sábado, 16 de agosto de 2014

Cada verso que escrevo é sem razão



Se a esquiva é o desvão do fingimento, 
o silêncio sugere o sim e o não. 
Se a lembrança prepara o esquecimento, 
cada verso que escrevo é sem razão. 
Muito mal representa este momento; 
o passado e o futuro, pouco então. 
A distância do verbo ao pensamento 
é-me acima a do claro à escuridão. 
Já não sei o porquê do movimento 
que se dá entre a pauta e a minha mão. 
Se há gozo, confundo com o tormento 
—duas faces da mesma sensação—.
Um poema não diz meu sentimento, 
cada verso que escrevo é sem razão.


Antoniel Campos

 
Jose Royo


Poetry is not a turning loose of emotion, but an escape from emotion; it is not the expression of personality, but an escape from personality. But, of course, only those who have personality and emotions know what it means to want to escape from these things.

T. S. Eliot

Madame butterfly, velha


Engano: não, não me matei,
suguei
a vida que outros deram.

Gueixa nasci e aqui estou de gueixa,
borboleta que fui, borboleta que sou,
mosca, ah, sim, mosca,
mas de manteiga.

E envelheço porque não morri.
Envelheço? Não pode envelhecer
quem sempre foi assim.
Dizem-me velha? Olhem-me as pinturas:
todos os dias chegam barcos,
barcos, marinheiros,
todos os dias chegam.

  
Pedro Tamen 


Raciocínio


Uma das regras fundamentais do raciocínio é distinguir o fundamental e o acidental em determinada teoria, distinguir a teoria essencial e a aplicação particular que um ou outro lhe dê. Assim, se discutirmos o problema da existência de Deus, devemos começar por definir o que se entende por Deus nesse problema. Se se entende, como é de presumir, um ente espiritual supremo, criador do mundo, então, nesse sentido, examinaremos o problema, não o misturando com o problema acidental da existência ou não existência de um Deus omnipotente, ou bom, ou infinito. Este último é um conceito particular de Deus, não o conceito geral. É concebível um ente criador finito do mundo; é concebível um criador do mundo que não seja mau nem bom; é concebível um criador do mundo que não seja omnipotente. Cumpre, em suma, distinguir a ideia geral de Deus da ideia particular de Deus na Igreja Católica ou qualquer outra Igreja. Sem fazer esta distinção, não estaremos examinando o problema, mas outro problema.
Por isso o que há de fundamental em raciocínio é definir os termos que se vão empregar, ou os que se vão analisar. Muitas discussões resultam frustes e inúteis porque, girando em torno de certo termo, cada contendor dá a esse termo um sentido diferente; de modo que, julgando que estão discutindo a mesma coisa, estão, ao contrário, discutindo coisas diferentes. Já tem sucedido, por este erro, estarem discordando contendores que estão de acordo, e que o verificariam logo se começassem por definir, limitar, compreender o que é que, em suma, estão discutindo.

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.  - 140.

Pequena meditação

Juan Fortuny 


Chorai, negras águas,
À sombra das pontes,
Na raiz das árvores.

Tempo melancólico
Amarrando os braços
Dos altos relógios.

Cresceriam lágrimas,
Se não se abolissem
As lembranças cálidas.

Noites antiqüíssimas
Até nos esperam
Nomes de carícia.

Seremos idênticos
Ao passado enorme,
De amor e silêncio,

Ao jamais recíproco
Sonho que resvala
Para precipícios.

Só triste matéria
Lembrará mais tarde
Nossa descendência.

Em ruas contrárias,
Vereis negros tetos,
Como velhas máscaras.

Mas não esta fluida
Verdade da vida.
As mãos – sem a música.

Chorai, negras águas,
A dor, vagarosa,
E a memória, rápida.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

O sofrimento do hipócrita



Ter mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, por açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjoo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva é coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e levanta-se. O traidor não é mais que um déspota tolhido que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita é um titã-anão.

Victor Hugo, in "Os Trabalhadores do Mar"

Girassol



Em minha mão fechada cabe o dia,
o fogo aleatório dos instantes
e o silêncio que espalham os amantes
quando termina a festa e nada resta

da luz petrificada entre as montanhas.
Em minha mão aberta cabe a sombra
largada pela vida que me espera
além do inverno, quando a primavera

devolve ao caule a rosa fenecida
e o que foi volta a ser, e toda perda
retorna como um lucro imerecido.

A minha mão sustenta um girassol.
Sou sobra e o excesso, como o vento
ou como a luz incômoda do sol.


Lêdo Ivo, in "Curral de Peixe",

Geografia

Sergei Marshennikov

Faça do meu corpo
o teu mapa,
teu continente perdido,
Atlântida de mistérios,
tua ilha nunca antes habitada.
Faça do meu corpo
teu porto e teu pequeno barco.
Faça do meu corpo
tua carta,
tua secreta caligrafia,
tua estrela cadente.


Roseana Murray
do livro No Cais do Primeiro Amor, ed. Larousse

Interior

Vasil Vasilev 


eu sou mais do chão ainda
mais da terra, mais do gado
cada vez mais me pareço
com esse mato todo errado

a cada dia mais perto
do que não foi retocado
cada vez mais distante
de ser homem letrado
a cada passo eu ando
mais sem trato,mais largado
descomposto e descuidado
com as coisas que tem maneira
to mais perto da besteira
que do que é estudado

cada vez mais me pareço
a essa terra e a esse gado

tô mais perto da quietura
que de tudo que é falado
e quanto mais vou aprendendo
mais vou ficando calado
é essa minha natureza
e vem dessa natureza
todo meu aprendizado

cada vez mais me assemelho
a esse mato sem cercado
sendo muito mais da terra
do aberto, do descampado
quanto mais vou parecendo
menos fico precisando

não careço o movimento
com solidão e silêncio
eu já sou acostumado
tenho sossego do céu
e sei viver do pensado

e pros lados da cidade
não sou de viver à vontade
fico esquisito, acuado

sou cada vez mais do chão
homem do meu pedaço
não precisa de lição
quem aprende a cada passo
sou homem que imita a terra
e é por isso que eu me basto

e sou cada vez mais isso
cada vez eu sou mais bicho.

Bruna Lombardi

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

emile vernon 


Canta!
Se sentires medo, canta.
Mas se em ti não couber a alegria, não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta.
Constrói o teu amor, vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem,
o que mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual,
nada será igual alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança.
E canta quando a esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e
porque gostas de cantar e
porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso.
Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade.


Joaquim Pessoa

Diane Leonard 


Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.


João Cabral de Melo Neto, in: À Carlos Drummond de Andrade.
Poema publicado originalmente no livro "O Engenheiro", de 1945

Só é fútil quem não ama

Daniel F. Gerhartz 


No amor, eu quero ser útil.
Que você aceite o que tenho para dar, senão dói o excesso em mim.
O excesso que não é dado me machuca.
O excesso que não é dado acaba em egoísmo.
O abraço que fica comigo me emburrece. O beijo que fica comigo me angustia. A palavra que fica comigo me tranca. O sonho que fica comigo é solidão.
Aceitar o que ofereço já é me cuidar. Aceitar o que ofereço já é me amar.
Que você me deixe ser carinhoso, que me deixe ser romântico, que me deixe ser educado, que me deixe ser tarado, que me deixe ser preocupado, que me deixe falar bobagem para atrair sua infância.
Que me deixe comprar presente, oferecer carona, preparar café na cama, perguntar mil vezes se está tudo bem.
Que não diga que não precisa. Não precisar é negar, não precisar é não dar importância.
Quero que você queira estar comigo quando estiver enjoada, com febre, dor de cabeça, gripada, que eu seja sua emergência, sua urgência, seu colo e suspiro.
Quero que você queira conversar comigo porque sou seu melhor conselheiro, que seja seu contato mais usado no celular, a primeira pessoa a quem você deseja contar uma novidade.
Quero que você queira assistir filme comigo para segurar minhas mãos e pedir meu abraço, que eu seja seu casaquinho do cinema.
Quero que você queira beber comigo para brindar: vinho para segredos, cerveja para fofocas, uísque para assuntos sérios, tequila para loucura.
Quero que você queira transar comigo para que possa escrever meu suor em sua pele.
Quero que você queira minha barba, meu perfume, meu toque, minhas pernas, meu peso.
Quero que você queira passear comigo no fim de tarde, caminhar pela Encol tomando chimarrão enquanto o sol faz chapinha nas nuvens.
Quero que você queira ouvir meus textos, refletir comigo, contestar o que não acredita.
Quero que você queira que não viaje a trabalho, parando na frente da porta com suas chantagens eróticas.
Quero que você queira subir a serra de repente, para escolhermos as músicas de nossa preferência.
Quero que você queira voltar correndo para casa e grite meu nome como sua campainha.
Quero que você queira não largar a cama durante o frio para levantarmos um acampamento farroupilha no quarto.
Quero que você queira mostrar seus trabalhos, suas ideias, ouvir com atenção meus comentários, agradecer minha atenção.
Quero que você queira a cumplicidade como nunca houve na vida de nenhum dos dois, quero que você queira a exclusividade, que nos defenda para os amigos, que não nos fragilize perante os outros.
Quero que você me queira sempre, acima de tudo.
Porque só posso ser útil para quem me quer.

Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 13/7/2014 Edição N° 17858

Dor elegante

by Fabian Perez


Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra


Paulo Leminski

sábado, 9 de agosto de 2014

Ode Fragmentária. 1961 - Heróicas

Lady of silence
Calm and distressed
Torn and most whole
Rose of memory

T.S. Eliot



Se há muito o que inventar por estes lados
O que sei com certeza são meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza.

À procura da rosa tenho andado
Causando às criaturas estranheza.
(Se me encontrares
Terei um jeito de flor
E um não sei quê de brisa
Nos meus ares.
Hei de buscar a rosa
- A dos altares -
E sinto graça nos pés
Leveza nos andares)

Não temes
As deidades atentas da memória
Os gnomos secretos, a loucura,
A morte?


Morremos sempre.
O que nos mata
São as coisas nascendo:
Hastes e raízes inventadas
E sem querer e por tudo se estendendo
Rondando a minha
Subindo vossa escada.
Presenças penetrando
Na sacada.

Invasões urdindo
Tramas lentas.

Insetos invisíveis
Nas muradas.

Eis o meu quarto agora:
Cinza e lava.
Eis-me nos quatro cantos
(Morte inglória)
Morrendo pelos olhos da memória.
Aproximam-se.
E libertos de presença da carne
Se entreolham.

O teu nascer constante
Traz castigo.
Os teus ressuscitares
Serão prantos.


Distorço-me na massa
De uma argila sem cor.
Mil vezes me refaço
E me recrio em dor.

E pouso lentamente
Sob a testa fria
Os girassóis da mente.

Antes as órbitas vazias!
Será eterno o júbilo de ter
Espátulas e nume
Nas mãos e no ser?

Bastasse o confessar-me a assim punir-me
De toda intemperança dos humanos.
Bastasse o que não sou e o refluir-me
Longínqua na maré desordenada. 


Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
E o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.


Um todo me angustia.

Se era de amor a ilha
E o mar à minha volta,
Não será menos certo
Que a sextilha de agora
Das formas que pensei
É a mais remota.
Temos jeitos de ser.
(Às vezes obscuros
Como convém ao ser)
Se em nada me detenho
Água de muitos rios
Passando por canais
De grande amor e mágoa,
Em tudo me detenho
Eu sei que sou raiz.

E se às vezes abrigo
Num caminhar rasteiro
As solidões alheias,
Às vezes vertical
Encontro aquele mundo
que é também o da terra
Feérico e abismal.

Tão grande ambivalência
Concedida aos homens
Terá sido dos deuses
Complacência?


Se falo
É por aqueles mortos
Que dia a dia
Em mim ressuscitam.
De medos e resguardos
É a alma que nos guia
A carne aflita.
E de espanto
É o que tecemos:
Teias de espanto
Ao redor
Da casa
Onde vivemos.
Trituramos cada dia
(Agonizantes amenos)
Constelações e poesia
E um certo jeito de amar
Que a nós,
De vôos e vertigens,
Não convém.
E quem sabe o que convém
A seres tão exauridos.
Concedemos
Alento, nudez, lirismo.
E contudo o que mais somos
São estes sonhos
Adentros indevassáveis
Bosques
Lilazes
Caminhos levando ao mar
Aves
Aves.


Ramas nas margens do rio que me pretendo.
E entre rio e regato, prodigiosa e leve
Levo no meu leito mais auroras.

Contente de mim mesma me inauguro sonora.

Se é preciso parar, colher raízes
Rememorar as sagas e ao lembrá-las
Imaginar um gesto, vado e vaga,
É preciso também
Um riso aberto e claro e cristalino.
E retomando o caminho da rosa
De órbita ilimitada mas fremosa
Me vejo em penitência, brasa e espinho.

Ah, deidades,
O vosso riso inflama
Ainda mais
O passo de quem ama.
De coração ardente
Eis-nos aqui.
Não haverá magia
Nem vertente
Nem segredo conluio
Nem labareda clara
ostentando uma rosa
Que não a preclara,
Que cegue o entendimento

Ou que vacile o andar.
Somos a um mesmo tempo
Rio e mar.
Na laringe e no peito
Renasce cada dia
Um estigma de luz
Um signo perfeito
E nada nos escurece a mente ou nos seduz.


Vós, humanos,
De gesto tanta vezes suplicante.
De coração ardente, dizeis?

A nós parece exangue
Esse pulsar contínuo
E tarefa insensata
Porque nós, divinos,
Temos no peito a força
o altar
A lança
E um todo movediço nos contém.
E se o arder renova
A sarça e a esperança,
um secreto poder
Consome a própria chama.
Vós, humanos,
De invólucro oscilante
E impermanente
Mortais e fustigados
Pretendeis o mais alto?
Amargados destinos.
Buscar a rosa
Cabe a nós, divinos.
Em nós a claridade
em nós tamanho amor
E sol e santidade...

E suas gargantas de aço
Inundaram de lava
Aquilo que era espaço


Era ali? Era adiante naquele muro
De claro verde musgo? Era distante?

Os mortos ressurgiram e cantaram:
Se a perfeição é a morte
Talvez por isso imortais
Há muito que existimos.
Mas se algum dentre vós
É de sopro divino,
Encantai-nos:
Árvore, pedra, ar, se vos apraz
Vida perpétua mas paciente e quieta.
Se o que vos guia e a fala de um poeta
Há muito entre nós. E procuraram
o todo uniforme: Hálito, sudário
E o mais além do homem.
Iguais a vós, a nós nos encontraram.
Eram velozes e límpidos. Asas
Nos pés humanos e por isso frágeis.

E apesar da eloquência que os mantinha
quando a noite chegava se crispavam
Como a mulher fecunda que é sozinha
E sabe do seu tempo incerto e pouco.

Como os humanos temem suas trevas!
Como temeis em vós a criatura!
E o mal sabeis que é sempre na clausura
que a vida se aproxima e recomeça.
Humildade e abandono. E que a palavra
Se tentar existir, seja singela.
E se for sábia, estranha  à vossa lavra
Orai àqueles que a fizeram bela.


Ai de nós, peregrinos,
Antes do amanhecer
Sonhando eternidades!
Não é nosso o destino
De amar e florescer.
Antes vertiginosos
Tateamos na sombra
A laje dos abismos.
E uma vez lacerados
Queremos a montanha.
Seu arco-íris. Seus lagos.

Amor e amenidade
São reservados aos filhos,
Aos amantes. A nós
Que verdes e que prados
E que planície extensa
Nos tranquiliza o olhar?

Se fôssemos aqueles
Feitos de areia, tantos,
Onde a água resvala
E volta e serpenteia
Mas deixa um só vestígio:
De umidade ou de pranto.

Ai de nós, mutilantes,
De afetos imprecisos,
De repente tomados
À lua das vazantes
Num relance possessos
Possuídos
Inflamando o sentir
Recomeçando aquele, o mesmo canto.

Estuários frequentes
Desviam nossas velas.
E de que lado, onde
Uma visão mais bela
Se o único prazer
é ter o mar, o vento
E naufrágios além
E descobertas
E permanências veladas
Muito ausência.
Em que montanha azul a nossa meta?


Se havia em nossa voz uma cadência,
Crescia em nosso peito uma brandura
Tão poderosa e viva e assim tão pura
Como se fosse a vida, a nossa vida,
Um caminhar tranquilo de inocência.
Um pouco do divino estava em nós.
Descobri-lo foi antes debruçar-se
Descer pausada sem tocar rochedos
Água de um mar imenso mas guardado
Sob um caudal de lírios e de medos.
Era do alto a força que nos vinha.
E à memória do tempo incorporou-se
Outra memória lúcida e candente.
Éramos nós ainda sibilantes
Soprando a cinza secular da mente?
Dou testemunho apenas da certeza
De uma visão suprema, luz e prata
De dimensão tão vasta e tão serena
Que o poeta apesar de ter vivido
Seus cânticos de amor
E de saber-se até predestinado
Porque sentiu temores, alegrias,
Guardou-se amante, iluminou-se crente
Cobriu-se de ternuras e de lendas

Não conheceu prazer ilimitado
Que suportasse o humano e suas penas.


Rosa consumada
Trajetória perfeita
Exatidão mais alta!

Pesa sobre nós
O limite da carne

O pensamento
Discursivo e lento.
Em nós
Corpóreos e pequenos
A fúria da vontade
E as mil abstrações

No amor e na verdade.

Nem sabemos por que
Construímos e amamos.

Mutáveis, imperfeitos
O mundo nos oprime

E nos comprime o peito.

Dúplices e atentos
Lançamos nossos barcos

No caminho dos ventos.

E nas coisas efêmeras
Nos detemos.

Hilda Hilst, Ode Fragmentária. 1961 - Heróicas
do livro Exercícios, Editora Globo, p. 133-148

Pinturas: Arkady Ostritsky

sábado, 2 de agosto de 2014



De tudo que é excrescência, 
Desfaz o véu que te embacia a face, 
Descalça os pés e sente a pura terra. 
Desfaz-te da palavra que já vem mentida, 
Do teu instinto de defesa 
E dá a mão à nuvem que caminha por ti. 
Se queres encontrar o teu canto 
Deixa-te guiar pelas coisas ressoantes, 
Se queres encontrar o que perdeste, 
Se queres descobrir o que consola 
E por que clamam os teus sonos tristes 
Encolhe-te no silêncio. 
Tudo a que aspiras são cadeias 
Que te prendem ao pensamento consternado 
Que o tempo reduz superado 
Antes do primeiro desejo sepultado. 

Adalgisa Nery 

Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.
Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,
de palavras adormecidas, em altas prateleiras,
até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,
que um dia, pode ser, pareceu tão terrível.

A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.
Resplandecem os azulejos – é tudo quanto posso ver.
O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário
cismar. Talvez se as pálpebras pudessem
inventar outros sonhos, não de vida...

Ah! rompem-se na noite ardentes violas,
pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.
Por onde pascerão, nestes céus invioláveis,
nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...
Não só de amor a noite transborda mas de terríveis 
crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.

Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,
e os homens da lei sonolentos movem letras 
sobre imensos papeis que eles mesmos não entendem...
Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se da aérea varanda?
Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos
da álgebra e da geometria. 


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

Canção pensativa



Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levanta-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)


Lya Luft, em "Secreta mirada"

Meu amor é redundante




Eu te amo não somente quando te amo. Eu te amo quando tenho esperança. Eu te amo quando estou desesperado. Eu te amo com toda ansiedade. Eu te amo com toda calma. Eu te amo quando louco. Eu te amo quando lúcido. Eu te amo quando insisto. Eu te amo quando desisto. Eu te amo na amizade. Eu te amo na desavença. Eu te amo quando tenho medo. Eu te amo quando crio coragem. Eu te amo quando distraído. Eu te amo quando excitado. Eu te amo quando doce. Eu te amo absolutamente amargo. Eu te amo quando penso. Eu te amo quando esqueço. Eu te amo quando jovem. Eu te amo envelhecendo. Eu te amo paranoico. Eu te amo centrado. Eu te amo ciumento. Eu te amo independente. Eu te amo quando viajo. Eu te amo quando volto. Eu te amo na saudade. Eu te amo no ressentimento. Eu te amo quando vingativo. Eu te amo quando desculpo. O amor não se basta no amor. Usa tudo o que sinto, tudo o que tenho, tudo o que perdi. Corrompe tudo o que sei, tudo o que vivi, tudo o que sonhei, tudo o que não fiz. O amor é um disfarce de todos os outros sentimentos. O amor é também desamor. Meu amor é redundante.


Fabrício Carpinejar

Aviso aos náufragos




Esta página, por exemplo, 
não nasceu para ser lida. 
Nasceu para ser pálida, 
um mero plágio da Ilíada, 
alguma coisa que cala, 
folha que volta pro galho, 
muito depois de caída. 

Nasceu para ser praia, 
quem sabe Andrômeda, Antártida, 
Himalaia, sílaba sentida, 
nasceu para ser última 
a que não nasceu ainda. 

Palavras trazidas de longe 
pelas águas do Nilo, 
um dia, esta página, papiro, 
vai ter que ser traduzida, 
para o símbolo, para o sânscrito, 
para todos os dialetos da Índia, 
vai ter que dizer bom-dia 
ao que só se diz ao pé do ouvido, 
vai ter que ser a brusca pedra 
onde alguém deixou cair o vidro. 
Mão é assim que é a vida? 


Paulo Leminski
In Distraído Venceremos, 1987 

Navegante



e fica estabelecido
a cada manhã
o milagre da vida
como um jorro 
que nascesse das entranhas
da terra.

amealhar o tempo
o que pousa por sobre 
os telhados
como ave de bom agouro

como um girassol busca o sol
e um navegante solitário
busca os insondáveis segredos
do vento
assim
do outro lado do rio
um coração marca as horas
à espera do teu

Roseana Murray

Porta-retrato


Tinha secado: esse era talvez o ponto. Não a palavra exata, que já não tinha essas pretensões, mas a mais próxima. Sabia pouco a respeito de árvores, ou sabia de um jeito não-científico, desses de tocar, cheirar e ver, mas imaginava que o processo interno de ressecamento começasse bem antes da morte aparecer no verde brilhante das folhas, na polpa dos frutos ou na casca do tronco. Não era evidente nem externo ou explícito o que padecia. E padecia? perguntava-se detalhando os traços com as pontas dos dedos, nada que revelasse na umidade da boca ou num contorno de nariz — uma dor? Não era assim. Gostaria de voltar atrás, com sentimentos curtos e claros feito frases sem orações intercaladas, iluminar aos poucos, um mineiro, uma lanterna, o poço fundo, uma linguagem? A unha batia contra o dente. Contatos assim: uma coisa definida chocando-se com outra definida também. E não só contatos, emoções, linguagens. Quase analfabeto de si mesmo, sem vocabulário suficiente para explicar-se sequer a um espelho. Não queria assim, esses turvos. Não queria assim, esses vagos. Sem nenhum humor. Sem nada que pulsasse mais forte que o frio cuidado com que desordenava-se, um gole disciplinado de vodca quando alguma corda do violino rebentava em plena sinfonia e, no meio do palco, impossível deter o acorde. Unicamente imagens assim lhe ocorriam, essa coisa das árvores, das gramáticas, das minas, dos concertos. Elegantemente, sempre. As luvas brancas, as longas pinças esterilizadas com que tocava sem tocar o todo, o tudo e o si. Um vício que lhe vinha quem sabe da mania de ouvir música erudita, mesmo enquanto apenas vivia, antes os fones nos ouvidos que os gritos na vizinhança. E por mais que afetasse um ar de quem lentamente cruza as pernas em público, puxando com cuidado as calças para que não amarrotassem, saberia sempre de sua própria farsa. Tão consciente- mente falsa que sua inverdade era o que de mais real havia, e isso nem sequer era apenas um jogo de palavras.

A grande mentira que ele era, era verdade. Ou: a mentira nele nunca fora fraude, mas essência. Seu segredo mais fundo e mais raso, daí quem sabe a surpresa branca de quando ouvira um quase-amigo dizer que não passava de uma personagem. Prometera-se sentimentos sem intercalados, mas sentia agora uma necessidade de explicar ao ninguém que superlotava sua constante platéia, com ele sempre fora assim: quase-amigos, nada de intimidades. Mas voltando atrás no ir adiante: uma surpresa quê. Não, não uma surpresa quê. Uma não-surpresa surpreendida, pois como e porque se fizera visível e dizível naquele momento o que nem sequer alguma vez escondera? Perdia-se, não eram teias. Nem labirintos. Fazia questão de esclarecer que sua maneira torcida não se tratava de estilo, mas uma profunda dificuldade de expressão. Por esse lado, quem sabe? As emoções e os pensamentos e as sensações e as memórias e tudo isso enfim que se contorce no mais de-dentro de uma pessoa — tinham ângulos? Havia lados mais como direi? Fragmentava-se: era os pedaços descosturados de uma colcha de retalhos. Pedia atenção aqui, por favor, mais por gestos, entonações ou simplesmente clima, e regirava: era os retalhos, um por um, não a colcha, ele. Desde o xadrez vermelho ao cetim roxo sem estampa, e assim por diante, todos. Quase parava de aborrecer-se então, como quem troca súbito uma peça para violino e cravo por um atabaque de candomblé. O leve tédio suspenso como poeira espanada logo voltava a desabar. O bocejo era a compreensão mais amarga que conseguia de si mesmo. E posto isso, cabia a seguir qualquer atitude desesperada como casar, tentar o suicídio, fazer psicoterapia ou um concurso para o Banco do Brasil.

Localizava-se, mais fácil assim, dando nome às coisas. Um entusiasmo tênue como o gosto de uma alface. Isso, estar, ser. Uma vontade de interromper- se aqui, paladar estragado pelo excesso de cigarros tentando inutilmente dar um nome ao gosto que fugia entre os dentes. Em algum quarto, há muito não sabia de línguas no seu corpo, ou tão sabidas tinham se tornado que. Vacilava entre a certeza quase absoluta de estar alcançando qualquer coisa próxima de uma sabedoria inabalável, alta como um minarete, gelada como um iceberg — melhor assim: uma montanha de compreensão sem dor de todas as coisas. Ou, talvez o ponto, nem icebergs, nem minaretes — mas árvore. Inventava com os olhos no ar vazio à sua frente um verde copado de sumarentos frutos, como se diria num outro tempo, se é que alguma vez se disse, dizia sim, dizia agora, desavergonhado e frio. Verde copado de sumarentos frutos. Folhagem de seda lustrosa. Tronco pétreo ancestral. O seco invisível como verme instalado no de-dentro. Impressentível, sob a casca, caminhando lento, questão de tempo, apenas, e semente contendo o galho crispado, mão de bruxa, roendo. Tinha dois olhos duros. Dois olhos grandes de quem vê muito, e não acha nada. Tinha secado, era certamente esse o ponto. Nunca a palavra exata, esclarecera de início. Já não tinha mais essas pretensões.

Caio Fernando Abreu

No ritmo dessa festa



Vem cá, meu bonito
que eu te solto os arreios
que eu te faço, te encaro
e te alucino
a minha paixão não cabe no teu seio
não cabe no teu quarto o meu destino.
Nem cabem na palma da minha mão
todas as linhas
que eu vou traçando nos caminhos
todas as contradições em que acredito
a liberdade que te proponho
a loucura de improvisar ninhos
e desprender o pássaro do sonho.

Que que há, meu bonito
que medo é esse
que te segura a terra
que te prende e até parece que você não tem luar.
Vem pra cá te enfeitar de festa
que eu vou te esfregar com areia
que eu vou te marcar na testa.

Vou aprender teu jeito esquisito
de mexer com estas franjas
de balançar as arestas
te mostrar como se dança

o ritmo desse deboche.
Tem que ter ferro e trato
tem que ter desejo ardido
pra poder soltar esse bicho
escondido nesse mato.

Tem que soltar essa fera
que dentro do peito te amarra
pra dançar como se dança
no ritmo dessa farra.

Vem cá meu bonito prepara
o bote. Afia teu corpo pro corte.
Vem, se larga se espalha
que eu sei lidar com teu porte.
Vem, que eu sou da tua laia.

Bruna Lombardi
 No Ritmo Dessa Festa (1976)

Pudor



100. Pudor

O pudor existe em toda a parte em que há um “mistério”; mas este é um conceito religioso, que, nos tempos mais antigos da civilização humana, tinha um vasto alcance. Por toda a parte, havia zonas delimitadas, às quais o direito divino proibia o acesso, exceto sob determinadas condições; antes de tudo,  no sentido plenamente espacial, na medida em que certos lugares não podiam ser pisados pelo pé dos não-iniciados e, em cuja vizinhança, estes sentiam calafrios e temor. Este sentimento foi frequentemente transposto para outras situações, por exemplo, para as relações sexuais, que, enquanto prilégio e domínio impenetrável da idade mais madura, deviam ser subtraídas aos olhares da mocidade, para seu bem: relações, para cuja proteção e culto se supôs que muitos deuses estavam ativos e colocados como guardas no aposento conjugal. (Por isso, em turco, esse aposento se chama har-m, “santuário”; é, portanto, designado com a mesma palava que é usual para os átrios das mesquitas.) É assim que a realeza, enquanto centro donde irradia poder e esplendor, representa para o súdito um mistério cheio de sigilo epudor; muitas repercussões disso se podem, ainda hoje, sentir entre povos, que, aliás, de modo nenhum fazem parte dos mais tímidos. Da mesma maneira, todo o universo das realidades interiores, a chamada “alma” também é, ainda hoje, para todos os não-filósofos um mistério, depois de ter sido, durante tempo infinito, considerada como de origem divina, digna de relações divinas; ela é, por conseguinte, um espaço sagrado e suscita pudor.

Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano
antonio sgarbossa


Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente


Sophia de Mello Breyner Andresen

When we two parted


When we two parted 
  In silence and tears, 
Half broken-hearted 
  To sever for years, 
Pale grew thy cheek and cold, 
  Colder thy kiss; 
Truly that hour foretold 
  Sorrow to this. 

The dew of the morning 
  Sunk chill on my brow-
It felt like the warning 
  Of what I feel now. 
Thy vows are all broken, 
  And light is thy fame; 
I hear thy name spoken, 
  And share in its shame. 

They name thee before me, 
  A knell to mine ear; 
A shrudder comes o'er me-
  Why wert thou so dear? 
They know not I knew thee, 
  Who knew thee so well-
Long, long I shall rue thee, 
  Too deeply to tell. 

In secret we met— 
  In silence I grieve, 
That thy heart could forget, 
  Thy spirit deceive 
If I should meet thee 
  After long years, 
How should I greet thee?-
  With silence and tears.


Lord Byron

Os sete sapatos sujos (trecho)

Léon Bazile Perrault - La Mendiante (The Beggar)

Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nós pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho.


Mia Couto, Os sete sapatos sujos


— É bastante curioso, meu amigo, mas o senhor tocou num problema que há muito tempo me preocupa: a dificuldade de comunicação precisa entre o clero e os leigos. É uma dificuldade que, ao invés de diminuir, aumenta, e que inibe mesmo a intimidade purificante do confessionário. A raiz disso, penso eu, é esta: a Igreja é uma teocracia, governada por uma casta sacerdotal, da qual o senhor e eu somos membros. Temos uma linguagem própria — uma linguagem hierática, se quiser — formal, estilizada, admiravelmente adaptada a definições legais e teológicas. Infortunadamente, também temos uma retórica própria que, como a retórica do político, diz muito e comunica pouco. Mas não somos políticos. Somos professores — professores de uma verdade que afirmamos ser essencial para a salvação do homem. Contudo, como é que a pregamos? Falamos incessantemente de fé e esperança, como se estivéssemos empregando uma forma cabalística de encantamento. Que é a fé? Um salto no escuro para as mãos de Deus. Um ato inspirado da vontade, que constitui a nossa única resposta ao terrível mistério de se saber de onde viemos e para onde vamos. "Que é a esperança? A confiança de uma criança na mão que a afastará dos terrores que avançam no escuro. Pregamos o amor e a fidelidade, como se se tratasse de assunto de mesa de chá... E não de corpos a contorcer-se numa cama e de palavras ardentes em lugares escuros, e de almas atormentadas pela solidão e levadas à comunhão momentânea de um beijo. Pregamos a caridade e a compaixão, mas raramente dizemos o que significam: mãos que lidam em meio à sujeira de quartos de doentes, que limpam o pus de feridas sifilíticas. Falamos ao povo todos os domingos, mas nossas palavras não chegam até os que nos
ouvem, pois esquecemos a nossa língua materna.

Morris West, O advogado do diabo