sábado, 27 de janeiro de 2024


 E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.

Michel Foucault, O corpo utópico

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

 



A fadiga que sentimos não é tanto do trabalho acumulado, mas de um quotidiano feito de rotina e de vazio. O que mais cansa não é trabalhar muito. O que mais cansa é viver pouco. O que realmente cansa é viver sem sonhos.

 Mia Couto em "O Universo num Grão de Areia"


Solidão era independência, eu desejei-a e consegui-a depois de longos anos. Era fria, é verdade, mas também era tranquila, maravilhosamente calma e grande, como o espaço frio tranquilo em que as estrelas se movem. 

Herman Hesse


 Estar na vida — sou de repente fulminado pela estranheza desta expressão, como se ela não fosse aplicável a ninguém.


Emil Cioran

 


A  separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma a gota da chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética divina. Quem não pode suportar a dor da separação não esta preparado para o amor. Porque amor é algo que não se tem nunca. É o vento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."

Rubem Alves, em "Onde mora o Amor"

Nuncas


O ônibus que nunca pensei pegar

não me levou pra rua que desconheço

ao encontro de um corpo que não se abriu

pra mim como a memória de uma ferida

uma avenida larga que não me rasga

e nem vai dar na praça dos meus delírios

não me sufoquei com a luz da fenda

funda de algum sorriso sobre o meu corpo

jamais embriagado de gratidão

crepúsculo de um prazer vertiginoso

em que não me perdi distante não vi

o amor me esperando na aurora ninguém

me ouviu no escuro nunca fui tão feliz.


Leoni

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

 


'Ojalá pudiera vivir solamente en éxtasis, haciendo el cuerpo del poema con mi cuerpo, rescatando cada frase con mis días y con mis semanas, infundiéndole al poema mi soplo a medida que cada letra de cada palabra haya sido sacrificada en las ceremonias del vivir.' 

Alejandra Pizarnik



Os estados afetivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma dizer, 'depressiva', tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a nutrição do corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, fazem a gordura desaparecer e provocam alterações patológicas nas paredes dos vasos sanguíneos. Inversamente, sob a influência de excitações mais alegres, da 'felicidade', vê-se o corpo inteiro desabrochar e a pessoa recuperar muitos sinais de juventude. Evidentemente, os grandes afetos têm muito a ver com a capacidade de resistência às doenças infecciosas; um bom exemplo disso é a observação médica de que a propensão a contrair tifo e disenteria é muito mais significativa nos membros de um exército derrotado do que na situação de vitória. Ademais, os afetos – embora quase que exclusivamente os depressivos – muitas vezes bastam por si mesmos para ocasionar doenças, tanto no tocante aos males do sistema nervoso com alterações anatômicas demonstráveis quanto no que concerne às doenças de outros órgãos.

Sigmund Freud em "Tratamento Psíquico [ou Anímico]"



A necessidade de ter a realidade confirmada e a experiência realçada por meio de fotografias é um consumismo estético no qual toda a gente está agora viciada. As sociedades industriais transformam cidadãos em viciados na imagem; é a forma mais irresistível de poluição mental. Pungentes anseios de beleza, de um desígnio a sondar sob a superfície, de uma redenção e celebração do corpo do mundo — todos esses elementos do sentimento erótico são afirmados no prazer que temos com as fotografias. Mas também se expressam outros sentimentos menos libertadores. Não seria errado falar de pessoas que têm uma compulsão de fotografar, de fazer da própria experiência uma forma de ver. Em última análise, ter uma experiência torna-se equivalente a tirar uma fotografia dela e participar num evento público torna-se cada vez mais equivalente a vê-lo na forma fotografada. O mais lógico dos estetas do século XIX, Mallarmé, disse que tudo no mundo existe para acabar num livro. Hoje, tudo existe para acabar numa fotografia.

Susan Sontag


Se te pedirem, amor, se te pedirem

que contes a velha história

da nau que partiu

e se perdeu,

não contes, amor, não contes

que o mar és tu

e a nau sou eu.


 Fernando Namora


O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele.

Sigmund Freud em "Luto e Melancolia"

[70] - O livro do desassossego

 


Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta.

Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.

Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.

Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.

A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.

Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.

Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.

É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?

Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.

Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes, tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O livro do desassossego


ÂNGELA.- Eu só uso o raciocínio como anestésico. Mas para a vida sou diretamente uma perene promessa de entendimento do meu mundo submerso. Agora que existem computadores para quase todo o tipo de procura de soluções intelectuais — volto-me então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu enigma me interessa. Mais que tudo, me busco no meu grande vazio. Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pede me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.


Clarice Lispector, Um sopro de vida 

[63]


Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.

Estas páginas, em que registro com uma clareza que dura para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou?

Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.

É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus. Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.

Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objeto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém.

Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida.

Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.

Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…

Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada…


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O Livro do Desassossego

Encolher de ombros - [66]




Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.

Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objeto torna-se realmente outro, porque o tornamos outro.

Manufaturamos realidades. A matéria-prima continua sendo a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efetivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é, com efeito, já outro sentimento.

Não sei que efeito sutil de luz, ou ruído vago, ou memória de perfume ou música, tangida por não sei que influência externa, me trouxe de repente, em pleno ir pela rua, estas divagações que registro sem pressa, ao sentar-me no café, distraidamente. Não sei onde ia conduzir os pensamentos, ou onde preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro úmido e quente, triste sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo — que não tenho sentimentalidade para aparar —, o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito. Reclino-me. A tarde cai monótona e sem chuva, num tom de luz desalentado e incerto… E deixo de escrever porque deixo de escrever.

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O Livro do desassossego


Todo Homem é Filósofo


É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são 'filósofos', definindo os limites e as características desta 'filosofia espontânea', peculiar a 'todo o mundo', isto é, da filosofia que está contida:

na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo;

no senso comum e no bom senso;

na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por 'folclore'.

Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente – já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na 'linguagem', está contida uma determinada concepção do mundo, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível 'pensar' sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, 'participar' de uma concepção do mundo 'imposta' mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na 'atividade intelectual' do vigário ou do velho patriarca, cuja 'sabedoria' dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?

Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um 'conhece-te a ti mesmo' como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise."

Antonio Gramsci


 O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.


Michel Foucault, O corpo utópico

 


Alguns amores não serão nossos, eles não devem ser colhidos, devem ficar no campo e por algum tempo irão embelezar os nossos olhos e coração, a possibilidade do amor também é amor. Alguns amores quando colhidos morrem rapidamente, não adianta vasos, cuidados e mãos habilidosas, alguns amores precisam ser paisagem, crescem inesperadamente e ninguém sabe quem os plantou, mas devem ficar onde estão, devem ficar no espaço pelo tempo adequado, dessa forma viverão para sempre.

É preciso saber amar seguindo em frente, amar enquanto nos distanciamos, mas os nossos olhos nunca mais serão os mesmos e dessa forma esse amor será nosso, para sempre.

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zack magiézi

domingo, 21 de janeiro de 2024


Uma pequena angústia sentida nos joelhos

Como o bater do próprio coração

E é a noite que chega

Não a noite-diamante

Mas a noite-viúva a noite

Sete vezes mais impura do que eu

Em passo obsceno em obscena força

Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome

Noite de amor que de longe me defendes

Escrevo o teu nome contra a noite obscena

Que a meu lado espera seduzir-me

Levar-me consigo

À parca solidão onde trabalho

À insónia sem margens ao vinho solitário

Duma pequena angústia

Escrevo todos os teus nomes

Puxo-os para mim tapo-me com eles

Na noite da surpresa

Noite feroz da surpresa

Noite do amor atacado de perto e conseguido

Alto e convulsivo

Noite dos amantes deslumbrados

Iluminados pelo demónio mais puro

Noite como uma punhalada ritual no invisível

Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra

Esta noite este murmúrio esta invenção atroz

A que chamam o dia-a-dia

Estas quatro minúsculas patas

Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel

Puro e definitivo.


 Alexandre O'NEILL



 Primeiro a tua língua molha o meu

coração, num vagar de fera. Estendo

aurículas e ventrículos sobre a mesa, entre

os copos que desaparecem. Não há mais

ninguém no bar cheio de gente. Abres-me agora os

pulmões, um para cada lado, e sopras. Respiras-

-me. O laser das tuas palavras rasga-me o lobo

frontal do cérebro. A tua boca abre-se e fecha-se,

fecha-se e abre-se, avançando

por dentro da minha cabeça. As minhas cidades

ruem como rios, correndo para o fundo dos teus olhos.

O tempo estilhaça-se no fogo

preso das nossas retinas. O empregado do bar

retira da mesa o nosso passado e arruma-o na vitrina,

ao lado dos exércitos de chumbo.

Entramos um no outro,

abrindo e fechando as pernas

das palavras, estremecendo no suor dos

olhos abraçados, fazendo sexo

com a lava incandescente dessa revolução

imprevista a que damos o nome de amor.


Inês Pedrosa 


Suponho que muita gente ache que a Filosofia é uma coisa muito abstrata e só para os 'entendidos'. Tenho tão viva em mim a ideia de que a Filosofia não tem nada a ver com 'entendidos', de que não é uma especialidade, ou o é, mas só na medida em que a pintura ou a música também o são, que procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham que a Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de ideias abstratas, mas em formar ideias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa muito diferente. E, para isso, volto a falar da pintura. Nas cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato ou paisagem. 'Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao retrato?' Eles davam muita importância em suas conversas e cartas. Retrato e paisagem não são a mesma coisa, não são o mesmo problema. Para mim, a história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o retrato faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar pintores que me levam a… Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de enorme respeito, de medo e pânico… Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já existiram. Ao revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores mortas. Cores… Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura. 

Gilles Deleuze, Abecedário

sábado, 20 de janeiro de 2024

Livro do desassossego [67]

 


Quantas vezes, presa da superfície e do bruxedo, me sinto homem. Então convivo com alegria e existo com clareza. Sobrenado. E é-me agradável receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer coisa orgânica. Se medito, não penso. Nesses dias gosto muito dos jardins.

Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização — uma modificação anônima da natureza. As plantas estão ali, mas há ruas — ruas. Crescem árvores, mas há bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre gente.

Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém, o emprego público das flores. Se os canteiros fossem em parques fechados, se as árvores crescessem sobre recantos feudais, se os bancos não tivessem alguém, haveria com que consolar-me na contemplação inútil dos jardins. Assim, na cidade, regrados mas úteis, os jardins são para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e das flores não têm senão espaço para o não ter, lugar para dele não sair, e a beleza própria sem a vida que pertence a ela.

Mas há dias em que esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cômica. Nesses dias estou errado, mas, pelo menos em certo modo, sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa, lar, aonde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.

Mas a ilusão não dura muito, tanto porque não dura como porque a noite vem. E a cor das flores, a sombra das árvores, o alinhamento de ruas e canteiros, tudo se esbate e encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se escondesse para mim, o grande cenário das estrelas. E então esqueço com os olhos a plateia amorfa e aguardo os primeiros atores com um sobressalto de criança no circo.

Estou liberto e perdido.

Sinto. Esfrio febre. Sou eu.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Livro do desassossego

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

 


Sim, senhor, sou amante da música, o que não significa que a estime particularmente, assim como estimo e amo, por exemplo, a palavra, o veículo do espírito, o utensílio e o resplandecente arado do progresso... A música? Representa ela tudo o que existe de semi articulado, de duvidoso, de irresponsável, de indiferente. O senhor talvez me objete que ela pode ser clara. Mas também a Natureza pode ser clara; também um arroio o pode ser, e de que nos adianta isso? Não é essa a clareza verdadeira; é uma clareza sonhadora, despida de significação, uma clareza que a nada obriga nem chega a ter consequências; é perigosa porque induz a gente à complacência satisfeita... Suponhamos que a música tome uma atitude de magnanimidade. Bem, nesse caso, ela inflamará os nossos sentimentos. No entanto, o que importa é inflamar a nossa razão. Aparentemente a música é toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo. Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma antipatia de caráter político.

Mesmo assim, convém ponderar a ideia – disse Settembrini sorrindo. – A música é inestimável como meio supremo de produzir entusiasmo, como força que faz avançar e subir, mas só para pessoas cujos espíritos já estejam preparados para os seus efeitos. Porém, é indispensável que a literatura a preceda. Sozinha, a música não é capaz de levar o mundo avante. 

A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece, adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil... Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita.


Thomas Mann, A montanha mágica

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

 


§

O religioso não é uma questão de conteúdo, mas de intensidade. Deus se concretiza em nossos momentos febris, de modo que o mundo em que vivemos se converte num excepcional objetivo da sensibilidade religiosa pelo fato de que só podemos refletir nos momentos neutros. Sem “febres”, não superamos o campo da percepção, ou seja, não vemos nada. Os olhos servem a Deus apenas quando não distinguem os objetos; o absoluto teme a individuação.

A intensificação de qualquer sensação é sinal de religiosidade. O grau máximo de repulsa nos revela o Mal (a via negativa em direção a Deus). O vício está mais próximo do absoluto do que um instinto autêntico, porque a participação no divino é possível na medida em que já não somos natureza.

Um homem lúcido controla suas “febres” a cada passo, como um espectador de seu próprio sofrimento, eternamente sobre suas pegadas, entregando-se de forma equívoca às fantasias de sua tristeza. Na lucidez, o conhecimento é uma homenagem à fisiologia.

Quanto mais sabemos sobre nós mesmos, mais cumprimos as exigências de uma higiene que consiste na realização da transparência orgânica. A claridade é tanta que vemos através de nós mesmos. Convertemo-nos assim em espectadores de nós mesmos.(Amurgul gândurilor)

Deus: queda perpendicular sobre nosso pavor, salvação caindo como um raio em meio a nossas buscas que nenhuma esperança engana, anulação sem paliativos de nosso orgulho inconsolado e voluntariamente inconsolável, avanço do indivíduo por um desvio, paralisação da alma por falta de inquietudes… (“Desaparecer em Deus”, in: Breviário de Decomposição)

§

Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se – na falta de outro interlocutor – Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito ao seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou? […]

(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre o meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas por Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para a minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Conceda-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.) (“A arrogância da oração”, in: Breviário de Decomposição)

§

Solidão do ódio… Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o céu e sobre as constelações… de um deus frenético, sujo e malsão; um demiurgo ejaculando, através do espaço, paraísos e latrinas: cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva em que o fel coroa os elementos… As criaturas se lançam na direção de um arquétipo de fealdade e suspiram por um ideal de conformidade… Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho… Nenhum horizonte mais, salvo para os monstros e para os vermes. Tudo se encaminha para o repulsivo e para o gangrenoso; este globo que supura enquanto que os viventes mostram suas feridas sob os raios do cancro luminoso. (“A negativa de procriar”, in: Breviário de Decomposição)

§

A exortação criminosa do Gênese: Crescei-vos e multiplicai-vos, não pode ter saido da boca do deus bom. Sedes escassos, deveria ter sugerido, se tivesse tido voz no capítulo. Tampouco poderia ter acrescentado as palavras funestas: E enchei a terra. Deveria-se, antes de tudo, apagá-las para lavar a Bíblia da vergonha de tê-las acolhido. (Le Mauvais Demiurge)


Emil Cioran

domingo, 14 de janeiro de 2024

Um sopro de vida


 Eu escrevo um livro e Ângela outro: tirei de ambos o supérfluo. 

Eu escrevo à meia-noite porque sou escuro. Ângela escreve de dia porque é quase sempre luz alegre.

Este é um livro de não memórias. Passa-se agora mesmo, não importa quando foi ou é ou será esse agora mesmo. É um livro como quando se dorme profundo e se sonha intensamente — mas tem um instante em que se acorda, se desvanece o sono, e do sonho fica apenas um gosto de sonho na boca e no corpo, fica apenas a certeza de que se dormiu e se sonhou Faço o possível para escrever por acaso. Eu quero que a frase aconteça.

Não sei expressar-me por palavras. O que sinto não é traduzível.

Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio. Mas não correspondo à altura do desafio.

Saem pobres palavras. E qual é mesmo a palavra secreta? Não sei e por que a ouso? Só não sei porque não ouso dizê-la?

Bem sei que estou no escuro e eu me alimento com a própria e vital escuridão. Minha escuridão é uma larva que tem dentro de si talvez a borboleta? Está tão escuro que estou cego.

Eu simplesmente não posso mais escrever. Vou deixar por uns dias Ângela falar. Quanto a mim acho...

ÂNGELA.- Eu, gazela espavorida e borboleta amarela. Eu não passo de uma vírgula na vida. Eu que sou dois pontos. Tu, és a minha exclamação. Eu te respiro-me. Eu sou oblíqua como o voo dos pássaros. Intimidada, sem forças, sem esperança, sem avisos, sem notícias — tremo — toda trêmula. Me espio de viés.

Que esforço eu faço para ser eu mesma. Luto contra uma maré em nau onde só cabem meus dois pés em frágil equilíbrio ameaçado.

Viver é um ato que não premeditei. Brotei das trevas. Eu só sou válida para mim mesma. Tenho que viver aos poucos, não dá para viver tudo de uma vez. Nos braços de alguém eu morro toda. Eu me transfiguro em energia que tem dentro dela o atômico nuclear. Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no passado e de ter descido do trem quase antes dele parar — a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade perdendo logo a estação e a nova partida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus.

***

Estou esperando chuva. Quando chover que o que caia sobre mim, abundantemente. Abrirei a janela de meu quarto e receberei nua a água do céu. Jardins e jardins entremeados de acordes musicais. Iridescência ensanguentada. Vejo meu rosto através da chuva. Rebuliço estrídulo do vento agudo que varre a casa como se esta estivesse oca de móveis e de pessoas. Está chovendo. Sinto a boa chuvarada de verão. 

***

Tenho medo de minha liberdade. Minha liberdade é vermelha! Quero que me prendam. Oh chega de decepções, estou tão machucada, me doem a nuca, a boca, os tornozelos, fui chicoteada nos rins — para que quero meu corpo? para que serve ele? só para apanhar? Bofetada em pleno rosto que é túmido e fresco. Refugio-me nas rosas, nas palavras. Pobre consolação. Estou inflacionada. Não valho nada. Fui interrompida pelo silêncio da noite. O silêncio espaçoso me interrompe, me deixa o corpo num feixe de atenção intensa e muda. Fico à espreita de nada. O silêncio não é o vazio, é a plenitude.



Clarice Lispector, Um sopro de vida (pulsações)

“Eu era feliz e não sabia”.

 


“Eu era feliz e não sabia”

Adoro essa frase, sei que muita gente acha triste.

Mas eu amo.

A gente estava tão ocupado em ser feliz que não tivemos tempo para pensar na felicidade.

Depois vira saudade.

A maioria das felicidades não estão nos grandes acontecimentos.

Estão no cotidiano e pasmem, na rotina.

Em um dia comum, em um banho tomado, nas plantas bonitas pelo cuidado que você é capaz de dar.

Na conversa com os seus.

Sabe quando estamos falando com um amigo e por um momento um sorriso atravessa a nossa mente e a gente pensa: “como eu amo esse filha da mãe”.

Em escutar a sua música brega favorita.

Em não precisar ter opinião sobre tudo.

Não precisar ter todas as respostas e não querer isso.

Por isso

Eu desejo que na próxima vez que você pensar

“eu era feliz e não sabia”

Que haja luz.

E um segredo

(você está sendo feliz quando sente saudade).


zack magiezi

Aforismos para a sabedoria de vida.

 


Toda sociedade envolve necessariamente, como condição básica de sua existência, a acomodação e a restrição mútuas por parte de seus membros; assim, quanto mais numerosa é, mais insípida se torna. O homem só pode ser si mesmo por completo enquanto estiver sozinho; por conseguinte, quem não ama a solidão, não ama a liberdade; pois o homem só é livre quando está sozinho. A restrição e a ânsia por liberdade são companheiras inseparáveis de toda sociedade; e os sacrifícios que exige serão tanto mais custosos quanto mais acentuada for a própria individualidade do homem. Por conseguinte, cada qual evitará, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor de seu próprio ser. Porque na solidão o mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o espírito elevado toda a magnitude de sua grandeza; em suma, cada qual sente aquilo que é. Ademais, quanto mais elevada for a posição que um homem ocupa na hierarquia da natureza, mais solitário será; isso é essencial e inevitável. Mas será benéfico a esse homem que a solidão física esteja em acordo com sua solidão intelectual, do contrário a frequente relação com seres de natureza distinta exerce sobre ele um efeito inquietante e mesmo prejudicial, visto que roubam-no de si mesmo, e não têm nada para oferecer-lhe em troca. Ademais, enquanto a natureza estabeleceu as maiores diferenças, tanto morais como intelectuais, entre os homens, a sociedade, a despeito disso, os têm como iguais ou, melhor dizendo, substitui essa desigualdade natural com as distinções e os graus artificiais de posição e categoria, que muitas vezes são completamente opostos à hierarquia estabelecida pela natureza. Como resultado, essa disposição eleva aqueles que a natureza colocou muito abaixo e rebaixa os poucos colocados muito acima. Decorre que os últimos, em geral, se retiram da sociedade, onde a vulgaridade prevalece assim que se torna numerosa. O que ofende os espíritos superiores na sociedade é a igualdade de direitos e de aspirações que se derivam dela frente à desigualdade das faculdades e das produções (sociais) dos demais. A chamada boa sociedade admite os méritos de todas as classes, exceto os intelectuais, que são como um contrabando. Impõe o dever de manifestar uma paciência ilimitada para toda tolice, toda loucura, todo absurdo, toda estupidez. Os méritos pessoais, pelo contrário, se veem forçados a mendigar seu perdão ou a ocultarem-se; pois a superioridade intelectual fere por sua simples existência, sem que nisso haja qualquer intenção.

Arthur Schopenhauer,

Aforismos para a sabedoria de vida

Aos perdidos ..


Gosto dos que estão com medo, pois a vida mete medo.

Tudo é incerteza.

A única certeza é o ponto final.

Não gosto muito daqueles que ficam exibindo os seus músculos emocionais.

Que querem parecer fortes e maduros, não, eles nunca me enganaram.

Estão sempre por aí.

Gosto da força dos que sentem medo, medo do Tempo, medo do Amor, medo da solidão, medo da morte.

Gosto daqueles com os pés machucados, aqueles que andam pela noite de dentro.

São os meus companheiros.

Sei que esse poema não deveria estar aqui, por isso mesmo ele deve estar aqui.

Como um farol que irá mostrar algo, não mostrará a direção certa, mas mostrará que outros caminham pela noite.

Eu caminho com dores no peito, com um coração que dói todo santo dia.

Sou o que sempre descobre o quanto era feliz ontem, não se volta para o ontem.

Você já se sentiu assim, como uma aposta derrotada que acabou com as economias.

Você também já sentiu que perdeu o único grande amor, já sentiu que mesmo se reconstruir aquilo que foi arruinado, não será a mesma casa, pois as histórias não foram vividas ali.

Esse poema é uma realidade dentro da virtualidade, talvez não sirva para você agora, mas servirá quando as frases de efeito não anestesiarem mais, quando a esperança roubar a sua carteira com os documentos onde você escreveu o seu nome.

Neste momento os elogios não servirão para nada, os números não sabem abraçar.

Uma multidão não é alguém.

Mas a boa notícia é que outros já caminharam e caminham pela noite, na solidão você só pode ser guiado pelos seus próprios passos, é como aprender a andar pela segunda vez.

Uma alma cheia de cicatrizes é a que me interessa, pessoas que apesar de tudo ainda carregam um pequeno incêndio nos olhos.

Eles dirão que não é fácil e que vai doer, a tragédia pode estar na próxima esquina, não vão te dar uma fórmula mágica, não vão vir com um “seja foda”, mas todos esses perdidos errantes irão falar sobre a pequena felicidade.

A felicidade que está entre duas notas musicais, uma pausa também é uma música e no céu acima da sua cabeça as nuvens irão embora por um instante e talvez uma recordação brilhe e te faça rir chorando.

Continue caminhando.


Zack Magiézi

[58] - O livro do desassossego


O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a interseção de três linhas, e essas três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como interpretamos, e o ambiente em que está. Esta mesa, a que estou escrevendo, é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui neste quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever, terá que ser composta das noções de que ela é de madeira, de que eu chamo àquilo uma mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se refletem, nela se inserem, e a transformam, os objetos em cuja justaposição ela tem alma externa, o que lhe está posto em cima. E a própria cor que lhe foi dada, o desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem — tudo isso, repare-se, lhe veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora, que é a personalidade.

Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objeto de uma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio “corre”, que um poente é magoado ou o mar calmo (azul pelo céu que não tem) é sorridente (pelo sol que lhe está fora). Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células — mais, é uma relojoaria de movimentos subatômicos, estranha conglomeração elétrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima.

Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.

Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura úmidamente amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos.

Assim sou. Quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na minha alma, fico de repente parado, esquecido, no começo do espiral da escada profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o aglomerado difuso dos telhados.

Bernardo Soares

O livro do desassossego

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

 


Fala-me tu do Amor…

e dessa coisa esquisita que é o tempo com quatro dedos de distância entre o ardor das línguas e a asfixia dos corpos.


Fala-me tu do Amor e desse desejo que arrasta a proximidade que anula todos os intervalos em pequenas existências que de tão insignificantes desaparecem numa doçura e amargura.


Conta-me do constante faz e refaz, de ressuscitar e morrer, de adormecer e sonhar, do conforto da luz dos dias na realidade que nos mata. Porque do Amor também se morre e também se vive ..


Al Berto