domingo, 31 de julho de 2011

Vaga melancolia



Gostaria de escrever um poema e não sei de quê.
Há em mim uma inquietação como se para nascer
um grande gesto, uma ideia, o visível do que se não vê.
Mas não nasce, não se vê, nasce apenas o prazer
desta vaga melancolia que em si mesma consiste
e tem o gosto de ser triste
sem o ser.

Vergílio Ferreira

Minh'alma é triste



Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minha'alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há, gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
— Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque — mas a minh'alma é triste!

II

Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.

Se passa um bote com as velas soltas,
Minh'ahna o segue n'amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.

Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh'alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!

E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minha'ahna em notas de chorosa endeixa
Lamenta os sonhos que já tive outrora.

Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
— Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos — a minh'alma é triste!

III

Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh'alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
— Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri — mas a minh'alma é triste!

IV

Minh'alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!

A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
— Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.

De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s'reia
Que em doce canto me atraiu na infância.

Ai! loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp'ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
— Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!

Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
— No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores — a minh'alma é triste!

Casimiro de Abreu

Completo

Alessandra Barsotti

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.


Manoel de Barros

Sonhando...


É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D’olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d’alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora… Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa

Que a minh’alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija… e a tua alma passa!

Florbela Espanca

sábado, 30 de julho de 2011

Arthur Braginsky

Quando é para você
o poema se faz sozinho.
As letras se procuram
como folhas douradas
no vento de outono.
E num canto do parque
formam o ninho macio
de um pássaro que canta
para celebrar a vida.


Álvaro Bastos

Antes de ser um livro

Francine Van-Hove

Aprendi a girar a maçaneta abrindo um livro. Aprendi a repartir os cabelos repassando seu miolo. Os trechos que sublinhava a lápis são as cartas que deixei para minha família. Eu lembro do que ainda persiste em me lembrar.
Precisava usar canivete para deslacrar as páginas. A obra não aberta denunciava a falta de leitura e me dava pena vê-la arrependida na poeira. Descerrava folha por folha, como quem descasca uma fruta. O sumo das letras escorrendo, rodas dos óculos descendo a toda. Não havia freios para a velocidade dos olhos. O livro imitava um ônibus; cessar uma leitura de forma abrupta era como saltar na parada errada. Até hoje não sei se a imaginação não é minha memória. Guardo a impressão de que na casa da infância não havia paredes, apenas prateleiras. Cada livro era um torcedor de pé na arquibancada. Um fanático esperando ser reparado. Torcendo para que nossa vida desse certo. Fazendo jogadas ensaiadas, pedindo substituições, escalando alegrias. Eu lembro do que ainda persiste em me lembrar.
Posso dizer que o primeiro bairro em que morei foi a Divina Comédia de Dante. As figuras de Doré pareciam leves perto daquele inferno. Sabia de cor os círculos e a hierarquia dos pecados. Quando me incomodavam, usava os preceitos dantescos para designar uma sentença. Botei tanta gente no inferno que me arrependo. O livro comovia pelo tato, alvoroço. À semelhança dos polígrafos, minha respiração ficou viciada no cheiro de papel novo. Quando descobri a Feira de Porto Alegre, não entendi. De um dia para outro, as barracas haviam aparecido. Aquilo surpreendeu minha solidão, como raízes que levantam de súbito a calçada. Escritores circulavam à paisana, o rosto vulnerável, disfarçando o orgulho de uma capa, contracapa e prefácio.
Eu me lembro do que ainda persiste em me lembrar. Conheço o ritual das janelas levantando devagar, as brochuras na mesa. Vivo diretamente o poema, sem intermediários.

Fabrício Carpinejar
Texto publicado no jornal Zero Hora, POA (RS), 2/11/2001

Exageros de Mãe

Steve Hanks

Já te disse mais de mil vezes que não quero ver você descalço. Nunca vi uma criança tão suja em toda a minha vida. Quando teu pai chegar você vai morrer de tanto apanhar. Oh, meu Deus do céu, esse menino me deixa completamente maluca. Estou aqui há mais de um século esperando e o senhor não vem tomar banho. Se você fizer isso outra vez nunca mais me sai de casa. Pois é, não come nada: é por isso que está aí com o esqueleto à mostra. Se te pegar outra vez mexendo no açucareiro, te corto a mão. Oh, meu Deus, eu sou a mulher mais infeliz do mundo. Não chora desse jeito que você vai acordar o prédio inteiro. Você pensa que seu pai só trabalha pra você chupar Chica-Bon? Mas, furou de novo o sapato: você acha que seu pai é dono de sapataria, pra lhe dar um sapato novo todo dia? Onde é que você se sujou dessa maneira: acabei de lhe botar essa roupa não faz cinco minutos! Passei a noite toda acordada com o choro dele. Eu juro que um dia eu largo isso tudo e nunca ninguém mais me vê. Não se passa um dia que eu não tenha que dizer a mesma coisa. Não quero mais ver você brincando com esses moleques, esta é a última vez que estou lhe avisando.

Millôr Fernandes
Texto extraído do livro "'10 em Humor", Editora Expressão e Cultura - Rio de Janeiro, 1968, pág. 15.

Estrela da Tarde

A La Lumiere Oil on Linen - Craig Srebnik

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhamos tardamos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos noturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A lua no cinema



A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!


Paulo Leminski

quinta-feira, 28 de julho de 2011

As últimas vontades

Alex Alemany 

Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.
Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas...
Deixa ficar a flor.
E nem murmures.
Deixa
o tempo no degrau,
a morte na gaveta.
Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?
Na batalha do ódio,
destruam-se,
fechados,
sem tréguas,
os retratos!

Deixa ficar a flor.
A flor? Não a conheces.
Bem sei.
Nem eu. Ninguém.
Deixa ficar a flor.
Não digas nada.
Ouve. Não ouves o degrau?
Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe...
Não digas nada.
Ouve: é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.
Deixa ficar a flor.

David Mourão-Ferreira

(...)

— Quantos guarda-chuvas você perdeu na vida?
— Você está de sacanagem comigo, professor.
— Não, querido, me responde, é o grande teste da poesia, não existe outro melhor.
— Acho que perdi mais de vinte.
— Boa média. Mostra que é poeta. A poesia é arte da distração, esquecer as coisas para dar valor às pessoas.


Fabrício Carpinejar, Furto qualificado

O Poeta



Você nem mesmo escolheu, o que estava destinado,
Aquele dom.

Portanto você deve seguir o melhor que puder,
Aquele pergaminho.

E será um estorvo para você muitos dias,
Aquela música.

Mas os amores lembrados e as mágoas nutrirão bem,
Aquela imagem.

E um ouvinte bondoso na rua vai aliviar sua dor,
Aquela canção.


 ana rüsche


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá, onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.




E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.


Manoel de Barros

A Idade da razão


... Tinha grandes olhos azuis de boneca e uma boca infantil, mas sob seus olhos de porcelana havia rugas, bem como em torno da boca: as narinas eram finas como se estivessem agonizantes e os cabelos, que, de longe, se assemelhavam a um halo dourado, mal se escondiam o crânio. Boris contemplou com horror aquela criança glabra. “Já foi jovem”, pensou. Havia sujeitos que pareciam feitos para ter trinta e cinco anos – Mathieu, por exemplo - , porque nunca tinham tido adolescência. Mas quando um camarada fôra realmente moço ficava marcado para o resto da vida. A gente aguentava até vinte e cinco anos. Depois... era horrível. Pôs-se a olhar para Lola e bruscamente lhe disse:
- Lola, olhe para mim. Eu te amo.
Os olhos de Lola tornaram-se cor-de-rosa, ela pisou nos pés de Boris. Disse apenas:
- Querido.
Ele teve vontade de gritar: “Aperte-me, force-me a sentir que eu te amo!” Mas Lola não dizia nada, estava sozinha agora, era sua vez. Sorria vagamente, baixara as pálpebras e seu rosto se fechara sobre sua felicidade. Um rosto calmo e deserto. Boris sentiu-se abandonado e o pensamento imundo invadiu-o de novo: “Não quero, não quero envelhecer”. No ano passado estava sossegado, nunca pensava nessas histórias bestas. Agora era sinistro, sentia sem cessar a mocidade escorregar-lhe entre os dedos. Até os vinte e cinco anos. “Tenho ainda cinco na frente, pensou.” (...)
“Eu também, talvez, terei barriga. Não poder mais olhar-me num espelho, sentir os próprios gestos secos e quebradiços como se a gente fosse de madeira morta...” E cada instante vivido usava mais um pouco sua mocidade. “Se ao menos eu pudesse economizar-me, viver bem devagar, lentamente, talvez ganhasse alguns anos. (...)
Apertou Lola contra seu peito e sentiu a doçura espessa dos seios.
- ah! – murmurou Lola.
Ela se inclinara para trás e ele estava fascinado por aquela cabeça pálida de lábios carnudos, uma cabeça de Medusa. Pensou: “São seus últimos dias de sol”. E apertou-a mais fortemente. “Uma dessas manhãs ela desmontará de repente.” Não lhe tinha mais raiva; sentia-se nela, rígido e magro, todo músculos, envolvia-a nos seus braços e a protegia contra a velhice. Depois teve um instante de sono e desvario: olhou os braços de Lola, brancos como os cabelos de uma velha, pareceu-lhe segurar a velhice nas mãos, e que era preciso apertá-la com toda a força, até sufocá-la.
- Como você me aperta! – disse Lola, feliz. – Você me machuca. Quero você...

Jean-Paul Sartre, A Idade da razão

terça-feira, 26 de julho de 2011

chekirov art-prints

Tenho a boca afiada de punhais
não choro
olho os faróis com duros olhos
ardidos de quem tem febres
mas não sangro
as mãos vazias deixam passar o vento
lavando os dedos que não se crispam
não há palavras, nem mesmo estas
o único sentido de estar aqui
é apenas estar secamente aqui
cravado como um prego
em plena carne viva da tarde.


Caio Fernando Abreu

Discurso de Deus a Eva



"... Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio. A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia. E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: "O AUTOR! O AUTOR! O AUTOR!".


"Minha cara,

eu te criei porque o mundo estava meio vazio, e o homem, solitário. O Paraíso era perfeito e, portanto, sem futuro. As árvores, ninguém para criticá-las; os jardins, ninguém para modificá-los; as cobras, ninguém para ouvi-las. Foi por isso que eu te fiz. Ele nem percebeu e custará os séculos para percebê-lo. É lento, o homenzinho. Mas, hás de compreender, foi a primeira criatura humana que fiz em toda a minha vida. Tive que usar argila, material precário, embora maleável. Já em ti usei a cartilagem de Adão, matéria mais difícil de trabalhar, mais teimosa, porém mais nobre. Caprichei em tuas cordas vocais, poderás falar mais, e mais suavemente. Teu corpo é mais bem acabado, mais liso, mais redondo, mais móvel, e nele coloquei alguns detalhes que, penso, vão fazer muito sucesso pelos tempos a fora. Olha Adão enquanto dorme; é teu. Ele pensara que és dele. Tu o dominarás sempre. Como escrava, como mãe, como mulher, concubina, vizinha, mulher do vizinho. Os deuses, meus descendentes; os profetas, meus public-relations, os legisladores, meus advogados; proibir-te-ão como luxúria, como adultério, como crime, e até como atentado ao pudor! Mas eles próprios não resistirão e chorarão como santos depois de pecarem contigo; como hereges, depois de, nos teus braços, negarem as próprias crenças; como traidores, depois de modificarem a Lei para servir-te. E tu, só de meneios, viverás.

Nasces sábia, na certeza de todos os teus recursos, enquanto o Homem, rude e primário, terá que se esforçar a vida inteira para adquirir um pouco de bens que depositará humildemente no teu leito. Vai! Quando perguntei a ele se queria uma Mulher, e lhe expliquei que era um prazer acima de todos os outros, ele perguntou se era um banho de rio ainda melhor. Eu ri. O homem e um simplório. Ou um cínico. Ainda não o entendi bem, eu que o fiz, imagina agora os seus semelhantes.

Olha, ele acorda. Vai. Dá-me um beijo e vai. Hmmmm, eu não pensava que fosse tão bom. Hmmmm, ótimol Vai, vai! Não é a mim que você deve tentar, menina! Vai, ele acorda. Vem vindo para cá. Olha a cara de espanto que faz. Sorri! Ah, eu vou me divertir muito nestes próximos séculos!"


Millôr Fernandes

A Cena Aberta

Anna Razumovskaya 

Ele me pegou olhando pra ele daquele jeito
ele me pegou olhando pra ele com aqueles olhos
bem na porta do camarim.
Ele me pegou assim
olhando pra ele e o roteiro de pecado é o que se lia nele
naquele olhar safado
que não dava nem pra disfarçar
mas que vinha de mim.

É que quando comecei a olhar
ele estava olhando pro lado
ele estava com o rosto virado pra lá.
Então meu olhar se sentiu autorizado a olhar.
Ele me pegou explícita.
A filha da puta da janela da alma
deu uma super vacilada
e quando ele bruscamente se virou pra cá
me flagrou na indecência muda daquele olhar.
Ah, meu Deus
não fosse aquilo camarim
e fosse ainda o palco
ao invés de eu estar agora
constrangida a escrever esse poema.
Diria pra ele
segura de mim à beça:
“Meu amor, isto é uma cena,
Faz apenas parte da peça.”
Mas não.
Camarim já, e não palco ainda
e aquele a quem eu olhava
me viu a mirá-lo
me sentiu
e viu que eu o desejava.
Não era pra ele ver,
não estava nos meus planos
e agora?
Ah, diretor, diretor
Interrompa o ensaio.
Ó, temporal, cancele o espetáculo!
Ó, acaso, misterioso amigo dos amantes,
Feche só por esta noite o teatro!
Então camarim e palco
se misturarão,
eu confessarei meu amor, minha paixão,
direi que aquele meu olhar
foi pura força de interpretação.


Elisa Lucinda
Bryce Cameron Liston

Não: uma torre se erguerá do fundo
Do coração e eu estarei à borda:
Onde não há mais nada, ainda acorda
O indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
Das coisas, e uma luz depois do escuro,
Um rosto extremo do desejo obscuro
Exilado em um nunca-apaziguar,

Ainda um rosto de pedra, que só sente
A gravidade interna, de tão denso:
As distâncias que o extinguem lentamente
Tornam seu júbilo ainda mais intenso.


Rainer Maria Rilke
Trad. Augusto de Campos

domingo, 24 de julho de 2011

Geometria dos ventos

Arkady Ostritsky

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.


Rachel de Queiróz

Metade pássaro



A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

 Murilo Mendes

O Poeta



Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.


Rainer Maria Rilke

Onde a poesia se exibe como um espetáculo espetacular



Onde a poesia se exibe como um espetáculo espetacular
não é poesia
onde a audácia do poema não é única
não é poesia
onde a poesia não é inocência de natureza fluvial
não é poesia
onde a poesia não é escandalosamente pura
não é poesia
onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
não é poesia
onde a poesia não é presença viva que nasce da solidão e da ausência
não é poesia
onde a poesia não se oferece no seu abandono
não é poesia
onde a poesia não é poesia
não é poesia


António Ramos Rosa

sábado, 23 de julho de 2011

Beleza


A palavra beleza, assim, solitária, virou gíria. Vou te buscar às nove. Beleza. Semana que vem estarei em São Paulo. Beleza. Entrou em cartaz o novo filme do Jorge Furtado. Beleza.
Real Beleza, quase acertou.
Poderia comentar as ótimas atuações do elenco, com destaque para a expressiva participação de Francisco Cuoco. Ou salientar a relevância da trilha sonora, que ficou a cargo de Leo Henkin. Ou registrar os ares de “As Pontes de Madison” que o filme invoca. Ou ainda celebrar as pausas e a economia dos diálogos sempre precisos do Jorge. Enfim, é mais um produto da grife Casa de Cinema, mas me deu vontade mesmo é de tentar definir o que é beleza, que está muito além de uma simples gíria.
Alguns consideram que o encantamento pelo belo é prova irrefutável da nossa superficialidade. Seria uma declaração de esnobismo. Ora, é justamente o contrário. A apreciação da beleza está intimamente ligada à nossa compreensão do quanto viver é difícil, ou seja, é prova da nossa profundidade. Quanto mais sintonizados com as dificuldades da existência, mais desfrutamos o belo.
O valor da beleza está na consciência do que é trágico.
A beleza de um quadro, de uma música, de um jardim, de um poema, de uma paisagem, do perfil de uma moça ou da postura de um rapaz é apreciada justamente pelo contraste com a decrepitude que há em torno, com a decadência das formas, com a frieza dos costumes, com o apodrecimento das intenções, com o feio em nossas vidas. A beleza é o alívio para a desesperança.
Percebê-la é um consolo, uma confirmação de que não fomos sepultados, não capitulamos, não fomos engolidos pela descrença.
Admiro quem reconhece o belo em todas as suas variadas manifestações, em quem se sensibiliza com ele em vez de criticá-lo como se fosse algo dispensável. A beleza é sempre uma homenagem. Contemplá-la é um gesto de grandeza. Pobres daqueles que a desprezam, que não percebem que a crueza da humanidade é uma desordem a ser combatida, que julgam natural permanecer em constante estado de dor e não alcançam jamais o êxtase, o enlevo, o deleite que resgata nossa essência.
A beleza de uma pessoa está em tudo que ela é. Tanto em sua aparência física (quando se tem a sorte de nascer com ela), como – e principalmente - na beleza buscada pelo espírito como forma de resistir à hostilidade que nos cerca, à escuridão e sua opressiva nuvem negra. Escapamos do breu através de olhares, silêncios, gestos, sorrisos, sutilezas, delicadezas, instantes, sintonias.
É apenas um filme e não trata de nada disso. Ou trata. Vai depender do seu olhar, do que você enxerga, de quão terna e bela é sua mirada pra vida.

Martha Medeiros

Lunar




O brilho nas pedras do passeio. Pontos de luz tremem sobre a água fina que a noite, a chuva, deixou sobre as pedras. Eu caminho sobre a organização das pedras do passeio. Diante de mim, um manto de pontos de luz que se acendem e que se apagam. A sua vida é breve. A minha vida é breve. São pontos de luz que abrem caminhos para que avance. As minhas botas pousam entre esses pontos de luz a nascerem, a viverem durante um instante e a morrerem para sempre. Mil pontos de luz a morrerem em instantes diferentes, em sítios diferentes, ignorando-se e fazendo parte da mesma ordem. Pelos muros do jardim, escorre uma camada fina de água, pele cristalina de cálice, água límpida como veneno. A repousar no topo do muro, a escorrer como uma avalanche suspensa, há plantas, folhas, ramos de árvores: braços verdes que pararam no momento em que se lançavam para agarrar alguém que, como eu, caminhava no passeio. Também na pele vertical do muro, também nas folhas, há pontos de luz que existem delicadamente. Como em olhos sinceros a brilhar. Mãos cheias de pó a brilhar lançadas sobre as pedras do passeio, sobre o muro do jardim e sobre os ramos que se atiram do seu topo.
Uma brisa ergue-se do interior da terra e chega a mim, à consciência de mim: o meu rosto, os meus lábios, o meu corpo tocado por essa brisa. Caminho por entre essa brisa a passar por mim, como se atravessasse uma multidão invisível. A brisa, ao tocar os meus olhos, transforma-se em lágrimas que descem frias pelo meu rosto. Os meus lábios. Sinto-as e sinto a memória das vezes que chorei o desespero parado, mais triste, de lágrimas que descem lentamente pelo rosto. O tempo passa por mim como qualquer coisa que passa por mim sem que a consiga imaginar e as lágrimas, que eram apenas a brisa a tocar os meus olhos, começam a ser lágrimas de desespero verdadeiro. Paro no passeio. O mundo pára. E lembro-me de ti como uma faca, uma faca profunda, a lâmina infinita de uma faca espetada infinitamente em mim. Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam com a noite. Noutras noites, olhamos para a lua. Nesta noite, não olhamos para a lua. Noutras noites, olhamos para a lua e enchemo-nos de desejos. Nesta noite, não olhamos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhamos para a lua e não sabíamos o que era sofrer. Escuridão e esperança. Na lua,víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu rosto, sei que nos enganamos e sei a lâmina infinita de uma faca. Lá no sul, onde nasci: o meu corpo dentro do corpo da minha mãe, sob a sua pele, encostado aos seus ossos; lá no sul, existem casas caiadas, existem campos, existem planícies que estão agora tão longe de mim e que, ao mesmo tempo, estão aqui porque são a memória de algo que sei que existe. Dentro dessa memória, na primeira vez que a lua se encheu e brilhou perfeita depois de eu nascer, a minha mãe esperou o momento em que todas as pessoas da casa adormeceram. Pousou sobre a mesa da cozinha o xaile com que me envolvia e abriu portas até descer os degraus do quintal. Tinha os pés descalços sobre a terra. Eram os últimos dias do verão. No centro do céu da noite, a lua tinha parado na explosão da sua luz branca e gelada. Os dedos da minha mãe eram grossos no momento em que, com ambas as mãos me levantou no ar, sobre a sua cabeça, na direção da lua e disse: Ò lua, ò luar,/ eu fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. Eu era pequeno e branco. Nos olhos da minha mãe via-se os seus braços erguidos, via-se o meu corpo dentro do círculo branco da lua.
refletiam a escuridão do mundo. Os meus olhos derramavam escuridão sobre o mundo. Estavas ainda perto de mim, olhava para o lugar onde sabia que estavas, a casa que te continha e, no entanto, aquela casa era um lugar escuro, um poço, era como se tivesses mergulhado dentro da imensidão negra que existe dentro de cada um de nós. Eu sabia que nunca mais te voltaria a ver. Eu desejava-te ainda. Agora, desejo-te ainda. Sei que existem cemitérios. Sei que a casa onde estás, o lugar onde te imagino a fazer tantas coisas, a não te lembrares de mim, é um lugar de destroços. Vivemos rodeados de cemitérios. Aquilo que fomos está enterrado à nossa volta e nunca poderemos saber onde deixamos tudo aquilo que não voltaremos a ver. No céu, a lua é a mesma que existia quando, deixando-te, caminhei pelas ruas desertas. Os meus passos na noite. Os meus passos e, lentamente, o dia a nascer sobre as coisas da noite. Lentamente, a noite fixa no seu lugar, nos objectos, nas casas, no céu, e o dia a envolvê-la como uma capa de luz cinzenta. Esta manhã lunar. Esta manhã que é uma manhã e que é ainda a noite. A lua neste céu branco. Pouso as pálpebras sobre os olhos. Vapor, nevoeiro. Os teus olhos eram um caminho. Os teus cabelos eram talvez um horizonte. Não sei como acreditámos que as palavras eram simples. Sonhávamos e enganamo-nos. Sorrindo, mergulhávamos os lábios no veneno quando pensamos que bebíamos o antídoto.
Abro os olhos e a manhã é igual. O nevoeiro fresco na minha pele. No céu, esta lua branca e gelada: padrões de gelo, formas moldadas de gelo. No céu, a imagem da eternidade. Desço o olhar e, à minha frente, as casas fechadas, as ruas desertas e reais. Existe qualquer coisa fria na realidade desta manhã. A cobrir as minhas pernas, o nevoeiro. A atravessar-me, uma voz. Distingo as palavras que diz através de mim: não podemos ser felizes. Sou atravessado por essas palavras como sou atravessado pelo nevoeiro. Recomeço a caminhar. Os meus passos são eu e eu sou esta manhã lunar. Caminho como se estivesse a ser, de novo, oferecido à lua pelos braços da minha mãe. Quando era criança, temia a morte. Agora, envelheço tanto.
Temo a morte mas sei que, se tentar fugir-lhe, estarei a correr na sua direção. Caminho sobre as pedras do passeio. Ouço os meus passos debaixo do nevoeiro. Fujo da morte porque quero correr na sua direção.
A memória como uma maldição. Caímos na eternidade e a memória é um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca poderemos voltar. Ó lua, ó luar,/ eu fi-lo nascer/ ajuda-mo tu a criar. A memória é como a esperança da minha mãe na noite em que me ergueu à lua e, sem saber, escolheu-me um destino. Lembro-me de quando nos conhecemos e esse dia está debaixo do teu olhar e desta noite. Lembro-me da minha mão pousada sobre a tua e esse instante está debaixo da palavra solidão. Lembro-me de tantas coisas impossíveis. Agora, caminho por esta manhã deserta. As pedras do passeio existem debaixo dos meus passos. Ninguém, nem sequer eu próprio, me pergunta para onde vou. Nas ruas desertas, sou uma multidão de gente mutilada a caminhar. Sou aquele que, esta noite, te viu partir, que olhou para ti quando os teus olhos se despediram e que não pôde fazer nada senão olhar para ti, o corpo que foi meu, e vê-lo afastar-se, cada vez mais longe dos meus braços. Sou aquele que nasceu lá no sul, longe de toda as desilusões, no lugar onde o passado pára, no último lugar do passado. Sou aquele que sonhou com tudo aquilo que é proibido sonhar.
Sou aquele que é todos estes e muito mais do que estes e que caminha por um passeio deserto, o nevoeiro, o brilho morrente da luz na água fina da chuva, sob um céu cinzento, sob a lua como um ponto para onde tudo se dirige. Caminho nesta manhã como se entrasse dentro de uma casa vazia, a casa que conheci, que foi minha e que abandonei, como se subisse as escadas dessa casa de salas mortas, cadeiras mortas, camas mortas, como se me aproximasse da janela e olhasse lá para fora, como se uma voz negra e terrível me atravessasse. A manhã é ainda lunar.
Nunca mais poderei deixar o meu corpo esquecido junto ao teu. O mundo que não existia longe da tua pele. Os meus dedos a deslizarem pela superfície da tua pele. E o desejo enganava-nos. Os meus dedos entre os teus cabelos e a inocência. A claridade dos dias que nasciam na tua pele branca, na forma suave da tua pele feita de silêncio. A inocência repetida em cada palavra da tua voz, como água de uma fonte, como a minha mão a atravessar o ar e a dirigir-se para o teu rosto. O teu olhar era a inocência. O meu olhar. E o silêncio de cada vez que queríamos falar de assuntos mais impossíveis do que a memória. Nunca mais poderei sonhar porque tu não estarás ao meu lado e, descobri hoje, só posso sonhar contigo ao meu lado. Espetada infinitamente em mim, uma faca infinita. Deixei de imaginar o futuro. Sobre esse tempo que não sei se chegará existe um manto muito mais negro do que aquele que cobre o passado. Não consigo olhar através desse tempo negro. O futuro estará depois de muitas noites, mas eu deixei de imaginar as noites. Sei que, da mesma maneira que esta noite se cobriu de manhã, esta manhã poderá anoitecer. Consigo imaginar cada tom das suas cores a tornarem-se negras. Não consigo imaginar este tempo a transformar-se noutro tempo. Contigo, perdi tudo o que fui para não ser mais nada. Deixei-me ficar nos sonhos que tivemos. Abandonei-me. Nunca mais entenderemos a lua como quando acreditávamos que aquela luz que atravessava a noite nos aquecia.
Nunca mais. Nunca mais poderemos sonhar. Nunca mais.

(continua na leitura do autor)


O brilho nas pedras do passeio. Dentro do nevoeiro, há pontos de luz mais grossos a brilharem. Moedas lançadas para um lago cheio de desejos. Caminho entre o brilho. Os meus passos afastam-me de nada. Existem veios de medo na brisa que atravesso. Linhas de medo que me tocam a pele. Atravesso a brisa e sou atravessado por uma voz que me diz: não podemos ser felizes. O medo. Sobre mim, o céu é o tempo do mundo. Todo o tempo de todas as pessoas do mundo. O céu é nunca mais. A lua somos nós, aquilo que
fomos. Como a memória, a lua existe nesta manhã para nos lembrar que existiram noites, que existiu esta noite em que nos separamos. Caminho sobre a organização das pedras do passeio, a organização do nevoeiro.
Rodeada pelo tempo do mundo, por nunca mais, a lua somos nós.


José Luís Peixoto


Primeira Carta Para Além dos Muros

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer.
É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras - como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar.
Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos talvez.
Por enquanto, ainda estou um pouco dentro daquela coisa estranha que em aconteceu. É tão impreciso chamá-la assim, a Coisa Estranha. Mas o que teria sido? Uma turvação, uma vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos cada vez mais velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que aconteceu na minha mente, sem que eu tivesse controle algum sobre o final magnético dos círculos içando o início de outros para que tudo recomeçasse. Todos foram discretos, depois, e eu também não fiz muitas perguntas, igualmente discreto. Devo ter gritado, e falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas para todos os lados, talvez batido em pessoas.
Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão descontínuos que. Que - não há nada depois desse que dos fragmentos - descontínuos. Mas havia a maca de metal com ganchos que se fechavam feito garras em torno do corpo da pessoa, e meus dois pulsos amarrados com força nesses ganchos metálicos. Eu tinha os pés nus na madrugada fria, eu gritava por meias, pelo amor de Deus, por tudo o que é mais sagrado, eu queria um par de meias para cobrir meus pés. Embora amarrado como um bicho na maca de metal, eu queria proteger meus pés. Houve depois a máquina redonda feita uma nave espacial onde enfiaram meu cérebro para ver tudo que se passava dentro dele. E viram, mas não me disseram nada.
Agora vejo construções brancas e frias além das grades deste lugar onde me encontro. Não sei o que virá depois deste agora que é um momento após a Coisa Estranha, a turvação que desabou sobre mim. Sei que você não compreende o que digo, mas compreenda que eu também não compreendo. Minha única preocupação é conseguir escrever estas palavras - e elas doem, uma por uma - para depois passá-las, disfarçando, para o bolso de um desses que costumam vir no meio da tarde. E que são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde estou daquelas construções brancas, frias.
Tenho medo é desses outros que querem abrir minhas veias.Talvez não sejam maus, talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever - essa é a certeza que te envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever.


Segunda Carta Para Além dos Muros


No caminho do inferno encontrei tantos anjos. Bandos, revoadas, falanges. Gordos querubins barrocos com as bundinhas de fora; serafins agudos de rosto pálido e asas de cetim; arcanjos severos, a espada em riste para enfrentar o mal. Que no caminho do inferno, encontrei, naturalmente, também demônios. E a hierarquia inteira dos servidores celestes armada contra eles. Armas do bem, armas da luz: no pasarán!
Nem tão celestiais assim, esses anjos. Os da manhã usam uniforme branco, máscaras, toucas, luvas contra infecções, e há também os que carregam vassouras, baldes com desinfetantes. Recolhem as asas e esfregam o chão, trocam lençóis, servem café, enquanto outros medem pressão, temperatura, auscultam peito e ventre. Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans, couro negro, descoloriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias limpas, fitas de Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall, notícias da noite (onde todos os anjos são pardos), recados de outros anjos que não puderam vir por rebordosa, preguiça ou desnecessidade amorosa de evidenciar amor.
E quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do crepúsculo além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros - mas o ângulo não favorece, e contemplo então a fúria dos viadutos e de qualquer maneira, feio ou belo, tudo se equivale em vida e movimento - abro as janelas para os anjos eletrônicos da noite. Chegam através de antenas. Fones, pilhas, fios. Parecem-se às vezes com Cláudia Abreu (as duas, minha brava irmã e a atriz de Gilberto Braga), mas podem ter a voz caidaça de Billie Holiday perdida numa FM ou os vincos cada vez mais fundos ao lado da boca amarga de José Mayer. Homens, mulheres, você sabe, anjos nunca tiveram sexo. E alguns trabalham na TV, cantam no rádio. Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas.
Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nuriev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Curill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passou a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: "Quem tem um sonho não dança, meu amor".
Eu desperto, e digo sim. E tudo recomeça.
Às vezes penso que todos eles parecem vindos das margens do rio Narmada, por onde andaram o menino cego cantor, a mulher mais feia da Índia e o monge endinheirado de Gita Mehta. Ás vezes penso que todos são cachorros com crachás nos dentes, patas dianteiras furadas por brasas de cigarro para dançar melhor, feito o conto* que Lygia Fagundes Telles mandou. E penso junto, sem relação aparente com o que vou dizendo: sempre que vejo ou leio Lygia, fico estarrecido de beleza.
Pois repito, aquilo que eu supunha fosse o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia guarda seu fio de luz. Nesse fio estreito, esticado feito corda bamba, nos equilibramos todos. Sombrinha erguida bem alto, pé ante pé, bailarinos destemidos do fim deste milênio pairando sobre o abismo.
Lá embaixo, uma rede de asas ampara nossa queda.


Última Carta Para Além dos Muros


Porto Alegre - Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Nem sinto culpa, vergonha, ou medo.
Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV Positivo. O médico viajara para Jokorama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural, comunicado à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa, me sentindo seguro - enlouqueci. Não sei detalhes. Por auto-proteção, talvez, não lembro. Fui levado para o pronto Socorro do Hospital Emílio Ribas com suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos - médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios - e uma corrente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram dentro de mim até tornaram-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé.
A vida me dava pena, e eu não sabia que o corpo ("meu irmão burro", dizia São Francisco de Assis) podia ser tão frágil e sentir tanta dor. Certas manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do cemitério no outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam, de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista que vela por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta, só aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito as borboletas que duram só um dia depois do casulo. Pois há um casulo rompendo-se lento, casca seca abandonada. Após, o vôo do Ícaro perseguindo Apolo. E a queda?
Aceito todo dia. Conto para você, porque não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo. Sei que você compreende.
Sei também que, para os outros esse vírus de science fiction só dá me gente maldita. Para esse, lembra Cazuza: "Vamos pedir piedade, Senhor, piedade para essa gente careta e covarde". Mas para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do tempo e creme Chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco apouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem. Armado com as armas de Jorge. Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro, mas - para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela - como como não se pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não: ave Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê.
Vejo Dercy Gonçalvez, na Hebe, assisto A Falecida de Gabriel Villela no Teatro São Pedro; Maria Padilha conta histórias inéditas de Vicente Pereira; divido sushis com a bivariana Yolanda Cardoso; rezo por Cuba; ouço Bola de Nieve; gargalho com Déa Martins; desenho a quatro mãos com Laurinha; leio Zuenir Ventura para entender o Rio; uso a estrela do PT no peito (Who Knows?) ; abro o I Ching ao acaso : Shêng, a Ascensão ; não perco Éramos Seis e agradeço, agradeço, agradeço.
A vida grita. E a luta, continua.



Caio Fernando Abreu
 


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. 
Em cofre não se guarda coisa alguma. 
Em cofre perde-se a coisa à vista. 

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por 
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. 

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por 
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
 isto é, estar por ela ou ser por ela. 

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro 
Do que um pássaro sem voos. 

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, 
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo: 
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: 
Guarde o que quer que guarda um poema: 
Por isso o lance do poema: 
Por guardar-se o que se quer guardar. 


Antônio Cícero 

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Sonnet 18




Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm'd;
And every fair from fair sometime declines,
By chance or nature's changing course untrimm'd;
But thy eternal summer shall not fade
Nor lose possession of that fair thou owest;
Nor shall Death brag thou wander'st in his shade,
When in eternal lines to time thou growest:
So long as men can breathe or eyes can see,
So long lives this and this gives life to thee.

William Shakespeare

Desiderata


 Max Ehrman 

Go placidly amid the noise and haste,
and remember what peace there may be in silence.
As far as possible, without surrender, be on good terms with all persons.
Speak your truth quietly and clearly; and listen to others,
even to the dull and ignorant; they too have their story.

Avoid loud and aggressive persons, they are vexations to the spirit.
If you compare yourself with others, you may become vain and bitter,
for always there will be greater and lesser persons than yourself.
Enjoy your achievements as well as your plans.

Keep interested in your own career, however humble;
it is a real possession in the changing fortunes of time.
Exercise caution in your business affairs,
for the world is full of trickery.
But let this not blind you to what virtue there is;
many persons strive for high ideals,
and everywhere life is full of heroism.

Be yourself. Especially do not feign affection.
Neither be cynical about love;
for in the face of all aridity and disenchantment
it is as perennial as the grass.
Take kindly the counsel of the years,
gracefully surrendering the things of youth.
Nurture strength of spirit to shield you in sudden misfortune.
But do not distress yourself with dark imaginings.
Many fears are born of fatigue and loneliness.

Beyond a wholesome discipline, be gentle with yourself.
You are a child of the universe no less than the trees and the stars;
you have a right to be here. And whether or not it is clear to you,
no doubt the universe is unfolding as it should.

Therefore be at peace with God, whatever you conceive Him to be.
And whatever your labors and aspirations,
in the noisy confusion of life, keep peace with your soul.
With all its sham, drudgery and broken dreams,
it is still a beautiful world.
Be cheerful. Strive to be happy.

 Max Ehrmann




Se me é negado o amor, por que, então, amanhece;
por que sussurra o vento do sul entre as folhas recém nascidas?
Se me é negado o amor, por que, então,
A noite entristece com nostálgico silêncio as estrelas?
E por que este desatinado coração continua,
Esperançado e louco, olhando o mar infinito?


Rabindranat Tagore

A Solidão

Edward Hopper

O que não aconteceu foi
rápido, fiquei para sempre,
sem saber, sem que me soubessem,
como debaixo de um sofá,
como perdido pela noite:
assim foi aquilo que não foi,
e assim eu fiquei para sempre.
Aos astros perguntei depois,
para as mulheres, para os homens,
o que faziam com tanta razão
e como aprenderam a vida:
na realidade não falaram,
seguiram dançando e vivendo.
O que não passou com alguém
é que determina o silêncio,
e não quero seguir falando
porque eu fiquei ali esperando:
nessa região, naquele dia
não sei o que me aconteceu

Pablo Neruda
kepeslap

da fragilidade que me cerca

tudo o que me sustenta
é frágil:

o fio de arame
que me faz a travessia

a paixão
que me costura as horas

tudo o que me consola
é frágil:

os pedaços de lembranças
que me fogem entre os dedos

o abraço que não aquece o sonho
na noite de invernia

só a palavra é forte!


Ademir Antonio Bacca

Força do Poema

kepeslap

de quantas palavras
precisa o poeta
para o poema?

algumas.

a força do poema
está na imaginação
daquele que o lê.


 Ademir Antonio Bacca

Nasci para a vida
De morte vivi
Mas tudo se acaba
Silêncio. Morri.

 Ana Cristina César


Agora eu era linda outra vez
Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor


Valter Hugo Mãe

Depois de um tempo




Depois de um tempo você aprende 
a sutil diferença entre 
segurar uma mão e acorrentar uma alma 
e você aprende 
que amar não significa apoiar-se 
e companhia não quer sempre dizer segurança 
e você começa a aprender 
que beijos não são contratos 
e presentes não são promessas 
e você começa a aceitar suas derrotas 
com sua cabeça erguida e seus olhos adiante 
com a graça de mulher, não a tristeza de uma criança 
e você aprende 
a construir todas as estradas hoje 
porque o terreno de amanhã é 
demasiado incerto para planos 
e futuros têm o hábito de cair 
no meio do voo 
Depois de um tempo você aprende 
que até mesmo a luz do sol queima 
se você a tiver demais 
então você planta seu próprio jardim 
e enfeita sua própria alma 
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores 
E você aprende que você realmente pode resistir 
você realmente é forte 
você realmente tem valor 
e você aprende 
e você aprende 
com cada adeus, você aprende. 

***

After a while 

After a while you learn 
the subtle difference between 
holding a hand and chaining a soul 
and you learn 
that love doesn't mean leaning 
and company doesn't always mean security. 
And you begin to learn 
that kisses aren't contracts 
and presents aren't promises 
and you begin to accept your defeats 
with your head up and your eyes ahead 
with the grace of woman, not the grief of a child 
and you learn 
to build all your roads on today 
because tomorrow's ground is 
too uncertain for plans 
and futures have a way of falling down 
in mid-flight. 
After a while you learn 
that even sunshine burns 
if you get too much 
so you plant your own garden 
and decorate your own soul 
instead of waiting for someone 
to bring you flowers. 
And you learn that you really can endure 
you really are strong 
you really do have worth 
and you learn 
and you learn 
with every goodbye, you learn. 


Veronica Shoffstall 

terça-feira, 19 de julho de 2011

Aqui está-se sossegado

edward hopper 


Aqui está-se sossegado, 
Longe do mundo e da vida, 
Cheio de não ter passado, 
Até o futuro se olvida. 
Aqui está-se sossegado. 

Tinha os gestos inocentes, 
Seus olhos riam no fundo. 
Mas invisíveis serpentes 
Faziam-a ser do mundo. 
Tinha os gestos inocentes. 

Aqui tudo é paz e mar. 
Que longe a vista se perde 
Na solidão a tornar 
Em sombra, o azul que é verde! 

Sim, poderia ter sido... 
Mas vontade nem razão 
O mundo têm conduzido 
A prazer ou conclusão. 
Sim, poderia ter sido... 

Agora não esqueço e sonho. 
Fecho os olhos, oiço o mar 
E de ouvi-lo bem, suponho 
Que vejo azul a esverdear. 
Agora não esqueço e sonho. 

Não foi propósito, não. 
Os seus gestos inocentes 
Tocavam no coração 
Como invisíveis serpentes. 
Não foi propósito, não. 

Durmo, desperto e sozinho. 
Que tem sido a minha vida? 
Velas de inútil moinho — 
Um movimento sem lida... 
Durmo, desperto e sozinho. 

Nada explica nem consola. 
Tudo está certo depois. 
Mas a dor que nos desola, 
A mágoa de um não ser dois — 
Nada explica nem consola. 


Fernando Pessoa
In Poesias Inéditas (1919-1930)