melhor, eu não sabia - , 
e hoje não te aflige mais a ruga. 
Antes, vens a mim 
e rindo, diz-me: veja... 
É a deixa que me dás e não recuso. 
Adivinhando o beijo, 
sou dono do teu queixo: 
Colhendo as tuas mãos que te pintavam, 
hoje as minhas te maquiam, 
somente pelo toque adstringente 
e a língua que passeia, umectante. 

Te sei e tu te sabes mais encanto. 
Te sinto e tu te sentes mais amante. 

E hoje, meu amor, que tu me tens 
no tanto em que nunca me tiveste, 
pois só te dei o macho que eu era, 
e hoje dou-te o homem em que me acho, 
não chamarei de loba, 
nem te direi por fêmea, 
tampouco de fatal, 
mas, decerto, por teu nome 
- teu nome e mulher minha - , 
e tu a mim chamando 
ao nome e de teu homem. 
(Te amo muito mais do que te amara 
- Se é que o amor a si mesmo supera - , 
Te amo de amar tanto, que esperara 
Que todo o amar possível eu já tivera.) 

E me vens, assim, plena, completa, 
sem chances de eu te amar pela metade, 
porque tudo me chama 

                                          toma 
                             rapta 
                                          cala 
                         e clama 

e arde mais a chama 
do que a cama em que ardias, 
e tu, plena, completa, 
tanto em mim e eu não te via... 

Agora tudo em mim te ama em tudo. 

E amo-te nas coxas, nos cabelos, nos teus peitos. 
E amo-te na alma, nos teus risos, nos teus ais. 

Nos feitos, nos defeitos, 
porque em tudo estás.


Antoniel Campos

Força

Edmund Blair Leighton


Desmancha o nó,
tira a ferrugem.
espana o pó.
Empurra o pesado,
cola o quebrado,
cerze o rompido,
coça a coceira,
gruda o trincado,
pensa o ardido
e faz brincadeira do verso chorado,
que a vida é rendeira
de sedas ou trapos,
de rendas, farrapos
ou fios de algodão;
que a fibra é comprida e o mundo, artesão.


Flora Figueiredo

O Espelho

francine van hove


O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), in "Poemas Inconjuntos".

Dorina Costras

Vem pra cá cavalo doido
que eu vou te beber todo
atravessa esse meu fogo
de cabeça
Que cresça a tua vontade
que seja feita a tua vaidade
nessa terra de homens e mistério.
te quero
na relva molhada
me quero ver derrubada
me transpassa
a arco e flecha
lança e mordaça.
Te fecha o trinco
Te tranca
barra a passagem. Espanta
a última solidão que te ameaça
– que o ritual comece –
(ah se eu fosse se eu pudesse)
que esse tal de amor se faça.
Vem pra cá cavalo doido
que eu vou te fazer a festa
que eu vou conhecer a tua raça
Cigano. Mestiço.
Teu pulso arisco
o risco do teu jugo
o perigo de tua caça
eu arrisco.
Me faça que eu fico contigo
me cobre no dia da graça


Bruna Lombardi

Sorriso audível das folhas

Christian Schloe


Sorriso audível das folhas,
Não és mais que a brisa ali.
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri, e olha de repente,
Para fins de não olhar,
Para onde nas folhas sente
O som do vento passar.
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou;
E estamos os dois falando
O que se não conversou.
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

domingo, 1 de novembro de 2015

vinho


A taça foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.

Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.

Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste à minha procura.

A taça foi brilhante e rara;
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebi
se originou minha loucura.


Cecília Meireles
Viagem, 1938



Mariska Karto


Moro no ventre da noite:
sou a jamais nascida.
E a cada instante aguardo vida.

As estrelas, mais o negrume
são minhas faixas tutelares,
e as areias e o sal dos mares.

Ser tão completa e estar tão longe!
Sem nome e sem família cresço,
e sem rosto me reconheço.

Profunda é a noite onde moro.
Dá no que tanto se procura.

Mas intransitável, e escura.

Estarei um tempo divino
como árvore em quieta semente,
dobrada na noite, e dormente.

Até que de algum lado venha
a anunciação do meu segredo
desentranhar-me deste enredo,

Arrancar-me á vagueza imensa,
consolar-me deste abandono,
mudar-me a posição do sono.

Ah, causador dos meus olhos,
que paisagem cria ou pensa
para mim, a noite densa?


Cecília Meireles
In Mar absoluto e Outros Poemas
 maria kreyn


Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos d'amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d'amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...

Florbela Espanca

Resssaca

Mark Eliot Lovett.

Meio escondida atrás do quiosque fechado, a mulher espiou. Para além da murada, o mar, de um verde-acinzentado, estava quase inofensivo. É verdade que engolira a areia do Leblon, ou pelo menos boa parte dela. Verdade também que sua borda de espuma era excepcionalmente larga, rendada de vagas de um tamanho fora do comum, que se chocavam umas com as outras. Mas dali, do alto do mirante, sua fúria era estática, como numa fotografia. E por um instante – um instante, apenas – a paisagem parecia serenada.
A mulher deu alguns passos à frente, quase debruçando-se na fita amarela que impedia a passagem para o deque de madeira, cuja estrutura vinha sendo abalada pelas ondas. E pôs-se na ponta dos pés, tentando espiar as pedras lá embaixo. O vento frio ainda lhe cortava o rosto, como quando ela saíra do carro, mas também parecia amainado.
Ergueu os olhos, voltando a admirar a paisagem. A bruma formada pelas gotículas de água salgada envolvia os prédios e os morros, formando um mundo de cores esmaecidas, adoentadas. E o instante de refluxo, em que o mar parecia preparar-se em silêncio para uma nova investida, continuava – hipnotizando-a. Era como estar no olho do furacão, sabendo que a qualquer momento a fúria voltaria. Ainda pior.
E voltou.
Ela não sentiu a onda chegar. Nem sequer uma trepidação. Foi algo surpreendente, inexplicável. Era cedo, ainda, e a mulher estava só – não havia ninguém para gritar, dizer-lhe que corresse. Não, não houve qualquer aviso. Ou talvez tudo tenha acontecido rápido demais.
De repente, descendo do céu – como um raio ou um castigo – caiu sobre ela a massa d’água. Compacta e encorpada, envolveu-a de um só jato, molhando-a por inteiro, mas molhando-a de verdade, não respingos ou borrifos, mas uma água quase sólida, que a deixou instantaneamente ensopada, roupas, cabelos, toda ela, da cabeça aos pés.
Deu um grito. Encolheu os ombros, ergueu os braços, tentou defender-se tardiamente daquela água que bateu nela como chicotada. Por um segundo, mal compreendendo o que se passava, ficou no mesmo lugar, os pés presos ao chão, sentindo que até mesmo suas meias, dentro do tênis, estavam molhadas de torcer.
Somente quando em um passo atrás, baixando a vista e olhando-se, foi que pareceu despertar. E caiu na risada. Uma risada sonora, desabrida, que preencheu o mirante vazio, rivalizando com o rugido do mar. Uma risada de alívio, uma explosão.
Aquela pancada a fizera sentir-se viva outra vez. A beleza das ondas corria em suas veias e seu corpo fora ungido pela força da natureza.
Não queria mais pensar na morte.

Heloísa Seixas

Fronteira

Konstantin Razumov 


Sou capaz de fazer florescer
quantas flores você desejar
e lhe dar uma a toda hora,
a cada dia,
o ano inteiro.
A reflora é permanente,
desde que você não tente avançar.
Evite pisar no meu canteiro.


Flora Figueiredo 
em Amor a céu aberto

O bem que nos queremos

Jon Boe Paulsen.


O bem que nos queremos 
se aninha entre as paredes dessa casa 
há muito tempo nos observa 
nos vê chegar, sair 
fazer malas, promessas 
adiar coisas, amontoar 
existir levianos como sempre 
e engraçados 
e já com uma história 
e já com outra cara. 
Já nos conhece tão intimamente 
sabe do humor com que acordamos 
do amor com que nos maltratamos 
cada ranhura e cada 
pequenina estrela. 
E a cada duvidar e a 
cada angústia 
o bem que nos queremos 
permanece. 
Mudam as estações, os desejos, as fases da lua 
mudamos nós 
o bem que nos queremos continua. 


Bruna Lombardi
In O Perigo do Dragão, 1984 
Eleanor, Countess of Lauderdale


Eu tenho ideias e razões, 
Conheço a cor dos argumentos 
E nunca chego aos corações.  

Fernando Pessoa, 1932  
Obras Poeticas

Feminino


Edouard Bisson (1856-1936) - Les fleurs du matin, 1903


São as ninfas
são as musas
as mulheres com o seu riso

As Dríades e as Nereides
Crineias nas suas fontes
e as mulheres despertando

Dentro do próprio sumiço

São as deusas, as sereias
enfeitiçando o cantar
as mulheres tecendo as teias

Penélope Euterpe Eurídice
de meiga pele ambarina
as mulheres correndo em busca

Na sua pressa felina

São sibilas, amazonas
profetisas, feiticeiras
as mulheres querendo voar

Com os espíritos femininos
valquírias de espada honrosa
de mulheres ousando o risco

Com alegria nervosa

São sílfides com voz de vento
são as ondinas nadando
seguindo a rota dos rios

As salamandras ardendo
de si mesmas sequiosas
Morgana com os seus filtros

De invenção harmoniosa

São adivinhas da água
sufragistas, feministas
na haste do pensamento

Renascendo com vagares
à sombra da própria seda
na chama rubra da tenda

São as mulheres do meu tempo

Mudando a eternidade
e a vida em seu sustento
sem jamais cicatrizarem

Os séculos de esquecimento



Maria Teresa Horta
In «Poemas do Brasil», 2009, Editora Brasiliense, S. Paulo 

Fogo e água

 Christian Schloe

Cansa-me ser quem serei
Porque em tudo esse outro
Se parece com o que sou.
Cansa-me o adeus de quem nasce. 
E a viagem, à nascença, morre de fadiga.

Só a tua lava me lava.
Resto eu em ti
Terra ardendo,
Chão de água e fogo

Abraça-me.
Abrasa-me.


Mia Couto

X - O guardador de rebanhos




«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa ?»
«Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz ?»
«Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.»
«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
O guardador de rebanhos

[27] - Livro do desassossego

Francine Van Hove 

A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.

O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do desassossego


fim do ensaio,
ausente o que é de mim. 
vá. 
me desfaça.

apague as marcas e o rastro de voltar.
silencie o sim, me diga não.

desculpe qualquer coisa
(mas sem perdão).

a mim, esse deserto que busquei.
a ti, o ver que o sonho se desfaz.

e só para doer, minha certeza:
te amar é vício que não deixo mais.


Antoniel Campos