quinta-feira, 29 de abril de 2010

Soneto da Fidelidade


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

Na véspera de nada


alexandre-reider

NA VÉSPERA de nada 
Ninguém me visitou. 
Olhei atento a estrada 
Durante todo o dia 
Mas ninguém vinha ou via, 
Ninguém aqui chegou.
Mas talvez não chegar 
Queira dizer que há 
Outra estrada que achar, 
Certa estrada que está, 
Como quando da festa 
Se esquece quem lá está.


Fernando Pessoa

o teu rosto à minha espera. o teu rosto
a sorrir para os meus olhos. existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras. vês-me
sorrir. brisas incendeiam o mundo.
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos.
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas.
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto

Sapatos Sujos

Sorte Fiel!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Passagem das Horas


Trago dentro do meu coração, 
Como num cofre que se não pode fechar de cheio, 
Todos os lugares onde estive, 
Todos os portos a que cheguei, 
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, 
Ou de tombadilhos, sonhando, 
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. 

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde, 
O coral das Maldivas em passagem cálida, 
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente 
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-... 
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade 
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol 
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)... 
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar... 
Tempestades em torno ao Guardaful... 
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada... 
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo... 

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei... 
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... 
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, 
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir 
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz. 

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me, 
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, 
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, 
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas, 
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, 
Deste desassossego no fundo de todos os cálices, 
Desta angústia no fundo de todos os prazeres, 
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas, 
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias. 

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. 
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei 
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência, 
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque 
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, 
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz. 

Seja o que for, era melhor não ter nascido, 
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos, 
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, 
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair 
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, 
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, 
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, 
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, 
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida. 

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, 
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas... 
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, 
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca... 
Que há de ser de mim?  Que há de ser de mim? 
 
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão, 
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra. 
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos. 
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir... 
Tão decadente, tão decadente, tão decadente... 
Só estou bem quando ouço música, e nem então. 
Jardins do século dezoito antes de 89, 
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira? 
 
 Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo, 
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai. 
 
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se. 
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver. 
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente. 
Estou no caminho de todos e esbarram comigo. 
Minha quinta na província, 
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti. 
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, 
E fica sempre, fica sempre, fica sempre, 
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica... 
 
 Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito. 
Só humanitariamente é que se pode viver. 
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos, 
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver. 
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim! 
 
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, 
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. 
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, 
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. 
Amei e odiei como toda gente, 
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo, 
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo. 
 
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti. 
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito, 
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo. 
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto, 
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo, 
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos, 
A direção constantemente abandonada do nosso destino, 
A nossa incerteza pagã sem alegria, 
A nossa fraqueza cristã sem fé, 
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases, 
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos, 
A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida... 
 
Não sei sentir, não sei ser humano, conviver 
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra. 
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido, 
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, 
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta, 
Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair, 
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim. 
 
Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila... 
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz, 
Tu que não existes, que és só a ausência da luz, 
Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida, 
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão, 
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa, 
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos, 
E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte... 
'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento, 
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja, 
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho, 
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva... 
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente, 
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens, 
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem... 
 
Sentir tudo de todas as maneiras, 
Viver tudo de todos os lados, 
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, 
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos 
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. 
 
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo, 
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, 
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, 
Seja uma flor ou uma ideia abstrata, 
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. 
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo. 
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, 
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também, 
Porque ser inferior é diferente de ser superior, 
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. 
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter, 
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades, 
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles, 
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens. 
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, 
Basta que ela exista para que tenha razão de ser. 
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido, 
(No mesmo abraço comovido) 
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece, 
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria, 
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças, 
O ladrão de estradas, o salteador dos mares, 
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas — 
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida. 
 
Beijo na boca todas as prostitutas, 
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs, 
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos 
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões. 
Tudo é a razão de ser da minha vida. 
 
Cometi todos os crimes, 
Vivi dentro de todos os crimes 
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio, 
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles, 
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida). 
 
Multipliquei-me, para me sentir, 
Para me sentir, precisei sentir tudo, 
Transbordei, não fiz senão extravasar-me, 
Despi-me, entreguei-rne, 
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. 
 
Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino, 
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos. 
 
Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, 
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas, 
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares 
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. 
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, 
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum). 
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! 
 
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, 
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!) 
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, 
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes, 
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta, 
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, 
Os seus half-holidays inesperados... 
Mary, eu sou infeliz... 
Freddie, eu sou infeliz... 
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados, 
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis, 
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco — 
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo, 
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, 
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus! 
 
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro, 
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ... 
Meu coração tribunal, meu coração mercado, 
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco, 
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade, 
Meu coração banco de jardim público, hospedaria, 
Estalagem, calabouço número qualquer cousa 
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo) 
Meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet, portaló, 
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial, 
Meu coração postigo, 
Meu coração encomenda, 
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega, 
Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice, 
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração. 
 
Todos os amantes beijaram-se na minh'alma, 
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim, 
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro, 
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes, 
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos. 
 
(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho, 
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda, 
Com as cabeças femininas coiffées de lin 
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo... 
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda, 
E a fita entalada com o fechar da gaveta, 
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada, 
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ... 

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol, 
Definitivamente para todo o resto do Universo, 
E que os carros me passem por cima.) 

Fui para a cama com todos os sentimentos, 
Fui souteneur de todas ás emoções, 
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações, 
Troquei olhares com todos os motivos de agir, 
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir, 
Febre imensa das horas! 
Angústia da forja das emoções! 
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço, 
A cadela a uivar de noite, 
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia, 
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa, 
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros, 
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo, 
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos, 
Orgia intelectual de sentir a vida! 
 
Obter tudo por suficiência divina — 
As vésperas, os consentimentos, os avisos, 
As cousas belas da vida — 
O talento, a virtude, a impunidade, 
A tendência para acompanhar os outros a casa, 
A situação de passageiro, 
A conveniência em embarcar já para ter lugar, 
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase, 
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa. 

Poder rir, rir, rir despejadamente, 
Rir como um copo entornado, 
Absolutamente doido só por sentir, 
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas, 
Ferido na boca por morder coisas, 
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas, 
E depois deem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida. 

Sentir tudo de todas as maneiras, 
Ter todas as opiniões, 
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto, 
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito, 
E amar as coisas como Deus. 

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário, 
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia 
Que a dor real das crianças em quem batem 
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem — 
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?) 
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo, 
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre, 
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque 
E faz pena saber que há vida que viver amanhã. 
Eu, enfim, literalmente eu, 
E eu metaforicamente também, 
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso 
As leis irrepreensíveis da Vida, 
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada, 
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim, 
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo 
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo... 
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma, 
Sem personalidade com valor declarado, 
Eu, o investigador solene das coisas fúteis, 
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso, 
E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria 
Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz 
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora, 

Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço, 
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico, 
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos, 
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea, 
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos. 
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina 
Coada através das árvores do jardim público, 
Eu, o que os espera a todos em casa, 
Eu, o que eles encontram na rua, 
Eu, o que eles não sabem de si próprios, 
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso, 
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma, 
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre, 
O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros, 
A cicatriz do sargento mal encarado, 
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa, 
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre, 
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)... 
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas, 
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre, 
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta, 
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo, 
O sacana do José que prometeu vir e não veio 
E a gente tinha uma partida para lhe fazer... 
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo... 
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem, 
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas... 
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões, 
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos, 
Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de ttido isto, 
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa... 
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha, 
E uso monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim, 
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural, 
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me, 
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida... 
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas, 
O baú das iniciais gastas, 
A entonação das vozes que nunca ouviremos mais - 
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo 
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo. 
A Brígida prima da minha tia, 
O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas, 
E a vida era guerra civil a todas as esquinas... 
Vive le mélodrame oú Margot a pleuré! 
Caem as folhas secas no chão irregularmente, 
Mas o fato é que sempre é outono no outono, 
E o inverno vem depois fatalmente, 
há só um caminho para a vida, que é a vida... 

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos, 
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais, 
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão 
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo. 

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas, 
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra. 
Não me subordino senão por atavisnio, 
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama. 

Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades 
Acessíveis à imaginação 
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer, 
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira, 
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi. 

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa, 
Vou ao lado dela sem ela saber. 
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado, 
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá. 
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me, 
Não há modo de eu não estar em toda a parte. 
O meu privilégio é tudo 
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma). 

Assisto a tudo e definitivamente. 
Não há joia para mulher que não seja comprada por mim e para mim, 
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira, 
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso, 
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta 
Que não seja para mim por uma galantaria deposta. 

Fui educado pela Imaginação, 
Viajei pela mão dela sempre, 
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso, 
E todos os dias têm essa janela por diante, 
E todas as horas parecem minhas dessa maneira. 

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta, 
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo, 
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo, 
Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido 
Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes. 
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca, 
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida, 
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas, 
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim. 

Ho-ho-ho-ho-ho!... 
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo 
Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado, 
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa, 
He-la-ho-ho ... Helahoho ... 

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo... 
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe 
As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel, 
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa. 

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente, 
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo, 
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha 
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca... 
Ho ---- 

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo! 
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta! 
Ave, salve, viva a grande máquina universo! 
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis! 
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias abstratas, 
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna, 
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso, 
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param, 
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves, 
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem, 
Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor 

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, 
Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade, 
Máquina universal movida por correias de todos os momentos! 

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida. 
Todas as auroras raiam no mesmo lugar: 
Infinito... 
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta, 
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore, 
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar 
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho... 

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra, 
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna, 
Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente 
Rola ... 

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra, 
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim, 
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros 
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio, 
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo, 
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato, 
Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas, 
A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ... 

Ah, não estar parado nem a andar, 
Não estar deitado nem de pé, 
Nem acordado nem a dormir, 
Nem aqui nem noutro ponto qualquer, 
Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa, 
Saber onde estar para poder estar em toda a parte, 
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ... 
 
Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho 

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas, 
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas, 
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ... 

Hup-la por cima das árvores,  hup-la por baixo dos tanques, 
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos, 
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias, 
Numa velocidade crescente, insistente, violenta, 
Hup-la hup-la hup-la hup-la ... 

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas, 
Cavalgada energética por dentro de todas as energias, 
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde, 
Clarim claro da manhã ao fundo 
Do semicírculo frio do horizonte, 
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas 
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ... 

Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa, 
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade  ... 

Carro que chia limpidamente, vapor que apita, 
Guindaste que começa a girar no meu ouvido, 
Tosse seca, nova do que sai de casa, 
Leve arrepio matutino na alegria de viver, 
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como, 
Costureira fadada para pior que a manhã que sente, 
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora 
Inevitavelmente vital, 
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático, 
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas 
Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco... 

Toda a madrugada é uma colina que oscila, 
...................................................................... e caminha tudo 
 
Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras 
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge 
 
Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens — 
Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada, 
Do rodopio parado da minha retentiva seca, 
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver. 
 
Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua, 
Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos 
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua 
Passeio lojistas "perdão" rua 
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim 
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá 
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras, 
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua 
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua 
 
Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim 
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua 
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés 
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços 
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno, 
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua. 
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo. 
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá. 
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio! 
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele! 
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te 
Por todos os precipícios abaixo 
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração! 

À moi, todos os objetos projéteis! 
À moi, todos os objetos direções! 
À moi, todos os objetos invisíveis de velozes! 
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me! 
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso! 
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim! 
 
Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias, 
Velocidade entra por todas as ideias dentro, 
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os, 
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis, 
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes, 
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado 
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas, 
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares, 
Senhor supremo da hora europeia, metálico a cio. 
Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus! 
............................................................... 
............................................................... 

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói, 
Dec4ina dentro de mim o sol no alto do céu. 
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos. 
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar? 
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata, 
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo, 
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés, 
Calcar, calcar, calcar até não sentir. 
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, 
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou. 

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos, 
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços, 
Cavalgada voo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago, 
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu. 
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ... 

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...


Álvaro de Campos
(heterônimo de Fernando Pessoa)

Lições


Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.
Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.
Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.
Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.
Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.
Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.
Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?

Mia Couto


[...] elas diziam em coro – quem morre precisa ser enterrado porque o corpo apodrece. Apodrece? Meu Deus, então eu não sabia nada sobre a morte, para mim a morte era a hora de ir para o céu ou para
o inferno, aquele estágio debaixo da terra era provisório, era apenas uma decisão tola dos homens. O corpo apodrece? Apodrece igual à maçã? Muito pior, boba, fica cheio de bichos. Isso é mentira, eu
nunca vou ficar cheia de bichos. A irmã Letícia vinha me consolar: se você ficar santa, o seu corpo não apodrecerá. E se eu não conseguir? Jesus vai te ajudar, não tenha medo, e você sabe que a gente não sente nada depois da morte? O corpo não é nada, menina, São Francisco chamava o corpo assim: meu irmão burro. Por quê? Porque o corpo só faz bobagens, o corpo demora a compreender. Nessa noite resolvo conversar às claras com meu corpo: irmão burro, presta atenção, não apodreça, por favor eu não quero ficar cheia de bichos e se você me prometer isso, eu prometo te tratar com paciência. Depois refleti: adianta tratar um burro com paciência? Os santos não maltratavam o corpo? Meu Deus, que espécie de contrato é preciso fazer com o corpo? Se eu o maltratar em vida, ele me agradecerá na morte?


Hilda Hilst

Ivan Turgueniev, Pais e Filhos


Existe um pequeno cemitério num dos mais distantes recantos da Rússia. Como todos os cemitérios, tem um aspecto muito triste: As valetas que o cercam estão cobertas de vegetação rasteira. As cruzes de madeira cinzenta estão arruinadas e apodrecem sob suas coberturas outrora pintadas. As lousas funerárias estão desmanteladas, como se alguém as empurrasse de baixo. Duas ou três arvorezinhas sem folhas dão uma sombra escassa. As ovelhas pastam tranquilamente sobre os túmulos...
Entre estes túmulos existe um fora do alcance do homem e dos animais. Só os pássaros o freqüentam e ali cantam ao romper do dia. Cerca-o uma grade de ferro. Dois pequenos abetos ladeiam a tumba. Aqui está sepultado Eugênio Bazárov. De quando em quando, de um povoado próximo, vem visitar este túmulo um casal de velhos, trôpegos e débeis, marido e mulher. Apoiando-se um ao outro, caminham com passos lentos e arrastados. Aproximam-se da grade de ferro, caem de joelhos e choram muito tempo, examinando atentamente a pedra indiferente da lousa tumular debaixo da qual repousa seu filho. Trocam uma breve palavra, espanam o pó da lousa, endireitam o ramo do abeto e rezam de novo. Não tem coragem de abandonar esse lugar, onde se sentem mais perto do filho, da saudade...
Será possível que as suas orações e suas lágrimas sejam inúteis? Será possível que o amor, o amor sagrado, amor dedicação suprema, não seja onipotente? Não! Seja qual for o coração apaixonado, pecador e revoltado que se esconda num túmulo, as flores que crescem sobre ele nos fitam tranqüilas, com os seus olhos inocentes. Elas não falam apenas da calma eterna, da grande, da infinita calma da natureza “indiferente”: Falam também da paz e da vida eternas...


Ivan Turgueniev, Pais e Filhos

terça-feira, 27 de abril de 2010

Ternura


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
extático da aurora.

Vinicius de Moraes
vicente romero

A tua nudez inquieta-me.

Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho "um pensamento despido";
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desatrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
iluminado, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.


Fernando Assis Pacheco

Meu querido amor da minha vida, e eu que tanto queria escrever-lhe uma carta que a acompanhasse, como um espécie de mapa que nos dissesse respeito, só a nós, para cada um de nós saber, a cada momento, onde é que o outro está e como está.
Pensei, pensei, achei que não era capaz de lhe dizer aquilo que gostava de saber exprimir completamente por me transtornar de mais só de pensar em si, em termos que as palavras não conseguem formular, e também por me ocorrer que há vários dias que não nos vemos e que você também se dê conta de como isso é insuportável.
Senti-me, sinto-me já tão amarrado a tristezas, mesmo antes de esses tempos começarem, que me parece às vezes que o melhor seria fazer um catálogo de saudades para que soubéssemos sempre situar-nos a partir delas e para que nos enternecêssemos com um exercício em que nos poderíamos recapitular, fosse de dia, fosse de noite.
Tudo ponderado, se é que se pode dizer assim nestas minhas circunstâncias tão emotivas e tão desoladas, achei que temos e vamos continuar a ter várias saudades de diferente natureza que vou procurar descrever enquanto o meu carro avança como se seguisse sem destino e a vejo sorrir comovida, como só você sabe sorrir e comover-se, à medida que vai lendo e as vai sentindo tantas e tão fundas, tão lancinantes, como eu.


A primeira saudade é a de um bem-estar fulgurante e tranquilo, de uma sensação que inunda alma e corpo por dentro e que nos leva a sentir que nada está fora do seu lugar, que se está certo nesse lugar e certo na relação de um com o outro, que tudo é musical e luminoso, que a harmonia está numa compreensão íntima a vir de uma tensão permanente de ternura, inteligência, sensbilidade e desejo.
A segunda saudade é a de ver e ouvir, de perto, de se estar ao pé um do outro, de haver olhos que se olham, caras que se vêem, risos deslumbrados que se têm, palavras que se dizem ou é como se fossem ditas, gestos que se fazem ou apenas se esboçam, e de sentir que nisso se é naturalmente intensional nos recados que se dão por cada um desses meios, como se é naturalmente capaz de adivinhar e de decifrar tudo o que se quer realmente dizer..
A terceira saudade é a que se liga aos momentos mais importantes que se vivem, passeios e paisagens, deambulações, pessoas que se passam a conhecer, coisas que se contam, confidências repentinamente tornadas necessárias, sonhos e palpites, expressões que se surpreendem, efeitos de luz, flores, ruídos do campo e do mar, músicas tantas vezes ouvidas quando se atravessa a noite, cores e sabores, emoções em que o íntimo e o de fora se combinam de um modo único e partilhado como não se pode acreditar que a mais ninguém tenha acontecido, em que o que já se passou continua a estar presente e é cada vez mais intenso e activo.
A quarta saudade é a do contacto da pele: mãos que se apertam e percorrem, afagos que se aventuram, bocas que se encontram, sensações que se sabem de cor e se querem inesgotáveis, corpos à beira de explodir ansiosos, tanta fome e tanta sede, liberdade e pudor, impaciência e timidez, contenção e promessa, tudo a renovar-se e tornar-se ilimitado a cada momento, repassado de uma doçura que nenhumas palavras conseguem descrever.
A quinta saudade é a da vida prática do dia-a-dia, ideias e projectos, tentativas e certezas, coisas que têm conta, peso e medida, espessura, ritmo, existência concreta, efeitos reais, coisas que se vão criando porque se está a remar na mesma direcção e se tem consciência disso, coisas que são reciprocamente induzidas e aperfeiçoadas, combinações de risco e de bom senso que se sente que resultam graças a esse empenhamento e a uma alegria da seriedade com que são postas em andamento.
A sexta saudade é a que faz com que um esteja sempre a falar com o outro e a fazer parte dele, a respirar nele e a existir nele, veia a veia, fibra a fibra, tecido a tecido, músculo a músculo, a ter de dizer-lhe sempre do seu amor das maneiras mais variadas e a propósito das situações mais diversas, com efeitos de luz e sombra, veemência e desvario, ansiedade e contentamento, sem nunca querer ou ser capaz de distinguir esse amor da própria vida e a só conseguir ser feliz assim.
A sétima saudade é a mistura transbordante de todas as anteriores, criando uma dimensão em que cada uma delas leva a todas as outras e recupera todas as outras, como se estivesse a olhar um caleidoscópio, ou como se estivesse dentro dele e fosse parte activa desse universo de reflexos interactivos, de brilhos, jogos de espelhos, formas coloridas, tempos sempre em mutação, espirais alucinantes mas invariavelmente ancoradas no coração das coisas e no coração propriamente dito e uníssono: é uma saudade que funciona como uma espécie de cursor no tempo, deslizando para trás e para a frente, girando em todas as direcções, revivendo as anteriores, inventando as próximas, entrançando uma e outras, agarrando-se a esperanças, sobressaltando-se com acasos, e sofrendo, sofrendo, sofrendo, só de pensar que se pode estar a uma distância de dias ou de apenas umas horas.


Vasco Graça Moura

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Poema dos olhos da amada

Michael and Inessa Garmash

Oh, minha amada
Que olhos os teus

São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus

Oh, minha amada
Que olhos os teus

Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus

Oh, minha amada
Que olhos os teus

Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus

Ah, minha amada
De olhos ateus

Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus

Vinicius de Moraes

Uma Paixão


Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto

São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte,
Diz uma — vida, outra — morte;
Uma — loucura, outra — amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes,
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp'rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

Gonçalves Dias

Quem dirá que não vivo satisfeito! Eu danço!

 paula rego the dance

Dança a poeira no vendaval.
Raios solares balançam na poeira.
Calor saltita pela praça
pressa
apertos
automóveis
bamboleios
Pinchos ariscos de gritos
Bondes sapateando nos trilhos...

A moral não é roupa diária!

Sou bom só nos domingos e dias-santos!
Só nas meias o dia-santo é quotidiano!
Vida
arame
crimes
quidam
cama e pança!
Viva a dança!
Dança viva!
Vivedouro de alegria!
Eu danço.
Mãos e pés, músculos, cérebro...
Muito de indústria me fiz careca,
Dei um salão aos meus pensamentos!
Tudo gira,
Tudo vira,
Tudo salta,
Samba,
Valsa,
Canta,
Ri!

Quem foi que disse que não vivo satisfeito?
EU DANÇO!

Mário de Andrade

domingo, 25 de abril de 2010

Isto é BRASIL!!!

Z.L. Feng

O tempo perdido não pode ser recuperado.
Sua beleza só pode ser vivida como ausência: a beleza dói...
Magia é isto: invocar o que se foi, mas que continua a nos habitar. 

Ou será poesia?

Rubem Alves

Delicadeza

Young Woman with Daisies, detail, by Emile Vernon

A alma é invisível
um anjo é invisível
o vento é invisível
o pensamente é invisível
e no entanto
com delicadeza
se pode enxergar a alma
se pode adivinhar o anjo
se pode sentir o vento
se pode mudar o mundo com alguns
pensamentos...

Roseana Murray

Deus na antecâmara


Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)
Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sangüinária
(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)
Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero partir ao repartir
filho, pai e fogo

DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando
HOMEM: ACORDA!

Ana Cristina César


Queria ter o sol só para mim,
tê-lo de forma a dele poder de vez em quando ceder parte
apenas a um dos meus mais íntimos amigos .

luis miguel nava

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Versos de Orgulho

O Fim

Recabarren, deitado, entreabriu os olhos e viu o oblíquo teto raso de junco. Da outra peça chegava-lhe um rasgado de violão, uma espécie de paupérrimo labirinto que se enredava e desatava infinitamente... Recobrou, pouco a pouco, a realidade, as coisas cotidianas que já nunca mais trocaria por outras. Olhou sem pena seu grande corpo inútil, o poncho de lã ordinária que lhe cobria as pernas. Fora, além das grades da janela, dilatavam-se a planície e a tarde; dormira, mas ainda ficara muita luz no céu. Com o braço esquerdo tateou, até dar com o cincerro de bronze que estava ao pé do catre. Uma ou duas vezes o agitou; do outro lado da porta, continuavam chegando até ele os modestos acordes.
O tocador era um preto que aparecera uma noite com pretensões de cantor e que provocara outro forasteiro a um longo desafio. Vencido, continuava frequentando a venda, mas não voltara a cantar; talvez a derrota o tivesse desgostado. As pessoas já se haviam acostumado a esse homem inofensivo. Recabarren, dono da venda, não se esqueceria desse desafio; no dia seguinte, ao acomodar uns surrões de erva, seu lado direito se imobilizara bruscamente e perdera a fala. À força de apiedar-se das desventuras dos heróis dos romances, terminamos apiedando-nos excessivamente das próprias desventuras; não assim o sofrido Recabarren, que aceitou a paralisia como antes aceitara o rigor e as solidões da América. Habituado a viver no presente, como os animais, agora olhava o céu e pensava que o halo rubro da lua era sinal de chuva.
Um menino de feições indiáticas (filho seu, talvez) entreabriu a porta. Recabarrren perguntou-lhe com os olhos se havia algum freguês. O pequeno, taciturno, disse através de gestos que não; o preto não contava. O homem prostrado ficou só; sua mão esquerda brincou um instante com o cincerro, como se exercitasse um poder.
A planície, sob o último sol, era quase abstrata, como vista num sonho. Um ponto moveu-se no horizonte e cresceu até ser um cavaleiro que vinha, ou parecia vir, para casa. Recabarren viu o chapéu de abas largas, o grande poncho escuro, o cavalo mouro, mas não o rosto o homem, que, por fim, susteve o galope e veio aproximando-se a trotezinho.
A umas duzentas varas dobrou. Recabarren não o viu mais, porém o escutou vozear, apear-se, amarrar o cavalo ao palanque e entrar com passo firme na venda.
Sem alçar os olhos do instrumento, onde parecia buscar alguma coisa, o preto disse com doçura:
- Já sabia que eu podia contar com o senhor.
O outro, com voz áspera, replicou:
- E eu contigo, moreno. Uma porção de dias te fiz esperar, mas aqui vim.
Houve um silêncio. Por fim , o negro respondeu:
- Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.
O outro explicou sem pressa:
- Mais de sete anos passei sem ver meus filhos. Encontrei-os naquele dia e não quis mostrar-me como um homem que vive trocando punhaladas.
- Já compreendi – disse o negro. – Espero que os tenha deixado com saúde.
O forasteiro, que se sentara no balcão, riu-se com vontade. Pediu uma cachaça e a degustou sem concluí-la.
- Dei bons conselhos a eles – declarou - , que nunca são demais e nada custam. Disse-lhes, entre outras coisas, que o homem não deve derramar o sangue do homem.
Um lento acorde precedeu a resposta do negro:
- Fez bem. Assim não se parecerão a nós.
- Pelo menos a mim – dise o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: - Meu destino quis que eu matasse e agora, outra vez, põe- me a faca na mão.
O preto, como se não o ouvisse, observou:
- Com o outono se vão encurtando os dias.
- Esta luz que fica me basta – replicou o outro, pondo-se de pé. Perfilou-se diante do negro e falou-lhe com cansado.
- Deixa em paz o violão, que hoje te espera outra espécie de desafio.
Os dois encaminharam-se à porta. O negro, ao sair, murmourou:
- Talvez neste me vá tão mal como no primeiro.
O outro respondeu com seriedade:
- No primeiro não te saíste mal. O que se deu é que querias chegar ao segundo.
Afastaram-se um pouco das casas, caminhando a par. Um lugar da planície era igual a outro e a lua resplandecia. De repente olharam-se, detiveram-se e o forasteiro tirou as esporas. Já estavam com o poncho no anetebraço, quando o preto disse:
- Uma coisa quero pedir-lhe antes que cruzemos ferros. Que nesta briga ponha toda sua coragem e toda sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.
Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martín Fierro tenha ouvido o ódio. Seu sangue o sentiu como um acicate. Entreveraram-se e o aço afiado luziu e marcou a cara do negro.
Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa, nunca o diz ou talvez o diga infinitamente e não a compreendemos, ou a compreendemos mas é intraduzível como uma música... De seu catre, Recabarren presenciou o fim. Uma investida e o negro recuou, perdeu pé, fintou um talho à cara e se desdobrou numa punhalada profunda, que penetrou no ventre. Depois veio outra que o vendeiro não conseguiu ver com exatidão e Fierro não se levantou. Imóvel, o negro parecia vigiar sua penosa agonia. Limpou o facão ensangüentado no pasto e voltou às casas com lentidão, sem olhar para trás.
Cumprida sua tarefa de justiceiro, agora era ninguém. Ou melhor, era o outro: não tinha destino sobre a terra e matara um homem.

Jorge Luis Borges, Artifícios.